sábado, 21 de novembro de 2020

Distância

 

         Disse o poeta que a distância e o luto, até virar só saudade e lembrança boa, são dores extremas. E é verdade, pois desde os 12 anos experimentei a dura realidade da distância no internato de um Seminário. Um ano longe de casa, dos pais, familiares, amigos e das coisas mais comuns da terra natal, exatamente aquilo que está entranhado no subconsciente e que lhe dá estabilidade emocional. Por isso sua ausência dói! Aquela primeira grande distância física ocasionou dor extrema e perturbou o menino nos primeiros dias, semanas e meses. E quando se transformou em saudade, a contagem regressiva do tempo passou a ser motivo de maior saudade, ansiedade até chegar a hora de voltar.  A distância durou só um ano, mas foi suficiente para marcar a alma do menino solitário ali no internato.  Quando adulto e já na vida profissional, passei a morar longe da terra natal e ainda assim, viajava duzentos dias por ano em todo o país e no exterior, onde desempenhava missões de governo. De novo a solidão por semanas a fio, nas viagens com distanciamento dos entes queridos, às vezes em locais tão longes que a volta para casa demandava dias, mesmo de avião, com inúmeras conexões e escalas internacionais. Antigamente para se chegar à Guatemala ou Costa Rica, por exemplo, era necessário se deslocar para a América do Norte (Miami) e de lá fazer conexão para voltar para o sul, na América Central, como se estivesse voltando para o Brasil.

 Mas, a dor extrema da distância, quando demorada, vai se esmaecendo e se transforma em saudade. Saudade dos bons momentos do convívio com os entes queridos, amigos e até mesmo as paisagens e feições típicas do lugar onde se viveu por tanto tempo. Nem mesmo os sons e os cheiros da terra natal, como cantado em “Green Grass of Home”, são esquecidos.  Ao contrário estão sempre presentes, até nos sonhos oníricos. Escutar aquela canção de Tom Jones, após algumas semanas sozinho ali nos Estados Unidos onde trabalhava periodicamente, era como embarcar num sonho dos verdes campos da sacrossanta terra natal e ao acordar só restava o profundo sentimento de saudade, nostalgia a dor da distância que dilacera o coração.  Ah..., distância, a distância, esse é  o problema...!

E os sonhos saudosos rolavam sem fim. As ruas, lojas, a escola, o bonde, tudo é relembrado e remasterizado em sonhos coloridos. Ah, que delicia os sonhos oníricos com os riachos, as fazendas, as peladas de futebol no campinho da Estação Costa Pinto, os sinos das igrejas matriz e do Rosário e da capela do Batalhão, o jardim da cidade com o footing das mais belas moças em flor, os colégios e suas fanfarras com taróis estridentes e lindas balizas saltitantes em acrobacias..., tudo, enfim! Na distância a saudade aperta e as reminiscências do subconsciente afloram deixando nossa alma em desalinho. Num fechar de olhos, tudo se torna presente, mergulho nas águas dos riachos, como fazia quando criança ou mesmo no lago do jardim, tal qual ali fui atirado algumas vezes pelos veteranos da Esal/Ufla. Faço isso quase todos os dias de minha vida, pois essa distância já se tornou em doce saudade, de olhos abertos ou fechados, lúcido ou em pleno sonho onírico.

Assim, a distância sempre presente em minha vida, mostrou-me que a dor extrema, alardeada pelos poetas, logo se transforma em saudade, a lembrança boa. Saudade doce que acalma nossa alma e nos alimenta com os valores do amor. O Amor à terra em que nascemos, aos entes queridos e amigos que conosco partilharam e continuam ao nosso lado nessa jornada. Esse é  o maior tesouro de nossas vidas!

 

Brasília, 21 de novembro de 2020

 

Paulo das Lavras


               Jardimde Lavras-MG com sua belíssima Tipuana. Local do footing dos jovens nos finais de semana                                       Foto: Robson Rodarte

 



domingo, 1 de novembro de 2020

Reflexões sobre a morte e vida

 


 

“Já tive medo de morrer. Não tenho mais. Tenho tristeza. A vida é muito boa. Mas a Morte é minha companheira. Sempre conversamos e aprendo com ela. Quem não se torna sábio ouvindo o que a Morte tem a dizer está condenado a ser tolo a vida inteira.” — Rubem Alves

 

... e acrescento, feliz daquele que cuidou da vida de seus entes queridos preparando-os para a partida. Somente assim a alma será recompensada com  a alegria do amor dedicado aqueles que sempre  nos amaram. Viva sua vida de forma que o medo da morte  nunca possa entrar em seu coração. 


         Hoje, Dia de Finados, é um momento propício para a reflexão sobre a morte e vida. Não gosto, como a maioria das pessoas, de pensar e tampouco falar sobre a morte. Medo? Não! Prefiro a alegria da vida. O que é a vida? Assim perguntou Rubem Alves em sua obra “Sobre a morte e o morrer” e prossegue com mais perguntas intrigantes: “Mais precisamente, o que é a vida de um ser humano? O que e quem a define? Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver. A vida é tão boa! Não quero ir embora”.  Ninguém quer ir embora, deixar a vida. Para quem já foi salvo em quatro ocasiões de iminentes fatalidades até que faz sentido. Poucos se livraram da morte iminente por tantas vezes como eu. A primeira por gravíssima pleurite, com apenas dois anos de idade, submetido a grande cirurgia e longo período de convalescência, incluindo um dreno nas costas, que obrigou o menino a ficar quase que 24 horas/dia no colo durante nove meses. Milagre, diziam os pais e demais familiares. A segunda visita da morte foi quando se afogou, aos quatro anos e a mãe conseguiu ressuscitar o quase desfalecido menino resgatado do fundo do enorme tanque reservatório de água. Bem mais tarde, já trabalhando na capital mineira, foi vítima de gravíssima doença pulmonar, tendo o médico recomendado que levassem o rapaz de 23 anos de volta para Lavras..., para morrer! Muito tempo depois, aos 44 anos, sofreu acidente aéreo quando o avião ao aterrissar despencou de certa altura, a 300 km/hora e despedaçou-se com a metade na pista e metade no aterro. Conseguiu, mais uma vez, se salvar “nadando” em meio a toneladas de combustível espalhado ao redor. Dessa vez sentiu, em pânico, o roçar da foice daquela repugnante figura da senhora vestida de preto. Portanto, estou ganhando de 4 x 0 da dona Morte, desde os 44 e agora já aos setenta e cinco anos de idade.

              Um jornalista escreveu uma bonita crônica sobre a morte e a chamou de “piada”, um exagero que surpreende, aparece do nada e seus amigos tem que limpar suas gavetas, seu guarda roupa... tudo, tudo mesmo. Um outro amigo comentou e acrescentou algumas passagens bíblicas, escritas pelo apóstolo Paulo, afirmando que feliz aquele que sabe para onde vai depois que morrer, para a vida eterna e que morrer é lucro e viver é Cristo. Verdadeiro convite à reflexão! Morte e vida, parceiras do nosso dia a dia. Mas, não sei se só é feliz aquele que sabe para onde vai depois da morte. Não concordo com os dizeres do apóstolo Paulo, pois a morte não é lucro. Estou mais com o cronista que disse que a morte é um chiste. Ela nos engana e atraiçoa quando estamos no melhor da vida, cheio de gás, com mil e um planos. Às vezes tomamos o café da manhã e nem almoçamos. Ela chega e nos leva sem mais nem menos, causando um trauma irreparável na família, nos amigos e entes queridos. Ninguém merece isso, a morte prematura. Acho que deveria, sim, haver um limite de tempo para a vida, por exemplo, de 85 a 100 anos. Nesse caso poderíamos viver planejadamente, realizando tudo até certo tempo e depois nos preparar para a despedida, deixando tudo organizado e todos já esperando o desenlace sem grandes traumas. Bem, mas, isto só para as pessoas de bem, pois os maldosos certamente usariam o cronograma para aprontar das suas. Esse é o argumento que muitos religiosos usam para nos convencer que a hipótese é absurda – conhecer antecipadamente o dia da morte. E é mesmo.

             Utopias à parte, o poeta está certo. Que coisa mais sem graça ser colhido no meio da festa (a vida, a convivência com a família e amigos), interromper tudo sem aviso prévio e depois os amigos vão esvaziar suas gavetas, seu guarda roupas, seus livros, seus mimos, como que apagando todas as pistas que você deixou durante uma vida inteira. Que coisa cruel, não para você que se foi, mas para aqueles que ficaram e choram a sua lembrança. Só quem já perdeu abruptamente entes queridos sabe avaliar essa dor irremediável. Para aqueles que já ultrapassaram a faixa da morte prematura é mais fácil. Não tenho medo da morte. Ela é consequência natural. Tudo que vive, certamente um dia fenecerá e isto é inexorável. Tampouco acredito que haja vida após a mesma. Penso que a vida é uma dádiva de Deus e que devemos vivê-la de tal modo que ela, por si só, se torne uma jornada feliz, alegre, em paz consigo próprio e com todos que o cercam ou, em outras palavras, com amor. E isto é o céu! Somente assim, com amor e paz, podemos vencer essa caminhada de 80, 100 ou que sejam apenas 20 anos ou ainda menos, com a certeza que praticamos o bem, cumprimos nossa missão. A qualquer hora que ela, a morte, vier nos buscar nos encontrará felizes e sem nenhuma dívida (falta) para com os amigos e aqueles com os quais convivemos. Tenho certeza que assim procedendo será mais fácil para aqueles que ficam. Assimilar a partida final não é fácil e morrendo “feliz” os amigos terão o conforto de que você praticou o bem e que suas faltas involuntárias nem contam diante do saldo positivo que deixou para todos.

        Assim foi meu pai. Partiu aos 101, sim, cento e um anos de vida. Viveu feliz, cercado de amigos e familiares e sempre a fazer piadas bem humoradas sobre a vida, mesmo aos 100 anos. Longa vida, talvez para compensar a falta de minha mãe que partiu prematuramente aos 49 anos de idade. Pois bem, a dor pela sua morte foi compensada pela sensação que ele viveu feliz, desfrutou a vida e soube leva-la com muita dignidade perante todos que ali estavam e que vieram dar o seu adeus. Parecia sorrir e isso me fez lembrar uma frase que as meninas do colégio gostavam de recitar para os rapazes:

 "Quando tu nascestes só tu choravas e todos sorriam, portanto viva de maneira tal que quando morreres só tu sorria e todos chorem".

 Essa frase, colecionada na juventude, marcou-me para sempre. Viver com alegria, distribuindo sorriso e amor ao próximo. Assim deve ser a vida e por isso não se deve temer a morte inexorável. Seja feliz! O maior legado que se pode deixar aos  familiares e amigos é a certeza de que você partiu em estado de graça, feliz, tendo gozado a vida no sentido mais puro, em comunhão e harmonia com aqueles que  ficaram, embora chorem a perda. Mas, você terá partido sorrindo, confirmando o velho adágio.    

Definitivamente, não precisamos temer a morte. Ela é sorrateira, chega sem avisar, mas, para tanto basta que vivamos com alegria e paz no coração. Seus entes queridos saberão que você viveu bem, partiu em paz consigo próprio e todos. Essa é a grande benção de Deus e  isto já é o Céu, dizem alguns. A vida inclui a morte. Esta chega quando é tempo e há tempo para tudo, diz a sabedoria. Quero me preparar para a hora (in)certa. Que chegue mansa, pois acho que já paguei a minha cota de acidentes graves e doenças que requereram delicadas intervenções cirúrgicas. Mansa e sem muitas dores, e cercado pelos entes queridos. UTI? Nunca! Presenciei muitos amigos nessa situação. Longe de mim os tubos de respiração artificial, desfibriladores e toda a parafernália das unidades de tratamento intensivo. Há tempo para tudo, inclusive para ela, a morte, que deve ser encarada como missão cumprida. Rubem Alves definiu isso muito bem quando disse que “permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca de cigarra vazia”. Finalmente, quero que o meu tempo acabe antes que eu saiba. Vida é a senha da felicidade. É curta, por isso ame-a, pois quando você fica mais velho, tem uma urgência tão grande de viver, que não quer desperdiçar seu tempo com bobagem. Quando jovens estivemos, todos,  muito voltados para a carreira, sucesso, para ganhar dinheiro, mas quando chegamos à velhice, valorizamos mais os afetos, o que não pudemos ter enquanto estávamos trabalhando. A morte é a única certeza que temos e cada um deveria, portanto, treinar a morte durante a vida, assim estaria mais tranquilo quando chegar a sua hora.

 E hoje, Dia de Finados, rememoremos, pois, nossos entes queridos que já se foram, lembrando-nos das alegrias que eles nos proporcionaram em vida e com a certeza de que também lhes retribuímos o carinho e o amor deles recebidos, especialmente com a atenção nos preparativos para a sua partida. Feliz aquele que cuidou de seus entes queridos. A saudade é dolorida, mas a recompensa do amor é maior.

 Brasília,  02 de novembro de 2020

 Paulo das Lavras