O sacerdócio é um serviço de amor (amoris
officium)
porque é
um serviço de pastor. É gastar a vida no zelo
pelo rebanho que é o povo de Deus – (Santo Agostinho).
Notas
Preliminares
Esta crônica se constitui no Capítulo II do livro Um Seminário na Década de 1950. A obra conta a história do menino que decidiu, por contra própria, seguir para o distante Seminário para se tornar sacerdote. Tudo girava em torno de sua vocação religiosa e a família tratou de apoia-lo. Entretanto, o menino de apenas 12 anos de idade não imaginava o quão dura seria a vida longe de casa.
O livro contém nove capítulos e ainda se encontra em fase de revisão.
Alguns capítulos já foram publicados neste blog, cujos links estão indicados ao
final desta crônica.
xxx
O despertar da vocação sacerdotal
Naquela
manhã de quase primavera, de 1º de setembro de 2013, o sol já estava brilhando
e o céu bem azul, um belo dia, apropriado para o passeio planejado às vésperas.
Acompanhado de duas irmãs mais velhas, tomamos o carro e dirigimos por seis
quilômetros na estrada de terra entre muitas fazendas da região cortada pela
rodovia Fernão Dias, a BR-381. O destino do passeio era a fazenda que
pertencera a nosso avô, onde nossa mãe passara toda a sua vida até se casar em
1935. Ali foi também palco de parte da vida do menino e de suas irmãs. Aliás, a
primeira foi uma das costureiras que prepararam o enxoval do menino e a segunda
acompanhou-o, juntamente com o pai, na longa viagem para o Seminário. Na
fazenda do avô o menino de apenas 11 anos revelara, durante uma missa, a sua
vocação sacerdotal. Percorremos em confortável carro a sinuosa e íngreme
estrada que serpenteia as fazendas e em poucos minutos chegamos à antiga
fazenda. Fazia mais de 50 anos que lá não voltava e ao encontrar em ruínas aquele
outrora lindo casarão em estilo português, ainda mostrando a eira, beira e a
tribeira sob as telhas coloniais, construído por meu avô no ano de 1915, a
saudade que já batia forte, com o coração apertado com doces reminiscências,
foi abalada por profunda tristeza e sentimento de perda. Ao avistá-la, de longe
e incrédulo, tive a terrível sensação de que um pedaço de minha alma havia
desaparecido. Tratei de logo fotografar o que dela restava e fechei os olhos,
abrindo apenas o coração com as reminiscências coloridas da infância. Conferi,
ali mesmo, as fotos, uma, duas, três, várias e disse para mim mesmo..., vou pedir
a alguém para restaurar a foto panorâmica do casarão e dela fazer novamente o
palacete que sempre foi, a casa grande, espaçosa, bem mobiliada, com dezenas de
janelas, iluminada naturalmente e à noite com energia elétrica própria. Fiquei
ali, estatelado e a imaginar a beleza da foto colorida, com as restaurações
para o estilo original. Prossegui com minhas reminiscências. Vi e também ouvi, mesmo
de olhos fechados, o disputado e enorme rádio RCA-Victor que, com sua possante
e grande antena externa, captava as emissoras do mundo inteiro. Mas a sintonia
recaía quase sempre nas poucas rádios do Rio e São Paulo, com o Repórter Esso,
programas de auditório e as infalíveis “Hora do Fazendeiro”, com receitas
agronômicas e muita música sertaneja, de raiz.
Ainda
imerso nas gostosas reminiscências e diante daquele velho e quase destruído
casarão, pude também ver o aparelho telefônico com seus mais de 20 km de fios até
a cidade. Ficava afixado na parede da sala de visitas, logo à entrada e ainda
“ouvi” o seu estridente tintilar de sua campainha como a chamar alguém para
correr e atende-lo, tarefa que nós os meninos adorávamos fazer, ainda que
depois tivéssemos que sair procurando o avô pela casa inteira ou nos arredores
do quintal ou no terreiro de secagem de café e ainda no curral na hora da
ordenha ou trato das vacas leiteiras. Ah... ainda “vi”, por trás da casa, logo
abaixo, a fábrica de queijos e manteiga exportados diretamente para o Rio de
Janeiro. Gostávamos de assistir a operação de desnatamento do leite (retirada
da nata, a gordura do leite, para se fazer o creme da manteiga), com o soro
escorrendo num cano que despejava diretamente no cocho do mangueiro de criação
de suínos para engorda. E como uma coisa leva à outra, “senti” o cheiro das
linguiças defumadas naturalmente, penduradas sobre o fogão a lenha da enorme
cozinha daquela bonita e atrativa fazenda. Nela passamos muitos finais de
semana, quando então se reuniam mais de 20 familiares para o almoço coordenado
pela diligente tia Alaíde, sucessora na propriedade da fazenda até o final do
ano de 1954. Ah, e o pomar com sua doce e vermelha laranja sangue de boi? E as
mangueiras de tamanho descomunal, quase cinquentenárias e nas quais subíamos
com rapidez incrível, em busca das mangas mais bonitas e doces, escondidas lá
nas grimpas da árvore, com os adultos a nos advertirem: meninos desçam daí, já!
Vão cair, e se caírem ainda vão apanhar! Gargalhei gostosamente relembrando o
prazer, a “arte” dos meninos e prosseguindo nos sonhos das reminiscências, “vi”
nos fundos do pomar, o córrego, o engenho e a usina geradora de luz, logo
abaixo da horta de couve. A horta era assim chamada e sempre cercada com
taquaras de bambu para evitar o acesso das galinhas. Eram bastante sortidas, com
todas as variedades de hortaliças e algumas ervas medicinais, indispensáveis
nas fazendas. Mas, mesmo sendo sortidas, eram simplesmente chamadas de “horta
de couve”.
E assim, de olhos fechados eu vi tudo colorido como o arco-íris que colore a nossa infância.
O
sonho do menino, cultivado desde muito cedo, era ir para o seminário para
cumprir sua vocação, ainda que lá tenha permanecido por pouco tempo. Tudo
começou com o despertar da vocação sacerdotal, antes mesmo dos nove anos de
idade e se transformou em longa história que passou também pela mencionada
fazenda. O que há de mais bonito é que tudo aconteceu por interesse próprio, espontaneamente,
sem nenhuma interferência de familiares. Desde cedo observava os rituais e os
cânticos religiosos da igreja católica. A manifestação formal dessa vocação se
deu aos 11 anos de idade, quando assistia a uma missa ali na fazenda de seu avô,
a conhecida Fazenda do Criminoso, situada num ramal da antiga estrada de terra
que ligava Lavras a Nepomuceno. Mas por que esse nome da fazenda que não
inspira nenhuma simpatia? A denominação “Fazenda do Criminoso” foi originada no
século XIX, quando foram assassinados tropeiros que dormiam acampados à
margem do córrego, a 100 metros de onde se situa a igreja da fazenda. Esta, só
foi inaugurada mais tarde e foi construída no local onde já existia uma cruz
ali fincada, o Cruzeiro, aos pés do qual os fiéis faziam suas orações na Semana
Santa e rezavam o terço. A propósito, a igreja teve seu nome escolhido como
súplica de perdão à alma do escravo criminoso.
A despeito do nome nada simpático, a região daquela fazenda era bastante
desenvolvida nos idos de 1950. Seus eventos religiosos, esportivos e culturais
atraíam os vizinhos das fazendas Três Barras, Cervo, Boa Vista do rio do Cervo,
Barro Preto, Grotão e Bela Vista. Esta, mesmo situada do outro lado do rio
Grande, pertencia aos Pádua que também detinham a posse de metade da fazenda
Criminoso. De lá, atravessavam o rio em botes e completavam os dois quilômetros
até a fazenda Criminoso em cavalos ali à espera. Outra vizinha, a fazenda da
Fábrica Velha, era até mais desenvolvida, pois contava com grande fábrica de
tecidos, cinema, capela, cemitério e até mesmo o porto fluvial de Dr Jorge que
servia à navegação fluvial do Rio Grande com barcas, chamadas de Vapor, iguais
às do Rio Mississipi de onde, aliás, foram importadas. Embora o esplendor da fazenda
da Fábrica, como era conhecida, tenha durado até o ano de 1936, quando a
fábrica de tecidos se transferiu para a cidade de Lavras, seus moradores sempre
frequentavam as missas da fazenda Criminoso, que não distava mais que seis ou sete
quilômetros pelas estradas de rodagem e a metade pelas estradas de cavaleiro.
Pois
bem, a fazenda Criminoso se constituía em polo de atração social, pois era bem
desenvolvida. Havia, além da igreja, um campo e time de futebol, uma excelente
fábrica de laticínios que exportava seus produtos da marca Jupyra para o Rio de
Janeiro, o maior centro consumidor de produtos lácteos do sul de Minas, a Suíça
brasileira na produção de manteiga e queijos finos. A fazenda era ainda interligada
por telefonia direta à central telefônica da cidade e conectada à rede
interurbana. O melhor de tudo era que, desde o ano de 1934, a fazenda já
contava com escola de ensino básico, vinculada à rede municipal de Lavras e que
funcionou inicialmente na própria capela de N.S. do Perpétuo Socorro inaugurada
apenas um ano antes.
As
missas na zona rural eram acontecimentos esporádicos, quando muito uma vez por
mês, pois o acesso era difícil, com péssimas estradas e com escassos meios de
transportes naquela metade do século XX. Até mesmo os padres eram poucos e os
mais idosos não gostavam de enfrentar duras jornadas, às vezes em cavalos e
mulas nas escorregadias trilhas por entre serras e riachos que transbordavam
por conta das chuvas. Embora a família possuísse alguns veículos, automóvel (um
belíssimo Ford Mercury, ano 50), caminhões, caminhonetes e até um jeep Land
Rover bem antigo, talvez dos anos 40, ainda assim era difícil o deslocamento de
toda a família. Mas, a despeito dessas dificuldades de locomoção, as festas
religiosas ali realizadas eram muito atrativas e todos, mesmo aqueles que já
tendo se mudado pra a cidade, não deixavam de ali comparecer. Era uma
oportunidade ímpar para se reunir e rever os parentes e amigos da região e por
isso eram de fato eventos bastante concorridos. Nossa família que já havia se
mudado para a cidade, havia uns dez anos, para que os filhos estudassem em colégios,
não perdia uma única missa mensal ali na Fazenda do Criminoso, berço de nossa
mãe.
Foto do autor - 01/09/2013
Afora as cerimônias religiosas que incluíam batismos de crianças e até casamentos, o dia de missa era mesmo considerado um evento social importante. Os parentes e amigos se deslocavam a pé, a cavalo e raramente de carro, de distâncias que podiam chegar até 10 km, no perímetro delimitado pelos dois grandes rios, o do Cervo e o Rio Grande e pela rodovia Fernão Dias, inaugurada mais tarde, em 1959. O trecho da estrada de rodagem de Lavras à Vila de Nepomuceno cortava a região bem ao meio, numa extensão de oito quilômetros. Embora os traçados dos caminhos fossem facilitados em meio à acidentada região com muitos morros e serras, os meios de transporte eram escassos naqueles meados do século XX.
A
despeito dessa dificuldade com os meios de transporte, os parentes não perdiam
a oportunidade para se encontrar e festejar até mesmo com singelos leilões de
prendas, para arrecadação de fundos para investimentos e despesas como o frete
do taxi que levava o padre para as celebrações. Ali, ao lado daquela igreja e
ao contemplá-la, 54 anos depois, rodou um filme na minha mente, a do leiloeiro,
alto, aloirado e de fartos bigodes, com vozeirão de barítono a gritar...
dou-lhe uma, dou-lhe duas e dou-lhe três... vai o guaraná para o menino do Sr
Vico e de Dona Liquinha, neto do Sr Anísio que nos deu essa igreja e agora já
terá na família um padre para aqui celebrar missas todos os domingos... Ele
tinha um carinho especial para com as crianças e sempre com a cumplicidade dos
pais, as envolviam no divertido jogo de palavras no arremate das guloseimas.
Seu nome Sr José Gaspar, figura alegre, querida por todos, antigo morador da
fazenda. Recentemente encontrei seus netos nas redes sociais e pude ver as
fotos do saudoso leiloeiro que gostava das crianças.
Não
bastassem os arremates de prendas, que incluíam guaraná, doces e bolos para as
crianças, havia ainda a famosa “venda” do Artur, verdadeiro empório onde se encontrava de tudo, do salame (mortadela) a bebidas
de todo tipo, fumo de rolo, cigarros Saratoga e Continental e ainda gêneros diversos. Antes do leilão, a “venda” era ponto
obrigatório das crianças da roça para tomar um Guaraná 507, fabricado em
Varginha e saborear um naco de salame tão desejado pelas humildes crianças.
Ali, na venda-empório do Artur, pode-se dizer, era o nosso Mac Donald´s dos
anos
50, saboreando a pura mortadela com guaraná, pois o pão para compor o sanduiche
inexistia nas vendas da zona rural.
Mas, a festança em dia de missa na fazenda não se restringia às comilanças e o alimento da alma para ganhar os céus. Havia também a música na sanfona, violão, caixa e pandeiro e ainda as infalíveis partidas de futebol entre times vizinhos. O time local era o melhor, o União Esporte Clube e chegou a disputar campeonatos da 2ª Divisão da Liga Esportiva de Lavras. Era comandado por nosso avô, o coronel Anísio Gaspar, cujo sobrenome verdadeiro era Alves de Abreu, primeiro proprietário da fazenda Criminoso onde se situava o campo de futebol e também a capela. Na verdade o time era conhecido pelo nome da fazenda, mas como era um nome que não despertava simpatias, optou-se por criar aquele nome fantasia para fins de registro na Liga Esportiva. Eu disse o melhor time da região? Sim, porque o avô enchia seu caminhãozinho Chevrolet 50 com jogadores dos times da 1ª Divisão, da cidade de Lavras, os famosos Fabril e Olímpica. Os bons jogadores de Lavras sempre vestiam a camisa do União Esporte Clube, dentre eles o Carnot (Antônio Carnot de Pádua, trineto de Antônio de Pádua da Silva Leite e vizinho na fazenda Criminoso), Duí de Abreu, Jair de Souza, Luiz Boneco do Armazém do Julinho e meu cunhado, jogador do Fabril, Alberiquinho Brasileiro de Castro, Tibenga, seu genro. Levava até mesmo o juiz das partidas, o Sr Paulo Rosa Botelho, integrante da Liga Esportiva e outros mais. Os adversários sempre reclamavam que o Sr Anísio ganhava todas as partidas porque trazia “enxertos” dos grandes times da cidade e pior de tudo, na versão dos adversários..., ainda traz o juiz para "facilitar" a vitória. Enxerto era o nome que se dava a um jogador convidado, estranho ao time, mas a resposta era sempre a mesma: “... são todos nativos ou têm raízes aqui na fazenda e ponto final, pode chorar a derrota”. Quanto ao juiz, trata-se de árbitro profissional e neutro..., dizia todo sério o Sr Anísio. De vez em quando um gaiato soltava: sim muy neutro..., só quer ganhar a cervejinha ao final do jogo...rsrs. Havia ainda outros enxertos mais nobres, a prata da casa, Anizinho seu filho e mais tarde o neto Paulo Rezende, nascido ali mesmo na casa sede da fazenda, o artista da restauração de fotos. Um detalhe nessas partidas era que o próprio Sr Anísio Gaspar (1895-1977) jogava no time, até os 70 anos de idade. Sim, setenta. Mas os adversários nunca davam caneladas nem o derrubavam e às vezes até cooperavam para que ele marcasse um gol. Afinal, era o dono do time e financiava tudo, da logística de redes, bolas e chuteiras ao transporte dos jogadores e..., o melhor de tudo, a cervejada após as partidas e os bailes. Já idoso, gostava de bater pênaltis e marcava gol. Desconfio que o goleiro, Tião Gaudêncio, deixava o Sr Anisio marcar alguns gols, pois trabalhava na fazenda e eram muito amigos... Grande figura da Fazenda Criminoso. Líder político sempre prestigiado pelos prefeitos, tendo sido vereador por três mandatos.
A
vocação sacerdotal consolidada
A
história da fazenda Criminoso é longa e merece ser contada à parte, pois sempre
exerceu grande influência sobre as famílias que nela viveram ou ainda lá
permanecem nesses últimos 100 anos. Porém alguns detalhes merecem destaques na
história da vocação sacerdotal do menino. As missas mensais em sua capela
tornaram-se tradição e todos faziam questão de estar presente, desde a
inauguração da capela em 1933. Mais tarde, em 1947, o avô repassou a fazenda à
sua filha, Alaíde e em 1954 foi vendida aos primos da família Pádua, os quais
já detinham a posse da outra metade da fazenda. As famílias Salles, de minha
avó materna, e os Pádua, eram descendentes de nosso tetravô Antônio de Pádua da
Silva Leite, 1765-1849, que em homenagem a São Francisco de Salles batizou um
dos filhos, meu trisavô, Fortunato, com esse nome /sobrenome Salles.
Assim, naquele domingo de quaresma do ano de
1957, lá fomos todos nós assistir a missa e participar das festas. O celebrante
era o jovem Padre Silvestre Muller. Durante o sermão falou sobre a carência de
sacerdotes no Brasil, que tinha 63 milhões de habitantes e apenas 6.000
sacerdotes. Precisava-se de mais 50.000 novos sacerdotes, pelo menos. Quem quer
ser padre, levante a mão, perguntou o padre Silvestre. Havia um menino no meio
dos fiéis, um pouco longe dos pais ou qualquer outro parente, pois pirralhos
gostavam de ficar próximo à porta lateral para escapulir mais facilmente. Mas,
o menino estava atento e se manifestou espontaneamente: Eu quero!... E levantou
a mão. Todos olharam com surpresa e admiração, inclusive a mãe, assentada um
pouco à frente, na outra lateral da igreja. A mãe fitou o menino
comentado nada sobre isso antes da missa. Ali, naquela capela de tantas gratas
recordações, não poderia haver melhor lugar para a formalização da vocação
sacerdotal de seu filho, comentou tempos depois. Todos se alegraram e após a
missa foram cumprimentar os pais e desejar votos de sucesso ao menino. À noite,
em casa, reuniu todos e fez uma oração de agradecimento a Deus, pedindo também bênçãos
para o menino que seria encaminhado a um seminário para concretizar seu sonho. Hoje,
na distância do tempo, posso imaginar e avaliar o quão orgulhosa ficara ela e
toda a família, pois no costume da época, ter um padre na família era o que
mais se almejava.
A
vocação estava sendo cultivada no íntimo do menino desde os nove anos. Aos dez
já havia feito a primeira comunhão e foi ser coroinha da Igreja Matriz de Lavras
sob a direção do saudoso e respeitado Pe. Miguel Moretti-SCJ. Ainda no final do
ano de 1954, tomou a decisão, apoiada pelos pais, de se transferir de escola.
Havia sido fundada, naquele final de ano, por iniciativa da paróquia dos padres
da Ordem do Sagrado Coração de Jesus, o Grupo Escolar Padre Dehon, de
orientação católica que enfatizava o ensino religioso. Em 1955, ano de
inauguração de sua primeira turma, matriculou-se
no
terceiro ano primário daquela nova escola, quando então deixou o Grupo Escolar
Firmino Costa, onde cursara as duas primeiras séries. Sua professora naquele
terceiro ano primário foi Darci de Castro, filha do farmacêutico José Pedro de
Castro, vizinho de meu avô na cidade e na fazenda, de nome Grotão. Melhor não
poderia ser, pois, sabedora da vocação do menino, a professora procurou
incentivá-lo. Da mesma forma, a professora do ano seguinte, Maria Aparecida de
Souza, conhecida por Neném do Gil Leiteiro, também conhecida da família ajudou
na formação religiosa do menino. Nesse período frequentou esporadicamente o
Colégio de Lourdes, onde a Irmã Marcelina o recebia em aulas de catecismo.
A
inclinação religiosa do menino era marcante (meus pais não diziam “vocação” e
sim “inclinação”), pois além da igreja matriz foi coroinha na Capela de Santa
Efigênia, cuja construção em 1951/2, ao lado da sede do 8º Batalhão de
Infantaria, foi acompanhada a distancia, avistando-a das cercanias da Estação
de Costa Pinto, próximo de sua casa. Foi construída por pedreiros militares,
tendo como mestre de obras o saudoso amigo, sargento Bahia. Ali, naquela capela
ajudava aos padres Tito Carlos Zirke, Luiz Tings, Miguel Moretti, Henrique
Boeing e Raimundo Weillerman a celebrarem as missas de domingo. Mas, o melhor
mesmo era chegar mais cedo e tocar o sino de 15 em 15 minutos. Nem era preciso
subir os degraus estreitos do campanário. Bastava alcançar o mezanino onde
ficava o coral e dali se agarrar à corda e balançar de lá para cá, num espaço
de pouco mais de três metros. Era como se fosse uma gangorra amarrada num galho
de árvore. Aventura melhor não havia para o menino de 10 anos. Além de tocar o
sino se divertia e enchia de inveja os demais garotos que não tinham
autorização para subir até o campanário. Some-se a isso a alegria de contar
para os adultos quem era o tocador do sino que chamava os fiéis para a missa
dos domingos. Anos mais tarde, já interno no Seminário na distante Itaúna,
assistiu ao filme “Marcelino Pão e Vinho”, e qual não foi a sua alegria ao ver
a cena do pequeno Marcelino gangorrando na corda do badalo do sino de uma
igreja, tal qual fazia na capela militar de Santa Efigênia.
Ser
o coroinha ali na capela do Batalhão era o máximo da glória, pois além de
gostar de tocar o sino ainda tinha a cobiça, a inveja dos demais meninos...,
coisas de criança. Dependurava na corda, gangorrava para lá e para cá e o
badalo do sino estrondava bem alto, reverberando o som por cerca de dois ou
três quilômetros adiante. De vez em quando e às gargalhadas como a insultá-los,
dava um tchauzinho irônico para os invejosos coleguinhas. Mas, o ato de tocar e
gangorrar na corda do sino, marcou o menino para sempre. Ainda hoje ao ouvir o
sino de uma igreja, pára, contempla-o e mesmo sabendo que os dispositivos de agora
têm acionamento eletrônico e precisos, fica a imaginar seus tempos naquela
gostosa e sonora gangorra. Ah..., tempos bons em que o menino saía correndo, triunfante a tocar o sino como a
responder a Hemingway,
sabia sobre Hemingway e
seu famoso romance imortalizado no cinema em filme lançado anos antes: E o
vento levou. O autor da peça também respondeu à própria pergunta: “Eles dobram
por ti”.
Em outra ocasião, já quase chegado aos 70, o menino teve outra experiência marcante, pois tendo lido nos tempos de colégio sobre a tese de Foucault, sobre a rotação da Terra, visitou a Igreja de Saint Martin-des-Champs, na França, onde o monge Foucault, comprovou sua tese gangorrando numa corda de 67 metros de comprimento, dependurada no alto do campanário, mostrando assim que a terra tem movimento de rotação sobre seu eixo norte/sul.
Além
disso, o menino também gostava de fazer a coleta das ofertas após a prática, o
sermão do evangelho. Assim podia olhar em cada um dos fiéis e mostrar-se
orgulhoso pelas funções que exercia. Sua
paixão pelos atos litúrgicos era notável. Ao chegar das missas, em que atuava
como ajudante, imitava a sua celebração, imaginando a si próprio como o
sacerdote, até mesmo fazendo a pregação dos evangelhos, mesmo sem plateia,
embora desconfiasse que a mãe e as irmãs o espreitassem de longe. Também
entoava as recitações em latim, a começar pelo introibo ad altare Dei. Ad Deum qui laetifica juventutem mea. Glória
Patri et Fílio et Spiritui Sancto e os cânticos de Salve, Regína Mater misericórdiae. E com voz semelhante à de barítono cantava os hinos Salve Mater e o emocionante e
invocativo Pater Noster qui est in
caellis. Gostava, ainda de cantar esticando os agudos do lindo e suplicante Kýrie, eléison, Christe, eléison (Senhor tem piedade de nós. Jesus Cristo, tem
piedade de nós). Não havia, pois,
que discutir a vocação. Ela se manifestava em todas as ações do menino que se
encantava com os rituais em latim, sobretudo os das cerimonias de gala com seus
cânticos gregorianos, incluindo-se até mesmo as de réquiem que ainda hoje se lembra ao cantar Dies iræ! dies illa. Solvet sæclum in favilla em cerimônias
fúnebres solenes de membros das igrejas.
Dentre todos os fatores que mais contribuíram para a consolidação da vocação sacerdotal do menino, há que se destacar a atividade religiosa de coroinha, o acólito das missas e de ritos litúrgicos da Semana Santa e outros. Acolitar a Santa Missa era principal função dos coroinhas que se revezavam nas missas diárias da matriz de Sant`Anna e, aos domingos em várias capelas da cidade e da extensa zona rural. Essa atividade foi a mais marcante na vida do menino. Tão importante que aos 75 anos de idade o menino dos anos 50 do século passado, ainda carrega as doces lembranças daquele ofício. Ainda recente passou por três experiências marcantes, uma na França, na Église de Saint Martin-des- Champs e outras duas em Brasília. Numa dessas, na Festa do Marmelo, na Comunidade do Quilombola do Mesquita, não resisti à emoção e fui conversar com os coroinhas, orgulhosos com suas batinas vermelhas e sobrepelizes brancas, tais quais as que usávamos em Lavras.
Outra gostosa e até engraçada recordação deu-se por ocasião do aniversário de 45 anos da Catedral Metropolitana de Brasília. Ao final da missa solene, repleta de autoridades (Brasília é pródiga em autoridades....), dirigi-me à sacristia, abordei o bispo, que estava acolitado por diversos seminaristas, apresentei-me como “o seminarista fugitivo, de 60 anos atrás”. Gargalhada geral e depois dei carona para alguns seminaristas, levando-os até o Seminário.
A
decisão de partir, a escolha do Seminário
Em meados daquele mesmo ano de 1957, quando declarara sua vocação e desejo de ir para o seminário, chegou à sua casa, alguns meses depois, o Pe. José Wetzels, um jovem holandês de olhos azuis brilhantes irradiando simpatia e carisma. Veio num Jeep Willys, ano 1954, procedente de Itaúna, sede do Seminário de N.S. de Fátima, mantido pela missão holandesa no Brasil e cujos sacerdotes eram vinculados à ordem da Congregação do Divino Espírito Santo. Aliás, não ficou clara a razão da escolha daquele e não do Seminário da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, existente em Lavras. Talvez pelo fato de que em Itaúna já havia pelo menos quatro outros lavrenses, William, José Ivo, Pedro e Miguel, sendo os dois últimos amigos de infância do menino candidato à vaga. Talvez tenha sido sugestões de duas ex-professoras, Dona Margarida Massimo e Aparecida Souza. A primeira mantinha um filho e a segunda um dos irmãos naquele distante seminário e certamente tinham contatos mais frequentes com a administração do Seminário. Esta é a hipótese mais provável do motivo de minha indicação para aquele Seminário de Itaúna que foi mais ágil em recrutar o candidato.
Estava selado o destino do menino que queria ser padre. Em dois meses embarcaria na estação Costa Pinto para a cidade de Itaúna, distante 16 horas de viagem pelo trem Maria-Fumaça. E assim, o menino chegou ao Seminário naquele mês de fevereiro de 1958, naquele imponete prédio como mostra a foto a seguir, do ano de 1958.
Vida nova que segue, novos
colegas, muita saudade de casa, mas com o consolo de que tudo valia a pna em
nome da vocação do menino que queria se sacerdote, pastor de almas. Não chegou
a ser, mas tornou-se outro pastor, aliás em dobro. Na Agronomia, pastor de
rebanhos e plantações, alimentos para o corpo em vez da alma. No ensino, em sala
de aula, ajudou a formar profissionais, educando a alma dos alunos, por mais de
40 anos nos afazeres da Engenharia, da Arquitetura e da Agronomia, criando e
instalando novos cursos nos mais distantes rincões da Pátria, na amazônia, no
nordeste, centroeste e no extremo sul de nosso país. Deus sabe o que faz e em
tudo dai Graças. Ele foi justo comigo! E posso dizer isto, do fundo da alma,
com alegria e gratidão. Amém!
Brasília, 31 de março de 2021
Paulo das Lavras
Notas:
1- para quem se interessar pelas crônicas citadas, seguem os links
- Festa do Marmelo/Quilombo
do Mesquita - http://contosdaslavras.blogspot.com/2016/01/quilombo-do-mesquita-e-o-doce-de.html
- Reencontro do Seminarista
foragido - http://contosdaslavras.blogspot.com/2015/06/reencontro-do-seminarista-foragido.html
- Igreja do Batalhão,
Os sinos de Lavras e o Pêndulo de
Foucault, na França- http://contosdaslavras.blogspot.com/2016/08/os-sinos-de-lavras-acordes-de-gounod-e.html
2- A presente crônica é parte do livro: “Um Seminário na
década de 1950”, composto de nove capítulos. Aqueles já publicadas neste
blog estão com os links indicados abaixo, conforme projeto editorial:
Título geral: Um Seminário na década de 1950
Cap.I- Uma viagem ao passado – http://contosdaslavras.blogspot.com.br/2016/07/um-
seminario-na-decada-de-1950-parte-i.html
II- O despertar da vocação - http://contosdaslavras.blogspot.com/2021/03/o-despertar-da-vocacao-sacerdotal-um.html
III- a viagem para o distante
Seminário - http://contosdaslavras.blogspot.com/2020/07/a-viagem-para-o-distante-seminario.html
IV- A vida no Seminário
4.1- a rotina diária de um internato
4.2- os seminaristas
4.3- os estudos do colégio
4.4- A
religiosidade
4.5- o lazer e cultura
4.6- Eventos marcantes
4.6.1 - Fundições e Tecelagem
Itaunense
4.6.2-
Morro do Bonfim- a capela
4.6.3-
Copa do Mundo de 1958
4.6.4 A morte chega ao Seminário – http://contosdaslavras.blogspot.com/2017/07/a-morte-chega-ao-seminario.html
V – A viagem de volta - O fim
VI- O reencontro – 55
anos depois
VII- O legado
VIII- Anexos: Curiosidades
de 1958
IX- Pos-Scriptum:
1- Brasília: O reencontro do seminarista foragido na Basílica Metropolitana - http://contosdaslavras.blogspot.com/2015/06/reencontro-do-seminarista-foragido.html
2- Copa de junho de 1958 –
Sessenta anos da primeira Copa de Futebol
http://contosdaslavras.blogspot.com/2018/06/29-de-junho-de-1958-sessenta-anos-da.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário