terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Lições de viagens e perfil psicossocial

 

Em tempos de quarentena, com isolamento social e sem viagens, o menino pôs-se a recordar seus tempos de viajante pelo mundo. Escaneando seus arquivos encontrou algumas anotações das lições que aprendeu ao longo de suas viagens. Estudou um pouco a psicologia humana durante as longas e demoradas estadas em terras estrangeiras, relacionando-as ao seu dia-a-dia e procurando refletir os valores das experiências de modo a tornar a vida mais feliz. O garoto tímido na infância e na juventude, que pouco falava, especialmente quando fora do ambiente de casa, tinha perfil introspectivo conforme mostrado na série de fotos até os 25/30 anos de idade. Nesse período, quase nunca sorria e mostrava-se sério, compenetrado em seus próprios pensamentos. Mas, ao conseguir relativo sucesso profissional em meio aos top of mind no restrito ambiente da gestão universitária no país e no exterior e receber o reconhecimento de seus pares, o jovem executivo da educação superior experimentou uma mudança radical, de plena liberdade, que expulsou para sempre os sentimentos obscuros e, aquela aura de sucesso, reconhecidamente por todos, nunca mais o abandonou. Foi o turn-point de sua vida e que pode ser facilmente identificado até mesmo pela fotos no meio profissional. Confiança e certeza na responsabilidade de suas ações foram constantes em sua vida desde então.

 Veja o que o menino aprendeu e praticou ao longo de quase 40 anos de vida profissional percorrendo literalmente meio mundo:

1 - As viagens na juventude e estadas em diferentes localidades e contatos com a garotada do meio rural e das cidades como Nepomuceno, Varginha, Volta Redonda, Belo Horizonte, São Paulo, São Carlos, Rio de Janeiro, Perdões, Ribeirão Vermelho, Itaúna e a distante Londrina, no norte do estado do Paraná, dentre outras, ajudaram a moldar a personalidade do menino, pois, o hábito de se mudar de ambiente a cada seis meses do ano, levou-o a desenvolver grande parte daqueles sentidos próprios dos TCK, a chamada Third Culture Kidsfilhos de pais de nacionalidades diferentes, que nasceram num terceiro país, falam pelo menos três idiomas, moraram ou tem relações em mais de três países,  mas não tem ligação forte com nenhum deles. Essas crianças sofrem com a falta de raízes.  

2 - O costume de viajar pelo exterior e conviver com outras culturas, imprimiu no menino um modo diferente de olhar, com curiosidade, que ampliou seus  horizontes enxergando o mundo de forma mais ampla, abrangente, holística e por que não, também a valorizar seus país, suas origens e sua cultura. .

 3 - Gosta, ainda hoje, de viajar e conhecer lugares diferentes, pessoas com hábitos e costumes distintos daqueles cultivados unicamente pelos familiares e vizinhos, sempre procurando respeitá-los e aproveitar o melhor de todos eles.  

4- Adquiriu maneira própria, com outros “parâmetros”, para medir, avaliar e relacionar-se com pessoas “diferentes”. Arguto na arte de “observar” e analisar o comportamento dos outros. Isso facilita a abordagem e aproximação, vez que identifico melhor o perfil cultural das pessoas ao redor, especialmente em viagens, sejam elas no país ou no exterior. Um detalhe curioso é que tanto nos EUA, França e outros países da América do Sul, quando em reuniões sociais, as mulheres apreciam muito ouvir sobre os costumes do nosso país, especialmente no que diz respeito aos direitos femininos, classificando as brasileiras de muito liberais.  

5- Aprendeu a ser mais sociável, relacionando-se mais e melhor com estranhos, fazendo novas amizades em qualquer local que estivesse, mesmo com diferentes idiomas. Por outro lado, Brasília, por ser a capital federal, nos proporciona esse ambiente cosmopolita, seja no trabalho, na vida social ou mesmo com diplomatas residentes a seu lado.  

6- Por necessidade de ofício, sempre procurava estabelecer uma relação sentimental com o local visitado, conseguindo assimilar mais a convivência e o aprendizado que essas novas experiências me proporcionavam, inclusive o domínio do idioma local. Por isso, sempre havia um maior autoconhecimento e melhor inserção no meio social, onde quer que estivesse, qualquer que fosse o idioma.  

7- por falar em necessidade de ofício, deve-se lembrar que o viajante a serviço se diferencia do turista, que é apressado e tem sempre um guia a lhe explicar, razão pela qual não se interessa em relacionar-se com as pessoas do local. Ao contrário, o viajante a trabalho, acaba estabelecendo uma relação sentimental com o local visitado e consegue assimilar mais a convivência e o aprendizado que essas novas experiências lhe proporcionam, inclusive o domínio do idioma local. Advém daí um maior autoconhecimento e melhor inserção no meio social. A arte de viajar, segundo alguns autores, é antes de tudo uma arte de amar, de admirar, uma emoção constante, nem sempre alegre, porém intensa.  

8- Aprendemos a ser mais humilde, tratar melhor e com mais distinção as pessoas, porque quando se é hóspede em um lugar estranho ao seu ninho, não há lugar para a arrogância ou achar que o seu lugar e a sua cidade são melhores. Todo lugar é bom, ainda que só para os nativos e é preciso respeitá-lo.  Portanto, a sabedoria do visitante consiste em saber “penetrar” nesse mundo querido do anfitrião, despindo-se de todos os preconceitos e “curtir” as diferenças, as belezas e os valores de cada local. Aí está um dos maiores prazeres das viagens, sejam elas a trabalho ou simples lazer. Os que ali estão adoram e se enchem de orgulho pela terra onde vivem e ficam contentes em saber que o visitante aprecia o lugar que o recebe. Até mesmo no interior das selvas inóspitas da Amazônia do Peru e Equador, sempre admirei os povos que ali vivem e visitei. Quer ser lembrado para sempre num lugar? Comente sobre um tema que é caro aos nativos, demonstre conhecer e respeitar a cultura local. Se encantam e até nos dizem...mas, como você sabe disso se nem eu mesmo sei? Isto aconteceu, por exemplo até mesmo na culta e bela Paris, pois ficaram extremamente surpresos quando num almoço oficial, pedi licença e cantei, à capela, La Marseillaise, celebrando o 14 de Julho, Dia Nacional da França. Monsieur Michel Gervais, diretor do Ensino e Pesquia Agrícola, perguntou efusivamente, como aquilo era possível se nem eles , os franceses, sabiam de cor seu hino nacional.  

9- A sabedoria do visitante consiste em saber “penetrar” nesse mundo querido do anfitrião, despindo-se de todos os preconceitos e “curtir” as diferenças, as belezas e os valores de cada local. Aí está um dos maiores prazeres das viagens, sejam elas a trabalho ou  lazer.  

10 Graças a esse olhar diferente, com o coração aberto, o menino adquiriu a facilidade de se sentir em casa nas cidades onde já esteve ou mesmo chegando pela primeira vez. Por estar quase sempre só, está mais aberto para se encontrar com outras pessoas, ainda que por pouco tempo.  

11- Quando passa por uma cidade ou país, ainda que rapidamente em escala de voos, sempre dá um alô para os amigos,  mesmo que do aeroporto e sem chances de revê-los, apenas para dizer “estou de passagem por aqui, tudo bem contigo?” Um local novo, diferente desperta mais o interesse,   além dos negócios, se ali já houver  a figura do amigo ou conhecido. E quando ainda não existiam os telefones celulares, os bolsos e valise sempre estavam cheios de moedas/fichas para telefones públicos e lógico um arsenal (estojo e mais tarde notebook) com centenas de cartões de visitas de todos os lugares. Administrávamos mais de 200 (duzentos) brasileiros em cursos de PhD no exterior e outros 500 no Brasil. Some-se a isto o número de dirigentes e professores universitários, orientadores de teses e chegava-se a uma quantia superior a dois mil nomes. Os cartões de visitas eram classificados por país e neste, por cidades, completando às vezes volume superior a uma centena a cada vez que se deslocava  a trabalho para um país.

12- Dominar idiomas foi fundamental e fez a grande diferença no sucesso e prazer das viagens internacionais. No México, por exemplo, tem-se verdadeira adoração pelo Brasil e seu idioma português (teria sido por causa do campeonato de futebol de 1970, quando a seleção canarinho sagrou-se campeã mundial?) e muitos faziam questão de exercitá-lo e para tanto, sempre tínhamos que dar atenção e ser gentil, corrigindo com carinho as frases ditas por eles, pois entendíamos aquele gesto, de esforço para falar o português, como forma de nos agradar e demonstração de carinho para com nosso “maravilhoso” país, como diziam eles.  

13- Essa multiplicidade cultural proporciona uma mente mais aberta, receptiva, compreensiva (empatia) e com horizontes mais amplos, além de nos proporcionar felicidade relativa durante nossas longas permanências em terras estrangeiras. O hábito da curiosidade nos leva às descobertas por conta própria e isto foi desenvolvido desde criança quando sonhava em escalar a serra da Bocaina para “ver” o que havia do outro lado do “mundo”. Mas, se por um lado tudo isso contribuiu para o progresso profissional, de outro, o menino que sonhara com novos horizontes e depois ganhou o mundo e nele passava boa parte dos 365 dias do ano, também herdou e desenvolveu outra característica dos TCK, o sentimento da falta de raízes, dos amigos de infância e a parentela criada a seu redor, gerando algumas vezes stress, o banzo – saudade da terra natal.  

14- Quando se passa um tempo razoável fora, em viagens internacionais, sofre-se muito mais que o normal pela falta das raízes da Pátria distante, a saudade dos familiares ascendentes, descendentes e colaterais, dos amigos de infância e dos colegas de faculdade, especialmente daqueles que não pudemos dar um último adeus. O banzo ataca sem dó. Já fui vítima de pelo menos dois ataques de angústia, quase depressão, nos EUA e na França.  

15- Em todos os lugares que visitou, o menino deixou amigos que ainda hoje, depois de quase cinquenta anos, mantém laços de amizade. E quando falta um deles, dói e dói muito, principalmente por não ter estado mais tempo com eles e não ter podido dar um adeus. Ah..., sim, dói muito, pois a distância se encarrega de multiplicar a dor.  

16 – Há, porém, um contraponto das viagens, o lar, o porto seguro onde estão os verdadeiros laços e a razão do viver, e ali matamos de vez a saudade. A alma relaxa, dentro daquela que é a sua fortaleza, o abrigo contra a violência do mundo.  

17- Aproveite cada dia de sua vida. Nunca deixe a ociosidade ocupar a sua mente. Se nada há para se fazer, leia um livro, escreva, busque um site interessante que lhe acrescente algo. A escrita equivale a uma terapia da alma, pois, você mesmo vai gostar de reler sua produção daqui a alguns anos. Diz um velho ditado que a ociosidade é a oficina do diabo.  

18-  Mesmo que esteja de férias, ou em um lugar qualquer, não deixe de ler, estudar, explorar o local, conhecer novidades, outras pessoas e seus costumes. Se estiver num avião em longa viagem (o melhor lugar para se relaxar e literalmente se sentir nas nuvens), aproveite também para meditar sobre o valor da vida, as boas coisas, a família e os amigos. A vida nada vale sem eles e nem importa se vocês estiver num hotel cinco estrelas, pois sozinho estará vulnerável e as garras do inconsciente poderão lhe atacar com a ansiedade, o pânico e a dor da saudade, Experimentei isso por duas vezes, em quarenta anos de viagens pelo mundo, algumas, no exterior, quando estive por mais de um mês fora de casa.  

19- Leia e viaje muito, tanto quanto puder. A leitura e as viagens abrem nossos horizontes e nos faz crescer espiritualmente, fazendo-nos sentir melhor. Pratique ainda a boa ação, se puder e tiver chance.  - Seja gentil com o estrangeiro em seu país, melhor ainda com o povo que o recebe.  

20- Mas, afinal, qual é mesmo o melhor de uma viagem? Bem... , o melhor da viagem é a volta, a chegada em casa, o porto mais bonito, gostoso e seguro de todo o mundo.... Com certeza! É esse o único lugar onde desligo os radares da mente, os freios sociais, sempre na certeza que ali posso relaxar. Viver é perigoso demais...

            Concluindo, gosto de lembrar que o menino um pouco introvertido na infância e mais ainda na juventude, mudou radicalmente seu comportamento à medida que o tempo passava. Certamente os 40 anos de viagens pelo país e meio mundo, com quase 200 dias/ano fora de casa, contribuíram muito para essa saudável mudança de comportamento diante da vida. Aliás, esta, a Vida nem é perigosa. É para lá de gostosa, boa de se viver.

Viajemos, pois! (agora sim, acabou-se a pandemia de dois anos)

 

Brasília, 28 de fevereiro de 2023

Paulo das Lavras


 Criar vínculos de amizade em viagens? Eis aí, com a filhinha de um amigo, 
 em almoço de domingo em Paris. 
Foto do autor - Paris 1988