terça-feira, 23 de junho de 2020

Leituras em tempos de quarentena – as fazendas e o racismo

(Série quarentena - 9)


 

A vida não é o que a gente viveu, e sim o que se lembra
e como se lembra para contá-la.
        (Gabriel García Márquez)
                                         ...   ...   ...

Todo livro nos ensina algo novo ou nos ajuda a ver as coisas
de maneira diferente...  A leitura alimenta uma sensação
                   de curiosidade sobre o mundo em que vivemos.
Sempre haverá algo de positivo num livro,
pois mesmo que seu conteúdo não seja
recomendável, terá valido a lição.
...   ...   ...


Fazendas..., ah, as fazendas são lugares ideais para cenários de romances. Os escritores adoram explorar o bucolismo rural e não raras vezes destacam os amores entre as donzelas de famílias da aristocracia rural e os agregados da fazenda, muitas vezes com finais trágicos, quase sempre permeando o autoritarismo e questões de racismo e escravidão, mesmo depois de muito tempo de sua abolição no país. Nas fazendas a escravidão e a segregação racial eram de fato mais evidentes. Ali o trabalho era apenas tarefa para escravos.  No entanto, antes da abordagem dessa questão que serviu de pano de fundo para dois novos romances mineiros, falemos um pouco sobre os tempos de quarentena, propício à leitura, especialmente de romances encenados em fazendas. O grande escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, explorou magistralmente a situação de uma quarentena sanitária, quando dois “jovens idosos” se reencontraram depois de 50 anos da explosão de suas paixões avassaladoras. Separados à força pelos pais da moça, que não queriam o romance com um simples pé rapado, ela foi mandada para a Europa onde passou alguns anos estudando. Quando retornou foi logo apresentada a um jovem médico recém-chegado da Europa onde também estudou. Casaram-se e muito tempo depois ficou viúva. Livre e tendo já passado algum tempo decidiu fazer um passeio pelo mar do caribe num navio de turismo. Ali reencontrou seu antigo amor. A paixão recrudesceu e reviveram o romance interrompido quando tinham seus vinte anos de idade. Durante a viagem abateu uma peste de cólera no navio que, proibido de ancorar no destino final, o porto caribenho de Cartagena, teve que aguardar quarenta dias para o desembarque dos passageiros. Santa quarentena..., foi o tempo suficiente para os antigos apaixonados descontarem os 50 anos de privação daquele ardente amor que ficou guardado no coração de cada um. Sentimento forte demais que, escondido nas profundezas dos escaninhos da alma, rebrotou com intensidade desmesurada como se ainda tivessem os mesmos vinte anos de então. Só que não, já havia se passado muito tempo, cinquenta anos. Um belo romance que muito nos ensina e a primeira lição foi que o verdadeiro amor nunca morre, hiberna e se for o caso rebrota com intensidade quando provocado. A segunda lição, decorrente do triste fim do romance, cuja fatalidade aconteceu numa fazenda, é que o avanço da idade impõe limites físicos e a paixão cega os levou a excessos, especialmente o companheiro que de forma trágica faleceu em plena lua de mel. Uma pena, história comovente, pois esperaram 50 anos... Não vamos aqui contar toda a história, pois, muitos certamente irão ler o livro que se chama “O amor nos tempos do cólera”. Já o li há tempo, mas sempre estou a recorda-lo com novas leituras. Vale a pena!

            Mas, não foi só esse livro de García Marquez que nos ensinou e deu grande prazer na leitura. Outro, “Cem anos de solidão”, tem como parte importante do enredo as plantações de banana nas fazendas da família. A li criou-se a fictícia cidade de Macondo, descrita como lugar pacífico, alegre e ordeiro, numa metáfora da história colombiana com seus contrastes sociais. Mas, a calmaria seria apenas aparente, pois eclodiu a explosão dos trabalhadores bananeiros que desnudou a violência imposta pelos poderosos, roubo de terras e a opressão ostensiva sobre os excluídos e fracos pela ganância estrangeira através da “febre da banana”. Mulheres se trancavam por décadas numa casa escura, entre várias outras, conforme descrito na fantástica narrativa de Garcia Marquez. Surgiu ainda na trama, a greve dos trabalhadores, com dura repressão do exército que matou milhares de trabalhadores bananeiros, caso, aliás, baseado em fato verdadeiro, ocorrido em Ciénaga, no ano de 1928, na região caribenha de Santa Marta onde me hospedei por uma semana e empreendi visitas turísticas de carro até Cartagena de Las Indias, cenário preferido de Garcia Marquez.  Com a chacina dos trabalhadores foram lotados mais de 200 vagões com cadáveres, partindo na calada da noite com destino ao mar, onde seriam atirados. No entanto, um sobrevivente da família protagonista da história, conseguiu se salvar, pois, ferido que foi com um tiro, fingiu-se de morto, mas, em meio aos cadáveres, conseguiu saltar do trem e ganhar vida nova. Como poucos viram essas cenas, quase ninguém se lembra do massacre no vilarejo e por isso a aparência de cidade tranquila ainda ganhou a “versão oficial” de que não houve massacre, morte alguma e que os trabalhadores tinham retornado para suas famílias. Mas não era pacífica, pois as rebeliões sociais existiam e as discriminações e explorações persistiam. No Brasil a história foi outra, mas, como na Colombia e outros países da América Latina, a violência contra os negros foi minimizada, quase excluída dos relatos e até cunharam versões oficiais afirmando que não existe racismo em nosso país. As versões oficiais indicam que somos um povo alegre, ordeiro sem conflitos raciais devido à miscigenação entre brancos e escravos negros e indígenas, tal qual descrito no clássico dessa teoria, o mito da “democracia racial” de Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. Sabemos que não é assim, pois há muita discriminação racial, que é atávica e vem desde os tempos iniciais do Brasil colônia de nossos ancestrais escravocratas. A violência do colonizador começava pela violência sexual contra as mulheres. A escrava sexual era praticamente uma imposição dos colonizadores que aqui aportavam solteiros, cujas famílias ficavam na corte lusitana. Negras e índias eram as primeiras escravas, escravas sexuais de seus patrões ou captores, daí originando-se a miscigenação compulsória que alguns historiadores a serviço de governantes ou simplesmente por romantismo, batizaram como democracia racial. Não se pode chamar isso de democracia, algo que teve origem na violência. Tal qual em Cem anos de solidão, onde a morte sem vestígio, com sumiço dos corpos das vítimas facilitando a fantasiosa versão oficial, criou- se também aqui no Brasil o mito da “democracia racial”, que encobre  a violência sexual contra as escravizadas. Versões oficiais nem sempre contam a verdade.

No passado, pouco se falava das subcondições de vida dos negros em nosso país. Vivenciei situações tristes de discriminação social e econômica, no campo e na cidade. Das fazendas nenhum camarada, negro ou não, pode estudar na cidade. Com a reforma agrária de 1961 muitos foram expulsos das fazendas e incharam as favelas nas ruelas e becos das principais entradas da cidade de Lavras. Em 1967, como trabalho de sociologia rural do curso de agronomia na ESAL, visitei ruelas com casebres de adobe e fogão a lenha, nas saídas da cidade para a Ponte do Funil, Rosas, Itumirim (incluindo trechos da atual rua Donato Bauth), Serrinha (rua da cava) e rua do Capim (Passa Vinte). Situações de extrema miséria daquela humilde população, a maioria negra, e expulsa das fazendas de café e leite. Anos mais tarde contratei alguns desses trabalhadores para as colheitas de café, conhecidos por “boia-fria”.  Com muita tristeza visitei, há uns cinco anos, na periferia da cidade, um desses antigos trabalhadores de fazendas. Por sorte todos os filhos trabalham e os netos já estavam adiantados na escola de segundo grau. Setenta anos se passaram desde os tempos da infância na fazenda e os progressos sociais foram poucos e muito demorados para eles. No colégio, lembro-me que de 250 alunos matriculados na 1ª série do ginásio, em 1957, apenas uns dez eram negros e desses, apenas um único chegou junto, sete anos depois, na conclusão do segundo grau. Ainda assim, por falta de dinheiro para pagar cursinhos pre-vestibulares, esse mesmo negro tentou por cinco anos ingressar no curo de engenharia da UFMG. Conseguiu e se formou, ainda que com atraso. Dois outros, da mesma turma de 1957, conseguiram concluir o segundo grau, quatro anos mais tarde, pois tiveram que interromper os estudos para trabalhar e ajudar no sustento dos irmãos. Esses dois últimos, Ito e José Augusto, depois de mais três anos de tentativas conseguiram chegar à universidade onde foram meus alunos no último ano de agronomia, em 1974. Venceram, porém com sete anos de atraso em relação aos colegas do ginásio, pois tiveram que interromper os estudos para socorro às respectivas famílias que passavam dificuldades financeiras. Por ironia do destino ambos faleceram prematuramente, um aos 50 e outro aos 65 anos de idade. Pobre país que negligenciou e discriminou as classes sociais mais necessitadas e os exemplos que vivenciei junto aos amigos de infância e depois em pesquisas acadêmicas, de casa em casa, na periferia de Lavras, se repetem em todas as regiões do Brasil. Democracia racial? Aonde? Só mesmo nas versões oficiais, inteiramente equivocadas. Por isso endosso e reforço a afirmação da historiadora Mary Del Priori (Histórias da gente brasileira), que contesta a propalada “docilidade da democracia racial brasileira”, inicialmente descrita por Gilberto Freyre e depois adotada oficialmente. Ainda bem que tivemos chance de mitigar um pouco as injustiças sociais contra os negros, estabelecendo as cotas raciais para ingresso nas universidades. representei o MEC na Comissão de Igualdade Racial, no Palácio do Planalto, onde discutimos por longo tempo a criação da lei que, ainda hoje, garante cotas de acesso dos negros às universidades. Menos uma injustiça social.

Não bastasse a violência sexual contra as negras, houve ainda a fuga de escravos que formavam os quilombos em meio às matas, fugindo da tortura e da escravidão em si. Os quilombos eram áreas temidas pelo branco e foram combatidos com forças especiais. Visitei dois deles, hoje comunidades acima de 1.000 pessoas, em Minas e Goiás. No primeiro, Quilombo do Gaia, inserido no chamado Quilombo Campo Grande, ferozmente combatido pela Coroa portuguesa nos anos de 175/70, observei resquícios da criação de carneiros e plantações de algodão para produção de fios para a tecelagem. No segundo, Quilombo do Mesquita, encontrei ainda em atividade a fabricação do doce de marmelo, típico da tradição portuguesa que também colonizou a região de Santa Luzia hoje Luziânia, em Goiás. Ali passei um dia inteiro em contatos prazerosos com seus habitantes, descendentes dos escravos da mineração de pedras preciosas. Para quem conhece a história ou conviveu com os resquícios da escravidão, não há como aceitar as teses oficiais de democracia racial com a miscigenação e povo pacífico, pois a violência foi marcante demais contra os negros, maior ainda sobre os fugitivos escondidos nos quilombos, seus refúgios defendidos com a vida.

 Nesse contexto de versões oficiais fantasiosas sobre nossa história observa-se que restringem ao passado escravocrata. Agora, por exemplo, em outro campo, na área da saúde pública, o descaso com as mortes pelo coronavírus, que já ceifou mais de cinquenta mil vidas, tem escancarado a violência da antipolítica, a negação, a fantasia sobre as mortes que tem abalado as famílias brasileiras. Parece que o negacionismo é a característica dos latinos. Primeiro a escravidão, o racismo e a violência contra a mulher negra (e em menor escala a índia) que, ainda hoje, são visíveis e agora em outra frente a negação das políticas mundiais para o combate à pandemia do coronavirus, gerando enormes prejuízos para todos, especialmente as família atingidas e os mais pobres.

Coronavírusatrás atrás das grades...??? Não, nós estamos presos em casa, de quarentena.
Mas, aproveitamos o tempo para por as leituras em dia.
Foto: internet


Mas, das histórias colombianas pode-se extrair algumas lições interessantes. A primeira é que a gente não é de um lugar enquanto não tem um morto, parente, enterrado nele. A segunda lição é que a história dos países latino-americanos guardava semelhanças com ditaduras militares, perseguições políticas, mortes, prisões e exílios de quem quer se opusesse aos ditadores de plantão, em permanentes revoluções inúteis, estagnando as nações em verdadeiro estado de ignorância. A terceira lição e talvez a mais importante, seja a frase cunhada pelo autor: “O segredo de uma boa velhice é simplesmente um pacto honroso com a solidão e que um minuto de reconciliação vale mais do que uma vida inteira de amizade”.

Na literatura há escritores e escritores, mas poucos são os que conseguem nos envolver na trama, no enredo de sua história. Gabriel Garcia Marques é mestre nessa arte. Ler o seus romances implica em mergulhar no enredo, fazer parte da trama, tomar partido de personagens e mais que isso, interessar-se pelo ambiente, os costumes e tudo enfim que permeia o contexto. Foi assim, também, em “O Amor nos tempos do cólera”, quando entusiasmado pelo que havia lido, fui conhecer no Caribe, na cidade de Cartagena de Las Indias,  a casa do famoso escritor. Noutro seu best-seller, “Cem anos de solidão”, o que seria apenas a história de uma família, acabou sendo muito mais que isso. Cada personagem tem detalhes que interessam ao leitor, levando-o a se envolver, imaginando-se protagonista da ação. Por outro lado, não foi diferente com duas obras brasileiras que acabei de ler nesse período de quarentena sanitária do coronavirus. O primeiro livro a chegar pelo correio foi “A casa de 365 janelas”, de autoria de Deo Saraiva, seguindo-se “O vestido”. Este último ambientado na região de Lavras, no sul de Minas, escrito por Fabiana Botrel. Ah..., que delicia ler e mergulhar no enredo de obras que, embora tidas como ficção, são baseadas em fatos reais e melhor ainda, ambientadas em nossa terra natal, nos locais onde vivemos por longo tempo. O romance “A casa de 365 janelas”, que mistura realidade e ficção, foi ambientado numa enorme fazenda que conheci. A Fazenda Santa Clara, no município de Santa Rita de Jacutinga, nos contrafortes da Serra da Mantiqueira, divisa entre os estados de Minas e Rio de Janeiro. Embora a narrativa sobre a sede da fazenda seja tratada como ficção ela é real e pude me deliciar em adentrar novamente o casarão das 365 janelas, uma para cada dia do ano, 52 quartos representando o número de semanas do ano e 12 salões, um para cada mês, além das sete entradas (representando os dias da semana). Belíssima fazenda produtora de café, açúcar e escravos. Sim havia uma senzala própria para reprodução e venda de escravos, justamente no período de dificuldade de importação africana. Cerca de 3.000 escravos passaram por ali.

       A leitura de um romance, uma história que se passa em local onde os ambientes ou o enredo com fatos reais são de seu conhecimento, nos leva a valorizá-lo, aumentando-se o gosto o prazer em acompanhar o enredo. A cada passo dos protagonistas o leitor lá “está” presente conferindo os detalhes do ambiente. A leitura se transforma num passeio virtual, numa prazerosa volta ao passado que um dia você próprio viveu. Ter visitado e admirado a grandiosidade da Fazenda Santa Clara, no sul de Minas, conhecido suas 365 janelas e tudo mais além de ter visto as terríveis condições de moradia e tortura impostas aos escravos, são fatores que adicionaram gosto redobrado na leitura daquele livro. É impressionante como a leitura de romance bem escrito é capaz de transportar o leitor para a realidade, fazendo-o viver os personagens e principalmente “rever” os ambientes conhecidos. Aliás, aquela fazenda foi palco de histórias televisivas, como a novela Terra Nostra, que foi ali ambientada. Coronelismo, machismo e escravidão estão no centro da questão, com preponderância na ação de uma mulher destemida que enfrentou o machismo e as injustiças dos coronéis e barões do café, praticadas constantemente não só sobre os escravos, mas, também, sobre as mulheres. Essa, a luta de uma mulher destemida, foi a principal e grande lição que dali assimilei, especialmente diante das dificuldades e costumes machistas do final do século XIX e inicio do seguinte.

O segundo livro, “O vestido”, é uma obra envolvente e apaixonante que conta a saga de outra mulher, vivida na primeira metade do século XX, nas cidades de Belo Horizonte e Ibituruna, em sua aprazível fazenda. Foram três gerações de mulheres que, paradoxalmente enfrentaram os mesmos problemas. Ana, a principal personagem e neta da matriarca, conta a sua história desde os tempos de menina ao lado da querida avó. Tudo começou com o vestido branco, usado pela vovó e também por sua mãe nas festas juninas da fazenda. A partir daí desenvolve-se toda a trama do romance. Sua mãe chegou a estudar em Lavras no internato de um colégio de freiras. Mais tarde a neta, Ana, mudou-se para Lavras, levou a mãe e ali se fixaram definitivamente. Um livro que fala sobre paixão, amor e perdas de uma menina moça que guardava a lembrança da imagem da vó a lhe ninar ou a oferecer-lhe pão de queijo na enorme cozinha da fazenda às margens do rio das Mortes. Numa festa junina na fazenda, a vó lhe entregou o vestido branco para que a menina moça o usasse na festa junina, vestida de noiva na quadrilha de São João e que seria dançada no terreiro da tulha de café. O vestido carregava uma história de duas gerações, pois sua avó e sua mãe protagonizaram histórias semelhantes, de amor proibido pelos costumes discriminatórios da época. Quis o destino que a menina moça, a netinha Ana, ao usar aquele mesmo vestido branco, encenando a noiva da quadrilha, também encarnou a história idêntica de ambas, mãe e avó. Tristes histórias. Aprendeu a amar, a sofrer e crescer diante de tanta injustiça e preconceitos raciais tão comuns numa sociedade que mesmo depois de algum tempo da abolição da escravatura, mas ainda não se esquecera dos costumes racistas.

        Ler é bom demais, é excelente para a saúde mental. A leitura de um livro é uma virtude, um deleite para a alma. Por meio dela podemos nos transportar para outro mundo e por que isso se repete a cada leitura? Dois grandes mestres, o escritor Marcel Proust e o poeta Mário Quintana falam sobre isso. O primeiro, em sua magistral obra Em busca do tempo perdido, descrevendo a sua infância em Illiers-Combray, disse que "os verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o poeta Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha casa em que nasceu". Nossa alma é assim, registra com vigor as mais belas passagens de nossa vida. Certamente deve ter sido por isso que, materializando os ditos dos poetas, construí inteiramente, durante 30 anos, uma chácara na zona rural de Brasília, onde há montanhas ao redor, coisa rara no planalto central, mas que faz parte, profundamente, da alma e do sentimento dos mineiros das alterosas. Ali reproduzi as coisas vividas na infância, enfeitando-a com bonitos jardins, agua corrente, lagos, carro de boi e arado de aiveca trazidos da fazenda onde nasci, nas Minas Gerais. Até mesmo um Jeep Willys antigo, foi adquirido e reformado para fazer trilhas nas montanhas, matas e depois provido de snorkel e acessórios próprios para andar no lago e “assustar” as crianças a bordo com banhos de lama das rodas traseiras patinando quando desligada a tração dianteira. Que festa, que alegria, o velho que se torna criança buscando à moda proustiana o seu paraíso perdido. Ali também plantei um pomar de variadas fruteiras e belos jardins enfeitados com bica d’água que movimenta um pequeno moinho. Não faltaram o cavalo, cães, galinhas e cuidados com os pássaros que alegram com seus cantos do amanhecer até o por do sol. Nem mesmo faltaram o fogão à lenha, a moenda para produção de caldo de cana, pequena maquina Pinhalense para beneficiar café colhido com especial cuidado, torrador manual, moedor de café e, acreditem..., os equipamentos usados na fazenda, até os anos de 1950/60 para beneficiamento de algodão e lã, como descaroçador, cardas, roda de fiar (saudade de minha mãe a fiar a lã...). Não falta nada na chácara, construída para materializar, e até de forma inconsciente,  aquilo que Quintana ensinou: "a gente continua morando na velha casa em que nasceu".  

            Gosto de escrever e muito mais de ler uma obra interessante, com narrativa bem escrita, cativante. Os autores aqui citados têm essa característica.  Mas, quando dizem que se trata de obra de ficção, não acredito muito. Nunca vi alguém escrever sobre algo, um fato ou uma história de bom enredo, sem que tenha vivido ou vivenciado um relato de outrem sobre experiências reais. Ficção pura existe, mas é rara na literatura, pois sempre há traços da vida do autor. Impossível escrever e não deixar sinais de si próprio. Sempre há uma história real por trás. Assim, os autores procuram dourar a pílula nas narrativas dos fatos reais, vividos, convividos ou simplesmente conhecidos por relatos orais. Gabriel Garcia Marques, com seus realismos mágicos, chegou a citar em entrevistas a revistas especializadas que ambos os livros de sua autoria, aqui citados, foram baseados em casos reais. O primeiro foi a história de seu avô e o segundo, decorrente das histórias verdadeiras que dele ouviu e que, inclusive, participou de guerra na Colômbia. Já a autora de “A casa de 365 janelas” descreve com tanto realismo o ambiente que, para quem conhece a fazenda em questão, qualquer despiste é em vão. Em “O vestido”, a autora, mineira que viveu em BH, Ibituruna e Lavras, com passagens por Londres e por último em Oslo, na Noruega, também não deixa dúvidas, nomeia casas, educandários, hotéis, ruas e praças com seus nomes verdadeiros, o que facilita ao leitor “entrar” no contexto e assim se considerar um protagonista da história que ali se desenvolve. Foi um prazer redobrado ler “passeando” por BH, ali na Savassi, na sorveteria do Seu Domingos que frequentávamos aos domingos, na Av. Getúlio Vargas e mais abaixo, na Rua Professor Moraes o famoso e imponente Colégio Sagrado Coração de Jesus, onde a avó de Ana foi acolhida e guardou, no fundo do baú, um guardanapo com as iniciais SCJ, descoberto pela neta e por meio do qual ela descobriu toda a história secreta do amor proibido da avó. Comovente passagem na vida da avó e neta que somente veio a descobrir a verdade um dia após a morte da querida matriarca. 

O Colégio Sagrado Coração de Jesus- SCJ, com seus bonitos prédios ocupava todo o quarteirão da Rua Professor Moraes. Ali a vó da menina Ana a levava nos encontros com a madre superiora.
Anos mais tarde, quando a avó morreu e abrindo o baú de guardados, Ana encontrou um guardanapo com as iniciais SCJ. Decifrou o enigma e acabou descobrindo a história secreta de sua querida avó.
Do lado oposto (no círculo vermelho, à esquerda) ficava a lanchonete do Seu Domingos. Frequentei-a quase que todos os finais de semana e de lá contemplava a bela igreja do SCJ, porém sempre protegida por muro de grade de ferro e não pude conhecer o seu interior.
Foto: Google


A linda fachada do Colégio sagrado Coração de Jesus, palco de parte importante do
enredo do livro “O vestido”. À esquerda, encoberta parcialmente pela árvore, a torre de sua igreja, onde certamente a vovó, ainda mocinha, fez muitas orações ao lado da madre superiora,
a amiga que lhe socorreu nos momentos de aflição
Foto: Google


De Belo Horizonte, voei na imaginação para Lavras. Ali a autora menciona a UFLA, a universidade onde estudei e depois fui professor e que, literalmente, ajudei a construir seus prédios e cursos, o Kemper, o Gammon, o Colégio de Lourdes, educandários tradicionais de Lavras onde ministrei aulas e palestrei por diversas vezes. Todos eles fazem parte do enredo do livro e mais, “percorri” e revivi o jardim da cidade, a belíssima Casa Rosada, onde se encerra de maneira feliz o romance de Fabiana Botrel. Tal qual a autora, sempre tive vontade de conhecer aquele lindo casarão, o que só aconteceu em passado recente quando ali participei de dois grandes eventos culturais. Mais recentemente visitei a mesma padaria, situada em frente ao casarão e mencionada no enredo do livro, a Casa do Pão. Enquanto saboreava um café da manhã, fiquei a imaginar quanta história havia ali. Agora, pela leve e envolvente leitura do livro, “andei” não só pelo interior do casarão, mas também pelo jardim e as tortuosas e íngremes ruas de Lavras. “Visitei” lojas conhecidas, o lindo e aconchegante hotel Vitória e tantos outros lugares de minha infância e juventude.

A belíssima Casa Rosada, admirada pela menina-moça que a contemplava do outro lado,
 na lanchonete Casa do pão. Ao final da história acabou pertencendo a ela e sua mãe.
Sonho realizado, ainda que na imaginação.
Foto - 2016, Catarina Júlia


Ah, que saudade desses lugares. Gosto de carregar a velha casa onde nasci, a cidade onde me criei, estudei e me preparei para a vida, pois estes são os verdadeiros paraísos perdidos, como nos ensinaram os mestres da literatura. Tanto é verdade que adoto essa mesma trilha literária, o estilo de crônicas narrativas, conforme descrito no perfil do blog Contos das Lavras: “As crônicas, contos e causos aqui postados são diferentes, pois carregam o viés de engenheiro e professor universitário, detalhista que anexa fotos, indica nomes dos protagonistas, locais e outros detalhes que ajudem o leitor a entrar no contexto da história. Nunca inventa, apenas aumenta um pouquinho os fatos para apimentar os causos”.
Por isso nem preciso repetir que adorei os dois romances ambientados em fazendas, na capital e cidades sul mineiras, chão amado, cheio de histórias. Enredos densos que tocam fundo a alma dos protagonistas das histórias e por que não dizer de nós próprios? Enlevam nossa alma e nos conduzem à reflexão sobre a vida e seus valores. Ambos abordam temas envolventes, a vida nas fazendas, escravidão e racismo e o amor proibido entre as donzelas da elite rural e escravos. Histórias comoventes, cheias de amor e também muita dor, mas de forma leve e sempres valorizando o lado positivo das situações. Recomendo a leitura desses dois belos romances mineiros. Aproveitemos, pois, a quarentena. Nada melhor que usa-la para ampliar nossa biblioteca e nos deleitarmos com lindas histórias escritas por bons autores. Problemas de espaço em casa para os livros? Ah..., sempre se dá um jeito. Um depósito na chácara resolve, embora, quando na cidade, nunca sabemos se tal livro está na chácara ou se sumiu. Porém, a questão maior é chegar em casa com novos livros, quando já se tem uma pilha enorme com vinte, trinta exemplares ainda não lidos. Mais livros? Para quê? Por que não lê os que aí já estão? Que exagero, mania..., aonde você vai colocar mais esses?  Perguntas embaraçosas, mas fáceis de serem evitadas..., eu sempre chegava com um novo livro escondido debaixo do paletó, sem ser notado. Aprendi a tática com o escritor Sergio Buarque de Holanda que foi bem original na arte de enganar a esposa que implicava com seus amontoados de livros. Tinha táticas e estratégias para chegar em casa com novos livros sem aborrecer a fiscal da ordem, da limpeza e da esmerada decoração: contava com a cumplicidade dos empregados que os passavam pela janela, pois a porta era sempre bem vigiada. Mas, surpresa mesmo foi ouvir de uma amiga, que mora sozinha num casarão de mais trezentos metros quadrados, recusando-se a ganhar um livro, preferindo  que o mesmo lhe fosse apenas emprestado sob o argumento de que não tem espaço para guarda-lo. Parece mesmo que livros amontoados atrapalham a rotina de quem se preocupa com a limpeza e a decoração da casa. Porém, hoje em dia com a informatização, talvez deixe de existir esse “problema” de acumulo de papeis no escritório ou biblioteca doméstica, pois quase tudo é digitalizado e HDs externos são bem compactos. Logo, compremos mais e mais livros, ainda que a digitalização se restrinja apenas à operação de compra.
Ah..., folhear um livro, sentir seu cheirinho característico, marcar, grifar frases especiais, fazer anotações na orelha ou no rodapé da página e anos depois rever aqueles grifos..., é a melhor coisa do mundo.
A vida não é o que a gente viveu, e sim o que se lembra
e como se lembra para contá-la.
        (Gabriel García Márquez)

                                                    ... e acrescento mais um detalhe importante:

Todo livro nos ensina algo novo ou nos ajuda a ver as coisas
de maneira diferente...    A leitura alimenta uma sensação                                                        de curiosidade sobre o mundo em que vivemos. Sempre                                               haverá algo de positivo num livro, pois mesmo que seu conteúdo não seja recomendável, terá valido a lição.
....
            Não se deixem enganar nem se aborreçam com os amontoados de livros, pois o cronista Gustavo Faleiros já decretou, há bastante tempo: falta de espaço será tua sina, ó nobre leitor!
Leiam, leiam muito, aproveitem a quarentena, pois a leitura é o melhor remédio para a alma. Obrigado às autoras aqui mencionadas, Deo Saraiva e especialmente Fabiana Botrel, pelos seus belos e tocantes romances que me transportaram no tempo, no amor aos locais e à causa antirracista, onde tudo foi escrito de forma leve, porém bem real em tudo aquilo que ainda hoje nos cerca. Assim é a vida!

Brasília, 23 de junho de 2020

Paulo das Lavras



Dois romances, de autoras diferentes, ambientados em fazendas do sul de Minas, nos levam a meditar sobre os           valores da vida, as dificuldades que as mulheres enfrentam com os machismos e até mesmo racismo, 
decorrentes de nossa cultura atávica, patriarcal.


A Casa do Pão de onde Ana, personagem central de “O vestido”, contemplava
a bonita Casa Rosada localizada bem em frente.

Foto do autor, 2016



Na festa de criação da APROAC, na Casa Rosada, com Claret Mattioli (à direita da foto), amigo ex-aluno, idealizador do projeto de promoção da Arte e  Cultura em Lavras.
Foto do autor, junho 2013



Casa Rosada, palco de eventos culturais, como esse outro que promovemos em parceria com a UFLA
 e presença do autor, Carlos Murilo, que foi secretário particular de Jk por toda a vida.


Casa Rosada, lançamento do livro sobre JK, com Carlos Murilo, o reitor da Ufla,
o presidente da Câmara Municipal, o Vice Prefeito e o pro-reitor da Ufla
Foto: 30/08/13- Secom/Ufla




Colégio N.S.de Lourdes, fundado em Lavras no ano de 1900, é um dos tradicionais educandários da cidade. Ali havia o internato para as moças, geralmente filhas de fazendeiros que não queriam morar na cidade, pelo menos até a primeira metade do século XX. Ali, ministrei, em 1963, aula de matemática, como monitor 
do titular da cadeira,  o saudoso Prof Nelson Werlang.
Foto: anos 60, arquivos de Renato Libeck


Colégio Aparecida- Lavras-MG – Formandos de1967. Deud; Gil Cherem; Gilson Curi;
Nordestino; Ito Leocadio; José Augusto de Almeida e José Ernane. 2ª fileira:
Luís Magno;  Manoel; Marcio e Marco; Mauro; Nilton Curi e Nagib.
Na 3ª fileira, em destaque, Aloisio Ricardo Pereira da Silva.
José Augusto e Ito esperaram mais quatro anos para a essa conclusão do 2º grau e depois mais três para ingressarem na faculdade. Não tiveram os privilégios da maioria
dos colegas e foram obrigados a “correr” muito mais que todos nós.
Foto: arquivos de Renato Libeck


Colégio Kemper e suas imponentes palmeiras imperiais, situado na praça central
de Lavras. Integra o mais antigo etradicional educandário da cidade, O Instituto Gammon,
 célula mater da Universidade Federal de Lavras  
Foto: anos 70, arquivos de Renato Libeck


A Estação do bonde que Ana, do romance O vestido, menciona e que não conheceu.
Ao fundo a velha Casa Rosada.
Foto: arquivos de Renato Libeck


O belíssimo Vitória Palace Hotel, projetado pelo arquiteto Evandro Meniccuci, colega
 de Departamento na ESAL/UFLA. Sonho de Ana, a romântica menina personagem central de "O vestido".
Satisfez seu desejo e ali se hospedava en suas visitas à Lavras. Também ali me hospedava nas visitas ocasionais e recebia amigos para um jantar ou simples happy hour.
Foto: 2006, arquivos de Renato Libeck




Uma das atrações do jardim da cidade de Lavras é o lago que também delineia o “redondo”, onde os jovens ficam a passear rodando, eles no sentido horário e ela ao contrário.
Muito citado no romance de Fabiana Botrel,  provavelmente foi ali que Ana, a principal protagonista da história tenha encontrado seu novo amor.
Foto Adivar Roquini



O mesmo lago do jardim onde tomei banhos forçados, por puro prazer dos veteranos
Foto: Catarina Julia



Igreja do Rosário, a mais antiga de Lavras, datada de 1754, localizada na praça central,
também referenciada no romance de Fabiana Botrel.
Foto: do autor - 2015


UFLA – belíssimo Campus, inaugurado em 1970 e ainda hoje em expansão com novos cursos.
Faz parte da vida da menina moça, Ana, personagem principal do romance “O vestido”.
Orgulho de ter participado de sua construção dede o ano de 1967, ainda como estagiário
 do Departamento de Engenharia da antiga ESAL/UFLA e depois como professor,
ao lado de engenheiros e arquitetos de 1969 a 1975
Foto: DuAlto Imagens - 2016



Sinceramente, não sei qual seria melhor, conhecer os locais antes ou depois da leitura
de um livro ambientado em determinado lugar. Aqui, nesta foto, em Cartagena de Las Indias,
no Caribe Colombiano, fui depois de ter lido o livro “O amor nos tempos do cólera”
Foto: do autor - 1987



O entusiasmo ao conhecer os locais históricos foi tanto, que acabei perdendo o voo de volta para o Brasil



 Esta linda e gigantesca casa da Fazenda Santa Clara conheci antes da leitura do romance
de Deo Saraiva “ A casa de 365 janelas”. Neste caso, como no outro romance de Fabiana Botrel, a leitura
permitiu-me “rever” e sentir todo o enredo como se ali estivesse conferindo a descrição
dos ambientes feita pelas autoras. Sinceramente, não sei é melhor conhecer antes ou depois. De qualquer
modo é uma ótima experiencia que eleva o interesse e o gosto pela leitura
Foto: internet


Tudo isso sem falar que a descrição das atividades defazendas caem como um luva no menino nascido e criado em uma delas. E esses lugares estão sempre presentes em nossa mente, pois Quintana ensinou: "a gente continua morando na velha casa em que nasceu".  Até a plantação de café do sul de Minas, foi reproduzida aqui no planalto central, a 1.000 km de distancia.

Até  mesmo o cavalo Mangalarga marchador está presente, relembrando a tradição
mineira, assinalada nos romances e transportada para os dias atuais


O café Bourbom Amarelo, típico do sul de Minas também vei para o planalto central


... e quem disse que as peras esoeciais da região de Lavaras não produzem no cerrado?


Minha casa tem, depois de 50 anos, carro de boi que pertenceu à familia mineira.
No jeep trabalhei em meu primeiro emprego, em BH. Tem também o...


... arado de aiveca com o qual meu pai trabalhava a terra..., e aqui está. 



Inconscientemente transportei, quase que inteiramente, minha casa da infância para a vida aduta. Quando
criança, na fazenda, fazíamos roda d´água e agora, da mesma forma a reproduzi, aqui na chácara. Viva
Marcel Proust que fala dos paraísos perdidos e também, Mário Quintana que não deixa
 a gente sair da velha casa onde nasceu e viveu.
Os netinhos quando tinham uns 4 anos perguntaram... Vovô, ela (a roda d´água) nunca pára de rodar?...
Também eu ficava encantado quando os camaradas da fazenda me ensinaram a construir
 a roda dágua que eles chamavam de moinho... e ainda acrescentava outra pergunta,
para onde vai essa água?
Rubem Alves, poeta, filósofo e que um dia morou em Lavras e ali foi professor, disse que “As almas dos
velhos e das crianças brincam no mesmo tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos
esqueceram e têm de aprender de novo: que a vida é brinquedo que para
 nada serve, a não ser para a alegria!"...
Somos eternas crianças, por isso, talvez, me identifique como Menino das Lavras. A leitura de obras que
nos remetem aos locais da infância são bálsamos para a alma. Obrigado às autoras aqui mencionadas