domingo, 22 de outubro de 2017

Privilégios

Antigamente, nos anos 50 do século passado, estudar era um privilégio. Havia festa até para a formatura do curso primário (ensino fundamental de hoje). Formatura do curso ginasial aos 14/15 anos era a segunda festa e o científico ou o curso técnico eram, então, o máximo (2º grau atualmente). Faculdade era algo muito distante, quase inalcançável, pois incluía custos bastante elevados para cursinhos preparatórios, estadia na capital e em alguns casos até mensalidades dos cursos superiores. Sim, era privilégio, num país que ainda não tinha colégios públicos nas cidades do interior.

 Lembrei-me desse privilégio, de poder estudar, ao receber, recentemente, pelas redes sociais um vídeo muito interessante com o título “Explicando Privilégios”. Nele o autor faz uma experiência com vários jovens numa corrida para ganhar uma nota de 100 (cem) dólares. Quase 40 concorrentes estavam em suas posições, atrás da linha de arrancada, prontos para ouvir o apito ou tiro de partida.  Entretanto, o organizador avisa que é uma corrida diferente e convoca cada um a dar dois passos à frente se disser “sim” às seguintes perguntas:
- quem ainda tem os pais casados
- quem cresceu em casa e contou com a figura paterna a seu lado.
- quem estudou em escola particular
- quem nunca teve que pagar a sua própria conta de telefone celular
- quem nunca teve que ajudar a pagar as contas de casa
- quem nunca teve que pensar de onde virá a sua próxima refeição

Mais de trinta rapazes e moças, a maioria de jovens sarados e bem nutridos, de boa aparência, já estavam avançados em cerca de 10 metros de distância, conforme permitido pelas seis perguntas e dois largos passos a cada “sim” respondido. Uns dez outros jovens restaram atrás da linha de partida, sendo alguns deles negros, até deixando transparecer certa agonia e frustração por não terem respondido, nenhuma vez, “sim” às perguntas do organizador da disputa.  Não puderam responder a único sim e por isso não avançaram. Após a última pergunta e respectivo avanço de dois passos, o organizador mandou que todos se virassem para trás e olhassem para aqueles que restaram, lá atrás da linha inicial da corrida. E novamente disse: “Vejam, quantos ficaram para trás e eu digo-lhes que todas as perguntas ou afirmações que fiz e vocês responderam sim, nada tiveram de contribuição pessoal de cada um de vocês. Portanto vocês não contribuíram com nada e nem participaram daqueles esforços que seus pais fizeram por vocês e lhes ofereceram durante toda a vida. Vocês, no entanto, se valeram daquelas vantagens e deram dois passos à frente numa disputa e sairão com 10 metros de vantagem à frente de quem não teve a mesma chance, as vantagens da vida que vocês tiveram. E lembrem-se, vocês não contribuíram com nada para a obtenção de tudo aquilo que vocês agora estão usufruindo. Portanto ISTO é privilégio”.

Mas, isto quer dizer que eles, aqueles que ficaram para trás não podem concorrer?  Perguntou novamente o organizador da disputa. “Precisamos reconhecer que vocês que estão à frente tiveram vantagens. Mas precisamos correr, a disputa continua. A vida é assim, não há desculpas, a realidade é essa e temos que reconhecer. A corrida vai continuar e aqueles lá atrás terão que correr muito mais para ganhar os 100 dólares. Nós nunca queremos reconhecer que sempre tivemos privilégios que nos garantiram a dianteira. Mas tivemos. Aqui estão vocês, bem à frente daqueles lá atrás e eles precisam correr muito mais que vocês para ganhar a disputa. Vou dar a partida e quem quer que ganhe essa corrida e seus 100 dólares terá de pensar sobre a vida dos outros menos privilegiados. Nada do que você fez o colocou nessa posição de vantagem que você está aqui, agora, antes mesmo que eu dê a partida da corrida. Essa é a realidade da vida. Aprendam a olhar os outros”.

         Passei a infância cercado de amigos que não puderam seguir os estudos. Na fazenda ficaram os filhos dos empregados, que nunca puderam estudar na cidade. Na zona rural não havia escolas e tampouco transporte para a cidade. Amigos de caçadas, natação em ribeirões e lagoas às margens do Rio Grande, cavalgadas, trilhas pelas matas e serras, mas essas eram trilhas de lazer, na época de férias escolares, pois as trilhas, o caminho para a cidade aqueles amiguinhos nunca puderam alcançar, lá, onde estavam as escolas. Para sempre ali permaneceram na lida da roça e depois de aposentados, foram inchar a periferia da cidade. Cinquenta anos depois visitei um deles, num bairro distante do centro da cidade.  Difícil foi conter a emoção diante de tanta simplicidade, poucos recursos e certa melancolia em seu olhar ao relembrarmos os tempos alegres da infância e fartura nas fazendas. Mas, a situação não foi diferente na cidade com os coleguinhas do grupo escolar. Havia cinco ou mais turmas de primeiro ano primário (ensino fundamental). Vários deles ficaram pelo caminho e nem concluíram as primeiras séries. No ginásio, aos 12 anos, éramos cinco turmas de 50 alunos na 1ª série do Colégio Aparecida. Chegamos ao 3º Científico (2º grau) com apenas 30 colegas. Mais de duzentos desistiram, quase 90%. Daqueles mais conhecidos as causas foram aquelas duas últimas da lista de seis do organizador da corrida descrita acima. Simplesmente tiveram que parar de estudar, ainda meninos, para trabalhar e ajudar nas despesas da família, geralmente numerosa. Sequer conseguiriam chegar à disputa da corrida e muito menos ganhar aquela nota de cem dólares que bem ilustra a realidade da vida.

Aprenda a olhar a história do outro, disse o organizador da corrida ilustrativa. E como aprendi, pois dos 250 coleguinhas de primeira série ginasial, apenas cinco eram negros e somente três chegaram ao final e ainda assim depois de interrupções forçadas pela necessidade de ajudar no sustento da casa. Na verdade, somente um conseguiu concluir o segundo grau, no tempo certo, mas mesmo assim, não podendo custear cursinhos preparatórios, demorou cinco anos para ingressar na UFMG. Os outros dois ficaram afastados dos estudos por seis anos, pois não conseguiam pagar colégio particular e ainda tinham que ajudar nas despesas da família. Mas, conseguiram vencer, mesmo sem “privilégios”. O primeiro formou-se em engenharia na UFMG, cinco anos depois de minha formatura e aposentou-se como engenheiro da Usiminas. Os demais, José Augusto de Almeida e Ito Leocádio da Silva também se formaram na faculdade, sete anos depois, dois a mais que o primeiro colega de colégio. Aliás, tive a mais agradável surpresa com esses dois últimos.  Entrei na sala de aula para ministrar a matéria de Construções Rurais – casas, instalações hidráulicas prediais, silos, galpões, etc., no quarto e último ano de Agronomia, na Esal/Ufla, em 1974 e quem estava lá como alunos?  Ito Leocádio  e também José Augusto, aqueles coleguinhas que ficaram para trás ainda no colégio. Infelizmente faleceram prematuramente, pouco tempo depois e não puderam usufruir por mais tempo daquilo que construíram com esforço maior do que a grande maioria de nós. Ainda hoje quando me lembro deles sinto o coração dolorido. Minhas homenagens a esses guerreiros que apesar da falta de “privilégios” e todas as dificuldades, venceram na vida, ultrapassaram os obstáculos.

Há que reconhecer, fomos privilegiados, a grande maioria dos amigos. É necessário que a lição mostrada no citado vídeo, seja de fato levada em conta: devemos olhar a história do outro e reconhecer seus valores. E, lógico, agradecer a nossos pais por tudo que fizeram para nos proporcionar uma vida melhor.

Assim é a vida!

Brasília, 22 de Outubro de 2017


Paulo das Lavras 




Colégio Aparecida- Lavras-MG – Formandos de1967. Deud; Gil Cherem; Gilson Curi; Nordestino; Ito Leocadio; José Augusto de Almeida e José Ernane. 2ª fileira: Luís Magno;
 Manoel; Marcio e Marco; Mauro; Nilton Curi e Nagib.
José Augusto e Ito esperaram mais quatro anos para a conclusão do 2º grau e depois mais três para ingressarem na faculdade. Não tiveram os privilégios da maioria
dos colegas e foram obrigados a “correr” muito mais que todos nós. José Augusto chegou a trabalhar, nesse período, no Café do Sr Marani, na praça central da cidade,
ao lado da atual sede do Banco do Brasil.

Foto: arquivos de Renato Libeck


Homenagem que a Força Aérea Brasileira prestou a meu pai, pelo seu centenário de vida, coincidente com os 100 anos da invenção do Avião, o 14-Bis.  Ele viveu 101 anos e os filhos puderam, com muito orgulho, retribuir-lhe “os privilégios” que ele nos concedeu nessa corrida da vida.

 Foto: Arquivos do CECOMSAER – FAB

2 comentários:

  1. Paulo Roberto: sua crônica me trouxe à lembrança a fisionomia do meu amigo Ito Leocádio, o que "pisava em ovos" (na definição do meu mais que saudoso amigo Vitório). Não sabíamos (nem podíamos saber) que esse seu "pisar em ovos" (um andar diferente) tinha a ver com a doença que o levou tão cedo. Fomos muito amigos, ele que foi ficando para trás nos estudos, por diversas dificuldades, sobre as quais você tão bem escreveu. Valeu. Um grande abraço.

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    1. Foi bem assim mesmo, meu prezado colega do curso colegial, Isaias Edson Sidney. Nem eu sabia desse detalhe da saúde de nosso colega Ito. Percebíamos sua dificuldade de locomoção, mas não imaginávamos do que se tratava. Sua característica principal era a humildade, associada à maneira de tratar seus colegas, com extrema educação e polidez. Todos que o conheceram ressaltavam essas qualidades inatas que ele trazia consigo. Foi uma grande perda e esse sentimento ainda está presente ainda hoje. Assim é a vida.

      Creio que você deve se lembrar também do José Augusto de Almeida. Era mais extrovertido e chegou a me apelidar de Paulo Maquineta. O apelido pegou no bairro, pois eu tinha uma enorme maquineta de soltar pipa (papagaio, dizíamos). Era ótima para laçar as pipas dos "inimigos" e não perdia uma laçada em alta velocidade e voo descendente com bastante linha. Existia uma lei de rua que valia, sem choro: Pipa laçada, derrubada e abatida no ar, passava a pertencer a quem a laçou...rsrs..., daí o apelido...rsrs

      Mas, sobre o José Augusto, houve aquela famosa passagem na aula de Português, do Padre Aloisio ( teu amigo, pois você só tirava notão e era fã dele...rssr). E essa provavelmente você irá se lembrar: O professor o chamou para ler um capitulo do livro com palavras no masculino e feminino. Lá foi o Zé Augusto, na frente da classe e com toda pompa fez a leitura dos masculinos e respectivos femininos. Tudo certo, se empolgou mas quando chegou em :
      O veio - a veia... ele simplesmente leu o véio ..., a véia.... kkkkkkkkkkkkkkkkkkk, a classe veio abaixo, gargalhando e gritando.. olha a véia, olha véia... Até mesmo o padre Eloi Dorvalino Kock (esse era seu nome completo), que era muito sério caiu também na gargalhada, ficando todo ruborizado. A aula terminou ali. E, a partir de então acabou o nome do Zé Augusto..., passou a ser chamado de... Véia e eu me vinguei da “maquineta”, pois fui o maior propagador daquele novo apelido que ele mesmo inventou para si próprio. Ficou conhecido pelo apelido pelo resto de sua vida, inclusive no tempo de faculdade. Aliás, coitado, faleceu há uns sete anos, de enfarte agudo. Que Deus o tenha, querido amigo de infância e juventude.

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