sexta-feira, 19 de abril de 2024

Podemos escolher a morte que desejamos?

 

 


“Já tive medo de morrer. Não tenho mais. Tenho tristeza. A vida é muito boa. Mas a Morte é minha companheira. Sempre conversamos e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte tem a dizer está condenado a ser tolo a vida inteira.” — Rubem Alves

 

 

Poucos já sentiram de perto o bafo da morte. É assustador, apavorante. Por sete vezes, sim, sete vezes, escapei da foice, carregada às costas, daquela sinistra Senhora vestida de preto e cara de caveira. Essas histórias eu conto em livro de memórias. Mas, me lembro particularmente que, numa dessas vezes, quando o Boeing 737-300, novinho em folha, com apenas 200 horas de voo, caiu em desastrado pouso sob tempestade de chuva e vento, com enorme barulho, turbina se desprendendo, pedaços da asa ficando para trás, vinte mil litros de combustível se espalhando e encharcando a todos os mais de 100 passageiros, uma única imagem e preocupação veio-me à mente: a família, esposa e filhinhas pequenas. O que seria delas? Pedi a Deus que as  abençoasse e delas cuidasse. Felizmente todos se salvarem naquele acidente e poucos ficaram feridos, inclusive eu próprio. Desde então mudei meu desejo de como gostaria de morrer. Incrível, mas sempre imaginei que ela, aquela Senhora de preto, me colheria num desastre aéreo, pois eu viajava cerca de 200 (duzentos) dias por ano e o receio era real. Parecia até charmoso o obituário de um jovem executivo internacional dando conta de que morreu prematuramente num acidente aéreo. Mas, a dura realidade, ali, encharcado de querosene, numa grande poça de combustível e lama, ferido, sem forças para fugir de iminente explosão e incêndio, que felizmente não aconteceram, atacou o pânico até que alguém me socorresse,  colocando-me na ambulância do Corpo de Bombeiros do resgate, cuja ação foi imediata. Um trauma muito forte, o bastante para nunca mais imaginar ou romantizar  os momentos finais. Mas, nem sempre o destino obedece aos nossos desejos, pois, não é que, mesmo depois de ter mudado esse desejo, retirando o desastre aéreo de pauta, eles, os acidentes ainda voltaram por duas outras vezes? A segunda vez foi em Washington, com pouso forçado em Dulles Airport/VA, em total pane hidráulica de outro Boeing, um 727/200. Pista preparada com espuma anti-incêndio e tela de aço ao final da enorme pista de 4.000 metros e todos se salvaram, novamente nos braços dos bombeiros e paramédicos. O terceiro acidente aéreo foi num moderno Airbus, com incêndio à bordo na longa rota de Chicago a São Francisco/Cal. Antes que todos se intoxicassem ou se despressurizasse a cabine da aeronave, um desvio de rota e mergulho quase de ponta cabeça em direção ao aeroporto de Las Vegas, salvaram-se todos, com apenas um ferido e hospitalizado naquela famosa cidade dos cassinos onde passamos uma noite (de graça, mas sem graça depois de tamanho susto e consequentemente sem jogatina naquele paraíso dos jogos).

O filósofo Rubem Alves disse:  “A vida é muito boa. Mas a Morte é minha companheira. Sempre conversamos e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte tem a dizer está condenado a ser tolo a vida inteira”. Mais que certo e eu aprendi a dialogar sobre esse tema, embora a maioria das pessoas fuja de tal assunto e não poucas têm pavor. Por isso, certamente, sofrem. Nas redes sociais sempre aparecem relatos de obituários, carregados de sentimentos de dolorido luto pela perda de entes queridos. E nesse sentido, escrevi para uma amiga que durante longo tempo cuidou do pai enfermo:

 “feliz daquele que cuidou da vida de seus entes queridos preparando-os para a partida. Somente assim a alma será recompensada com  a alegria do amor dedicado aqueles  que sempre  nos amaram. Viva sua vida de forma que o medo da morte  nunca possa entrar em seu coração”.

Cuidar dos entes queridos preparando-os para a partida, esse é o conselho. Sim, esta é a maneira mais amorosa e digna para os momentos finais, seja de outrem ou  de si próprio. Quando chegar a minha hora quero estar cercado dos entes queridos, em casa. Nada de UTIs cheias de aparelhos para prorrogar a vida por alguns momentos ou dias. UTIs são ambientes de vida vegetativa, fria, sem o calor do aconchego dos entes queridos com os quais e para os quais você viveu toda a vida. Já escolhi e espero que assim seja, com os momentos finais no leito de minha casa, ao lado dos entes queridos, tal qual aconteceu com meus pais. Este é o paraíso que espero e poder dizer: Obrigado Vida, pois vivi e convivi em paz, com alegria. Acho mesmo que assim deveria ser para todos. Viver em paz, partir em paz, com sentimento de missão cumprida. Não é uma escolha difícil de ser atendida. Assim espero e não gostaria que houvesse funerais em estilo convencional. Nada de velório, cemitérios..., tudo isso é tão triste, causando profunda dor aos entes queridos. Cinzas..., sim, é bíblico: “lembra-te que és pó e em pó te tornarás”.  De minha parte já deixei determinados a cremação e cinzas espalhadas pelos locais marcantes de minha vida e aos quais sou grato. Quando me formei em Agronomia, aprendi uma frase que me marcou profundamente: “Sejamos gratos ao solo, pois ele nos alimenta na vida e nos acolhe na morte”. Junte-se esta frase aos ditames bíblicos e certamente entenderemos o ritual das cinzas.  Tenho certeza de que a cerimônia das cinzas será mais reconfortante para os entes queridos. Terão certeza de que esse ato foi o último desejo de quem partiu de bem com a vida e agora devolve ao solo, que a todos alimenta em vida, as cinzas que lhe pertencem. Não é uma escolha difícil de ser atendida, assim creio, pois aqueles que passam por nós não vão sós e nem ficam sós. Deixam um pouco de si e levam um pouco de nós ... e assim, a morte se torna  a morada da saudade. E que essa saudade, que nada mais é do que o amor que fica, seja de alegrias e não de tristezas.

  Brasília, 17 de dezembro de 2022

 Paulo das Lavras  


 Spirit of American Youth Rising From the Waves” (Espírito da 
Juventude Americana, ressurgindo das ondas). Escultura simbolizando 
a partida do soldado tombado em combate na 2ª Guerra Mundial. Ressurgindo das ondas do mar, onde desembarcaram e tombaram.  Braços estendidos  e olhar para a Glória da chegada do Senhor. 
A estátua está voltada para o ocidente, mirando o caminho  de volta que eles, 
 os soldados, almejavam... sua casa, na distante América, do outro lado do Atlântico... 
 Comovente! 
Foto do autor- Monumento em honra ao Soldado tombado em combate - Normandia, França/dezembro de 2013 


 Morar sozinho no exterior nos induz a pensar sobre os valores da vida. Aqui, em visita ao Cemitério Americano da Normandia - França, onde estão enterrados cerca de dez mil soldados mortos na 2ª Guerra Mundial. Cemitérios são locais que nos trazem tristeza e induzem-nos à reflexão e por isso penso que o melhor local para o repouso dos entes queridos é em forma de cinzas espalhadas pelos lugares que eles amaram e foram felizes. Ao passar por ali, saberemos, com certeza que o nosso ente querido ali está e por algum tempo ali viveu e foi feliz, tão feliz que o escolheu para repousar para sempre. 
Foto do autor- Cemitério Americano da Normandia, França/dezembro de 2013 


 Espalhar as cinzas sob a sombra do ipê amarelo, no mesmo local onde foi enterrado o umbigo do menino, nascido neste quarto que aparece na foto,  parece ser uma boa opção de gratidão à terra amada que o alimentou em vida e, certamente, o acolherá na sua finitude. 
Foto: Dilma de Abreu - Fazenda Sítio Retiro dos Ipês/ Lavras