quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A escravidão nos tempos da colônia: Os Salles, o trabalho escravo e ascensão social dos negros em Lavras

  



Sobre o autor:


Paulo Roberto da Silva, natural de Lavras-MG (1945). Graduado em Agronomia pela UFLA e pós-graduado em Engenharia Hidráulica e Ambiental pela USP/São Carlos e Avaliação da Educação Superior/UNESCO-UNB. Professor da Universidade Federal de Lavras (1969/75), área de Construções e Meio Ambiente e Pró-reitor de Pós-Graduação. Professor de Legislação e Ética Profissional do Sistema CONFEA/CREA na UPIS-DF (2000 - 2011), Trabalhou no Ministério da Educação - 1975 a 2008, na direção e execução de programas internacionais nos EUA e França. No MEC foi ainda diretor de Avaliação e Expansão da Educação Superior e coordenador da reestruturação da formação nas Engenharias. Foi conselheiro do CREA-MG e do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia - CONFEA, onde também atuou como consultor na reforma das  Engenharias no sistema profissional, até 2011. Consultor de Avaliação da Educação Superior  e ultimamente dedica-se, em tempo integral, aos estudos da História  do Brasil e em especial da terra natal, fundada em 1720, quando ficou conhecida por Arraial dos Campos de Sant`Anna das Lavras do Funil do Rio Grande. Gosto de escrever crônicas e contos, quase sempre publicados no blog: http://contosdaslavras.blogspot.com/



 

Capa: Rogério Salgado

Foto: sede de fazenda da Família Salles – bateção de feijão - 1940 – Lavras MG. 

                        Arquivos Família Salles



A casa grande de uma fazenda em Lavras, de propriedade da família Salles. À frente o proprietário, Anísio Alves de Abreu (1895-1977), casado com Lucinda Augusta Salles (1896-1963).

A foto, de janeiro de 1940, retrata a operação de bateção do feijão no terreiro de secagem (beneficiamento que consiste em bater as vagens secas do feijão com uma vara flexível de modo a separar casca e grãos).

O fazendeiro Anísio Abreu lidera a turma, estando à frente (o mais alto, da esquerda).  Juntos, quatro “camaradas”, sendo três negros, que participam da tarefa.  O mais alto deles é o negro Calixto, líder e chefe da turma de camaradas da fazenda.

Sentados na calçada os filhos menores      e na   janela da direita, da sala de jantar, estão a matriarca da família, Lucinda Augusta Salles e as filhas Nadir (1927-59) e Elza (1929-2017).

O casarão de 18 janelas, vários quartos, sendo um reservado especialmente para o padre capelão que ia celebrar missas na capela da fazenda, foi construído e inaugurado pelo proprietário, em estilo colonial com mestre de obras e artífices portugueses. Lamentavelmente foi abandonada e ruiu completamente em 2015, exatos 100 anos após sua inauguração.

 Nessa casa nasceram os filhos do casal e muitos netos, dentre eles os irmãos Vilma Resende (1944)  Paulo  (1954-2021) e Pedro Resende. Em 1942 e 43 ali também nasceram, respectivamente, Lucinda e Maria Consuelo, irmãs deste autor e ainda Magda Castro, em 1943.

Em fins de 1954 a fazenda foi vendida ao primo dos Salles, Antônio Carnot de Pádua e foi anexada aos terrenos antes pertencentes aos irmãos, Tonico de Pádua, Carnot e João Oscar de Pádua. 


 A mesma casa grande da fazenda dos avós Salles/Abreu, fotografada pelo autor em 2013, já em ruinas. O campo de futebol, em primeiro plano se transformou em pastagem. Ali, o Cel. Anísio Gaspar jogava futebol com os camaradas negros de sua fazenda. Este autor a frequentava nos anos de 1950 e ali,   pela primeira vez falou ao telefone, cuja linha se estendia  por 23 km até a cidade de Lavras 
Foto: do autor, 2013

 


Agradecimentos

    Agradecer é a primeira das obrigações de quem escreve um artigo, um livro e por conseguinte busca informações em entrevistas, livros, revistas, jornais, publicações técnicas, arquivos públicos e redes digitais. Nenhum pesquisador consegue chegar a bom termo se não se valer da rede de conhecimentos e a colaboração de seus pares. Assim, começo por agradecer, sem nominar, aos inúmeros familiares e amigos que contribuíram com informações importantes sobre a vida dos descendentes de escravos em casas e fazendas na cidade de Lavras.

 Agradecimento especial aos autores de livros, fotos e artigos sobre a história de Lavras, dentre eles o decano jornalista e historiador Eduardo Cicarelli, os historiadores Geovani Nemeth-Torres que também é diretor do Instituto Histórico e Geográfico de Lavras - IHGL, Bruno Martins de Castro, de São João Del Rei, Marcio Salviano Vilela, de Ribeirão Vermelho, Vinicius Ferreira Batista, Geraldo Bertolucci Junior que além de seus registros e artigos, deslocou-se até o centro da cidade para fotografar a herma do Professor José Luiz de Mesquita que ilustra este artigo e ainda o eminente professor da UFMG, João Amílcar Salgado, primo dos Salles, de Nepomuceno e autor de vários livros e artigos sobre a história de sua cidade entrelaçada à família Salles de Lavras. De Portugal, terra de nossos ancestrais, agradecimentos especiais ao primo Pedro Castro, cidadão português, da cidade do Porto, pesquisador da genealogia e integrante da Família Salles. Foi ele o grande incentivador para a produção do livro da genealogia da família Salles. Agradecimentos também a seu colega, professor e historiador, de Vila do Conde/Portugal, José Ferreira, que escreveu sobre a vida de nosso pentavô, Manuel da Costa Valle nascido em 1704, em Gresufes, Balasar, região próxima à cidade do Porto.

 Aos fotógrafos Rogério Salgado, Chico do Valle, Katy Julia, Valério Júlio, também historiador e Renato Libeck (in memoriam), colecionadores e autores da maioria das fotos que ilustram este artigo, nossos agradecimentos especiais. Uma imagem vale por mil palavras. Sem suas fotos, nosso trabalho não teria a riqueza que facilita o leitor a “entrar” no contexto. Rogério foi ainda o responsável pelo design da capa e restauração de fotos antigas recuperadas do baú da família. Por último, mas não nesta ordem, quero expressar meu agradecimento aos meus irmãos Maria José de Abreu (Mariinha), Dilma de Abreu e Anízio Pereira da Silva pela atenção e disposição na busca de informações sobre as fazendas, nomes e registros de pessoas de nosso convívio na infância e juventude dos anos dourados de 1950 e 60, quando, então nosso convívio com os descendentes de escravos foi mais intenso e assim pudemos recolher as impressões que nos marcaram para sempre e aqui registradas.

  Compartilhar e discutir ideias, fatos ou registros elaborados por outros autores, nos dá segurança, pois nos permite discernir com mais critério e acuidade e assim retratar os acontecimentos com mais realidade. Inúmeras vezes consultamos nossos parceiros para esclarecer dúvidas. Telefone, e-mail, whatsapp e messenger não davam sossego a eles e às vezes tarde da noite. Nesse sentido, um agradecimento mais que especial ao Professor Jaime de Almeida, da Universidade de Brasília - UNB. Orientador e revisor de inúmeras teses de doutorado, tradutor de obras estrangeiras, dedicou-se com grande interesse à revisão de conceitos e de texto propriamente dito. Sua contribuição, de especialista da área, foi inestimável.   A todos os colaboradores o nosso reconhecimento e gratidão pela parceria.  Entretanto, as falhas por ventura encontradas neste trabalho são de minha inteira responsabilidade, mas posso assegurar a todos que este trabalho foi escrito com muito amor e respeito à causa e principalmente às pessoas nela envolvidas. Minha consciência não sossegou desde quando ficaram para trás, no colégio, aqueles coleguinhas negros que não tiveram a mesma oportunidade que eu. Rendo também a eles, in memoriam, minhas homenagens que compartilho com os leitores.

 Obrigado a todos. 

 

Sumário                                     

 00 – Prefácio.............................................................................................................  05

 

1-  A escravidão no mundo, a captura do negro na África e a chegada ao Brasil....     08

 

2-  O Negro na nossa história – uma dívida social..................................................     14

 

  2.1- Os escravos em Minas Gerais e Lavras......................................................... . 17

         2.2- A Revolta de Carrancas de 1833 ...................................................................   21

     2.3- A execução do escravo Joaquim Congo em Lavras, em 1838....................     21

     2.4- Violência e assaltos nos caminhos dos Salles nas Lavras do Funil.............    23                 

               2.4.1 – Efeitos e resquícios da violência na Escravidão em Lavras ........    24

               2.4.2 – Porte de armas em Lavras..............................................................   26

               2.4.3 – consequências da escravidão - racismo e preconceitos.................    28

 

 3- Os Salles e o trabalho escravo nas fazendas e na cidade.....................................   30

 4-  Os anos de 1950/60 e as influências da escravidão em Lavras..........................    35

      4.1- As favelas na cidade de Lavras, 1888 – 1968 ............................................    44

 

 5-  A Educação e a ascensão social dos negros em Lavras ....................................    45

           5.1- As cotas raciais nas universidades .......................................................    46

6- Conclusão............................................................................................................    48

 


 

 

Prefácio

Não é fácil falar sobre escravidão em casa. Mexe com sentimentos de todos nós. Na manhã de certo dia, no final da década de 1990, o enorme Airbus 330 da TAP pousou no Aeroporto Internacional de Brasília. O aguardávamos bastante ansioso. Iria receber o garoto angolano, Edson, de apenas dez anos de idade. Negro, filho de uma brasileira e marido angolano, chegava ao Brasil depois de oito anos vividos em Luanda, a capital do país africano de Angola, terra natal de seu pai que o sequestrara de sua mãe, em Brasília e para lá o levou. O segundo marido de sua mãe, um descendente de italianos, vindo da fazenda de meu pai em Lavras, trabalhava em minha chácara. Para lá levaríamos o garoto, órfão de pai, que morrera durante a guerra civil naquele país africano e então retornava para o Brasil. Dúvidas e inquietações mil assaltavam minha mente. Como seria e estaria aquele desconhecido garoto, teria boa saúde, havia estudado as primeiras letras? Tudo isso passava em nossos pensamentos e foi inevitável associar a situação à vida que passamos com os negrinhos da fazenda e das escolas em Lavras, onde o autor vivera a infância e a juventude. Mais longe ainda voaram os pensamentos, associando a viagem de Angola para o Brasil com o tráfico em navios negreiros que traziam escravos. Não, não pude deixar de me entristecer ao lembrar-me da dolorosa escravidão vivida em nosso país e que ainda hoje tem consequências para todos os brasileiros. Uma enorme dívida social. Mas, ali estava mais uma oportunidade para sanar um pouco os erros do passado. Haveria de receber o menino angolano, que deixava o conturbado país de seus parentes e que enfrentava longa revolução civil. Receber, acolher e aqui propiciar-lhe uma vida digna, livre, com educação e lazer como merece toda criança. Chegou o voo, depois de longas horas cruzando os céus do Atlântico, mas desta vez, diferentemente, o menino não foi sequestrado e nem colocado em saco e entregue ao comandante do navio negreiro e metido num porão superlotado. O comandante era, desta vez, de luxuosa e enorme aeronave, onde viajou com todo conforto. Desembarcou acompanhado de uma comissária que nos entregou a papelada e o menino.  Inibido, franzino, muito magro, com forte sotaque angolano, quase não falava, vestia roupas surradas e trazia apenas uma sacolinha de papelão, de supermercado, contendo quase nada. Difícil foi conter a emoção, ainda mais quando contou que passava fome e dormia em cima de árvores para fugir das minas enterradas pelos rebeldes que lutavam contra o governo na capital Luanda. Definitivamente, a escravidão no Brasil deixou marcas indeléveis, tanto nos descendentes dos negros escravizados como em nós que com eles convivemos nas fazendas e nas cidades. Qualquer evento envolvendo os negros, como esse do menino que recebi no aeroporto e acolhi em casa, destrava o subconsciente e nos faz refletir sobre os valores da vida.  

Falar sobre a escravidão não é fácil, mas, este artigo faz parte do quarto capítulo do livro “Genealogia da Família Salles de Lavras”, que se encontra em fase final de produção. O livro conta a história dos Salles desde a chegada do patriarca da família, o imigrante português Manoel da Costa Valle (1704-1783), casado com Maria do Rosário Pedrosa de Moraes, natural de Guaratinguetá-SP, que chegou ao Brasil ainda jovem, em 1720. Casou-se em Guaratinguetá-SP e de lá veio se estabelecer em Lavras no ano de 1750.  Nessa cidade nasceram todos os filhos e um deles, Antônio de Pádua da Silva Leite (1765-1849), ganhou o sobrenome Pádua por promessa de seus pais ao Santo Antônio de Pádua. Por sua vez, esse filho também fez promessa a outro santo, São Francisco de Salles e colocou esse sobrenome em um filho. Fortunato Antônio Salles (1806-1861) foi o primeiro filho de segundo casamento. Dele descendem famosos lavrenses como Francisco Salles, Firmino Salles, Pedro Salles e outros. O segundo filho foi Saturnino de Pádua (1811-1888) que gerou não menos importantes figuras da cidade como Misseno de Pádua, Cincinato de Pádua, João Oscar de Pádua, Carnot e Antônio Alves de Pádua (Tonico) dentre tantos. Outro ramo descendente do patriarca Manoel da Costa Vale, os Costa, que também, contribuiu com ilustres figuras de destaque em Lavras como o grande educador Firmino Costa. Os Salles, Costa e Pádua foram das primeiras famílias a se estabelecer em Lavras e desde então tiveram acentuado protagonismo no desenvolvimento da região, conforme citado na obra publicada em 2018: História Geral de Lavras - Volume I, do historiador Geovani Nemeth-Torres.

 O livro da genealogia dos Salles trata também das origens da família em Portugal, cujo texto foi especialmente escrito pelo eminente professor e historiador português, José Ferreira. São ainda abordados os principais temas da vida da família, como a chegada do patriarca ao Brasil, a ocupação territorial em Lavras e região, os costumes e a vida social em Lavras nos tempos da Colônia e do Império, a religiosidade, festas, nomes de destaques na política e vida social na cidade e na província das Minas Gerais e ainda a genealogia completa da família Salles. O capítulo 4 do livro é inteiramente dedicado aos costumes e a ocupação territorial da família Salles/Costa/Pádua na região de Lavras, falando da herança cultural diferenciada dos portugueses em relação aos espanhóis (cidade x campo) e em especial da relação dos Salles com a escravidão, tema central deste artigo.

 Outros itens compõem o capitulo, abordando a formação das famílias no sul de Minas, o porquê da escolha dos sobrenomes Salles, Costa e Pádua e ainda as moradias com a casa grande e humildes casinhas dos camaradas já no século XX. No campo social durante e após a escravidão são abordadas questões específicas de Lavras, como a chacina de 1833 em Carrancas, a execução pública de escravo na forca da Rua do Cruzeiro, a guerra contra os quilombos e o medo generalizado de ataques de foragidos, mas destacando-se também a participação dos negros na cultura, nas artes, educação e desenvolvimento de Lavras. 

       Para falar sobre a escravidão em Lavras, com ênfase nas relações da Família Salles com o trabalho escravo e de modo a proporcionar melhor compreensão por parte de leitor, iniciamos com a descrição do sistema escravocrata estruturado. Não era apenas um sistema comercial de compra e venda de gente. Era uma organização estruturada de poder, distribuição e movimentação de dinheiro público, de terras, riquezas como o ouro e outros benefícios e privilégios. A elite tinha acesso a tudo isso e somente eles, os escravocratas. Pior de tudo foi que, além de todos os benefícios usufruídos, ainda usavam a posse de escravos como justificativas para obterem mais terras e benefícios de suas altezas reais ou dos governantes provinciais da colônia. Foi assim em Lavras, com o capitão Francisco Bueno da Fonseca e filhos que, em 15 de janeiro de 1737, solicitaram a primeira sesmaria de Lavras, a concessão das terras que se iniciavam na Ponte do Funil e se estendiam até a foz do ribeirão das Faisqueiras, em frente à cidade de Ribeirão Vermelho, com a alegação de que ali já estavam há sete anos e possuíam grande número de escravos (grifamos).

    Assim, iniciamos pelo processo de captura dos escravos na África, em suas tribos de origem, também chamadas de nações, quando então eram vendidos pelos reis aos traficantes, seguindo-se o suplício da viagem de dois meses nos navios negreiros que cruzavam o Atlântico rumo ao Brasil. Aqui eram leiloados no cais do Valongo, no Rio de Janeiro e em seguida levados em caravanas, a pé, para o interior das Minas Gerais. É em Lavras que se desenrola o principal objetivo deste artigo, onde são abordadas questões sobre a escravidão nos tempos da colônia e as relações da família Salles com o trabalho escravo e a ascensão social dos negros. Assim, da abolição pulamos para os anos de 1950/60 quando, ainda menino, seguimos os passos das relações da família com os descendentes de escravos, nas fazendas e na cidade. Este recorte no tempo e no espaço nos deu melhor compreensão dos acontecimentos da escravidão e dos quais muitas das ações discriminatórias e de injustiças sociais perduram até hoje em pleno século XXI, mais de 130 anos já decorridos desde a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. A escravidão não se extinguiu com a abolição, pois permaneceram os grilhões que impediram o desenvolvimento dos libertos. Sem trabalho, sem a educação, teto e comida, restou quase nada a eles e muitos partiram para criar as favelas na periferia da cidade. Lavras, região típica de produção de café e leite, com alta concentração de escravos, retrata muito bem o que se passou em outras partes do país.

       Conhecer e compreender a questão são os primeiros passos para a reflexão individual e coletiva na busca da solução justa diante dessa inegável dívida social para com os descendentes dos escravos negros. Foram subjugados por mais de 300 anos de escravidão e somente agora, mais de um século após a abolição, a sociedade começa a criar mecanismos para a extirpação das desigualdades sociais e combate mais ostensivo ao racismo. Deixemos, portanto, a retórica e partamos para ações concretas e nesse sentido, o autor abre um parêntesis para repetir as palavras de uma cronista: “A estrada que leva quem escreve a quem lê é uma via esburacada, cheia de mal-entendidos, cortada por crenças, preconceitos, humores e idiossincrasias mil”. Assim, ao tratar de tema tão sensível como a escravidão, escravos, negros, torturas, execuções ou mesmo falar da história e vida de seus descendentes, dispensamos os termos recomendados pelas cartilhas do suposto “politicamente correto”, que evita certas expressões como negro, descendente de escravos e outras. Achamos um exagero de retórica, falsidade etimológica mesmo, daqueles que desejam mudar os fatos históricos. Pior ainda, quando o veto ao uso de palavras e expressões se baseia em mitos, lendas e falsas etimologias, usados para narrativas que visem apenas embasar interesses de momento, como se o uso de certas expressões fosse amenizar a realidade. A filosofia nos ensina que as palavras são signos que criamos para designar aspectos ou fragmentos da realidade que nos constitui e nos ultrapassa. Portanto, a linguagem é um símbolo que representa o real. O real, ou a realidade, é aquilo que pode ser visto, testemunhado. Ora se alguém é negro ou branco, o que pode ser testemunhado por muitos, o que é, então, que autoriza proibir a palavra "negro” ?  A historiadora Lilia Moritz Schwarcs (30), ensina-nos que é muito comum:

 

“em momentos de crise ou de mudanças institucionais, o campo da história se torna muitas vezes um campo de guerra. Travam-se batalhas pelo monopólio da “verdade” e se criam ou reativam mitos, de modo a produzir uma versão do passado que melhor justifique projetos políticos ou de poder”.

Foi exatamente o que aconteceu recentemente em nosso país, quando governantes populistas, do período de 2003 a 2016, criaram novas terminologias para fatos históricos, sob o eufemismo do “politicamente correto”, censurando, vetando o uso de palavras e expressões que já foram absorvidas pela língua há séculos e que só são empregadas com os sentidos, significados que têm e estão vivos e atuantes na mente de quem fala a língua. Ora, não é assim que se combate o racismo. Obviamente que não será por meio de falsas etimologias. Expressões, palavras que depreciem seres humanos têm que ser denunciadas e extirpadas. Mas têm que ser palavras e expressões usadas intencionalmente, com o objetivo manifesto de exercer discriminação e violência simbólica. Assim, as palavras negro, preto, empregada doméstica, por exemplo, não encerram em si, nenhuma ofensa racial. Apenas expressam os significados históricos que têm, não havendo nenhum dolo ou má fé em pronunciá-la num contexto de respeito e seriedade. Se há ou houve algo de errado foi da parte de quem criou o suposto “politicamente correto”, induzindo a pensar que se combate racismo por meio de falsos etimologismos.  Sempre procurei ser fiel ao significado das palavras no contexto original da época sem, no entanto e nunca, ser ofensivo e assim retratar a realidade aprendida e vivenciada em meio à família Salles/Pádua e suas relações com os escravos, antes e depois da abolição. Sempre os tratamos com o máximo respeito e não poderia ser diferente ao escrever sobre suas e nossas vidas entrelaçadas desde os tempos da prazerosa infância nas fazendas e na cidade.

Boa leitura! 

                            Paulo das Lavras

Brasília, 06 de janeiro de 2022

(Dia de Santos Reis – tradição das festas dos escravos no Brasil Colônia)   



 

 

A escravidão nos tempos da colônia: Os Salles, o trabalho escravo e ascensão

                                                                      social dos negros em Lavras

 

 

1- A escravidão no mundo, a captura do negro na África e a chegada ao Brasil

               A escravidão existe desde os tempos bíblicos, mas eram casos localizados e não generalizados ou transformados em negócios. Foram os árabes muçulmanos que estimularam, no século VII, o comercio de escravas para concubinas e homens para os trabalhos da lavoura, comércio e exércitos. A expansão portuguesa na costa africana se deu a partir de 1415 com a conquista de Ceuta, a ocupação das ilhas de Cabo Verde a partir de 1460,  a ultrapassagem do Cabo das Tormentas em 1488 - depois chamado de Boa Esperança e finalmente o desembarque na Índia em 1498. O descobrimento do Brasil logo a seguir foi consequência das viagens à Índia e naquela época o tráfico negreiro já existia e com o aval da igreja católica romana. É inacreditável que a Igreja Católica, por meio da bula do papa Nicolau V, tenha autorizado o rei de Portugal, D. Afonso V, a invadir, buscar, capturar e subjugar os negros pagãos da África. A igreja achava justa a escravização porque supostamente preservaria a vida dos escravos em meio às guerras violentas. Esqueceu-se, o papa, que maior violência é a escravização, que rouba a alma, a alegria da vida. Na verdade, o objetivo era outro, fortalecer a religião católica que perdia terreno para os muçulmanos. Além disso, havia à época as teses estapafúrdias de “maldição divina”, baseadas em passagens bíblicas, dando-os como descendentes de Caim, filho de Adão que matou o irmão, ou de Cam o filho amaldiçoado de Noé, verdadeiras teses racistas. Aqui no Brasil, os índios foram escravizados com a ajuda dos jesuítas e aprovação do papa, usando o mesmo argumento de evangelização e assim os atraíam para o meio do colonizador. Só não prosperou por causa da rebeldia do índio que não se submetia ao trabalho forçado e era bom na flechada e sabia fazer tocaias nas matas que conhecia como a palma da mão. Ademais, além desse grande obstáculo, havia ainda o fato de que os indígenas eram muito severamente atingidos pela varíola e outras doenças trazidas do Velho Mundo, morrendo aos milhares. Assim, por conta desses dois importantes fatores, os portugueses acabaram abandonando os objetivos de escravizá-losEstudos mais recentes (29) indicam que os impactos de doenças europeias foram determinantes na extinção da civilização andina e os especialistas, historiadores, acham que não deve ter sido muito diferente no Brasil, razão pela qual os portugueses também deixaram de escravizar os indígenas por aqui.  

Diante do fracasso na escravização do índio, a  opção foi buscar o negro no continente africano e com as bênçãos do papa. Entre os anos de 1501 e 1870, cerca de 12,5 milhões de negros foram arrancados de suas casas na África, sequestrados e escravizados. Capturados, eram forçados a marchar até o litoral africano, onde os traficantes os encarceravam em fortalezas bem armadas e protegidas contra assaltos ou rebeliões e fugas. Em seguida eram vendidos a traficantes internacionais, a maioria de portugueses com destino às suas colônias na América. Amontoados, acorrentados, mal alimentados e açoitados nos navios negreiros, muitos morriam durante a longa travessia do Atlântico que durava, no mínimo, dois meses. Seus corpos eram atirados aos tubarões que, em cardumes, seguiam na esteira do navio até o Rio de Janeiro, destino final da viagem. O desespero era tanto que muitos pulavam no mar, buscando abreviar a morte, mas, sempre evitada pelos marujos, pois representava prejuízo financeiro para o comandante da embarcação e seus financiadores.

 Não é fácil aceitar a triste realidade da escravidão que durou mais de três séculos no Brasil e no mundo. Como pôde isso acontecer e perdurar até o final do século XIX? Por que escravizar alguém, retirando-lhe a liberdade, o direito de ir e vir, impor-lhe o trabalho forçado, separando-o da família? Por que a igreja se associou ao comércio negreiro, expedindo autorização ao rei de Portugal para capturar e escravizar os negros? Por que o Brasil foi a última nação americana a abolir a escravatura? O que foi feito no pós-abolição para reparar os danos causados aos negros? Muitos gostam de indagar isso e até se indignam com a situação passada. 

 

Mas, não se pode falar dos escravos da família Salles, ou da província de Minas Gerais ou ainda do Brasil inteiro com suas explorações de pau-brasil, cana de açúcar, ouro, café e serviços para toda a sociedade escravocrata sem que conheçamos a história da escravidão no Brasil e no mundo. Quais foram os efeitos da escravidão com suas torturas sobre a vida dos negros e seus descendentes? Por que, ainda hoje perduram atividades de cunho discriminatório? Por que 19 das 50 cidades mais violentas do mundo estão no Brasil? Por que existe, persiste e não acaba nunca, verdadeira guerra civil nas periferias das cidades brasileiras, principalmente no Rio e São Paulo e cujos enfrentamentos são mostrados diariamente nos noticiários? Alguém já perguntou a eles, os negros, o que acham? Quais os traumas no pós-abolição, ainda hoje, mais de 130 anos depois? Pois bem, este autor viveu e conviveu, na infância e nos tempos de escola, com filhos e netos de ex-escravos quando ainda se contava menos de 60 anos após a decretação da abolição. Alguém já imaginou como foi para os libertos a segunda feira 14 de maio de 1888, o dia seguinte à abolição de 300 anos de violenta escravidão? Simplesmente acordaram despejados, sem trabalho, moradia, comida e um existir sem dignidade. Só lhes restaram os caminhos das estradas, vagando em busca de algo, ou melhor, de tudo que lhes faltavam. Este autor, criança ainda, nem precisou perguntar isso aos filhos e netos de ex-escravos. Sentiu na expressão facial a tristeza de cada um daqueles descendentes, os poucos que permaneceram nas fazendas. Contavam-nos suas histórias com a mais profunda dor no coração ao relembrar tudo que seus pais lhes repetiram. Tinham liberdade para contar e expressar sentimentos, pois sempre tiveram o apoio de nossa mãe, uma Salles, que conviveu com eles por toda a vida, protegendo-os, sempre. Os meninos da casa grande, crianças, se comoviam com as histórias dos tempos da escravidão e foram ensinados a amá-los como irmãos.

 

 

Hoje, passado tanto tempo, é comum se esquecer de que a sociedade brasileira ainda cultiva o hábito patrimonialista, nunca abandonado pela nossa sociedade, conforme afirmam os historiadores. Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Laurentino Gomes, Raymundo Faoro e outros da atualidade que, inspirados em Max Weber, autor do conceito de patrimonialismo, estudaram os mecanismos da formação e manutenção do poder das oligarquias, tanto na política quanto nas relações econômicas. O patrimonialismo surge quando não há distinção entre o público e o privado e as duas coisas se misturam. Na carta de Pero Vaz de Caminha, informando ao rei sobre a descoberta do Brasil, pode-se encontrar sinais de tratamento da coisa pública transformada em uso comum ou propriedade privada. O patrimonialismo é, portanto, quando o político cria mecanismos de controle de estruturas e agências de Estado para obter privilégios e vantagens pessoais. Isto se acentuou na época do Império com o domínio dos fazendeiros, a elite rural que financiava e dominava o Estado. Hoje acontece o mesmo na politica. Em pleno século XXI, repete-se o modus operandi que dominava o Império Brasileiro de dois séculos atrás. A diferença é que no Império se apropriavam de pessoas – os escravos e agora se apoderam dos recursos financeiros, bilhões de reais sob a forma de “Orçamento Secreto”. Suas excelências, os políticos, podem usá-lo à vontade, secretamente, sem que ninguém lhes possa cobrar responsabilidades. Antigamente as “Excelências”, os deputados da corte do Império, declaravam que não abririam mão de seus lucros e que jamais pagariam salários para seus escravos. De fato nunca pagaram, tanto assim que a situação salarial dos trabalhadores rurais só começou a se normalizar depois das reformas aprovadas no início da década de 1960. Se antes as Excelências declararam que não pagariam salários, hoje, além dos gastos secretos, alguns políticos ainda sequestram os pagamentos de seus funcionários, praticando a famosa “rachadinha” do salário de seus servidores.

Nos tempos do Império a oligarquia, representada principalmente pela elite rural, emparedou a Princesa Isabel e a impediu de incluir na Lei da Abolição o benefício de doação de pequeno lote de terras para a subsistência dos escravos. Após a abolição foram, ainda, aprovadas leis para dificultar a vida dos libertos. Baixou-se a idade de responsabilização penal e de repressão à vadiagem, para forçar os libertos a aceitar salários exíguos, e para prender e, em certos casos, deportar capoeiristas, ou ainda para enviar crianças ao trabalho forçado nos arsenais militares e outras áreas que exigiam mão de obra. Ora, cultivar a terra era a única coisa que praticamente a maioria dos escravos sabia fazer. Mas, ainda assim, a elite rural preferiu jogar os negros na miséria, literalmente na estrada e na periferia dos vilarejos abandonados à própria sorte. Hoje, quase século e meio depois, ainda vemos manchetes nos jornais e noticiários televisivos mostrando a vida miserável de grande parte dos negros, com panelas vazias, morando em locais insalubres com perigo de desabamentos e inundações, alta criminalidade e sem a menor presença de serviços públicos. A geografia da fome, mostrada por Josué de Castro em 1946, ainda está presente em pleno século 21, com crueldade e miséria nos territórios de extrema pobreza. 

Não é de se estranhar que ainda hoje persistam tais condições, pois, desde sempre a escravidão foi uma atividade comercial estruturada que proporcionava lucros a todos que dela se serviam. Chegou ao Brasil logo após a sua descoberta, quando o governador Martin Afonso de Souza trouxe da África, em 1532, os primeiros escravos negros para trabalhar nos engenhos de açúcar e na exploração do pau- brasil. Desde então e nos três séculos seguintes, cerca de seis milhões de negros foram importados da África, diretamente para o Brasil, a metade de todos os escravos saídos do continente africano para a escravidão no mundo inteiro. E por que esse enorme fluxo de escravos? Interesse comercial de Portugal. Primeiramente pelo fato de que em 1640 ao libertar-se do domínio espanhol, o país estava na miséria. Precisava achar ouro em suas colônias para recuperar as finanças. Por isso incentivou os paulistas com as chamadas Entradas e Bandeiras em busca do ouro. Foi assim que Fernão Dias Paes Leme iniciou sua bandeira em 1674 e andou pelos sertões de Minas por sete anos, semeando roças e povoados, desbravando os primeiros caminhos, na verdade picadas para a tropa de burros e seus homens que incluíam escravos índios, a maioria, poucos negros africanos e mulatos. O ouro só foi descoberto em 1692, mas, já em 1705, começou a grande imigração de portugueses para o Brasil, na chamada “febre do ouro”. A evasão foi tão grande que o rei de Portugal teve que proibir a saída dos portugueses, pois temia-se que o país se esvaziaria. A invasão de toda sorte de gente ao território das Minas Gerais foi tão grande que, em 1720, expediu-se uma lei proibindo totalmente a entrada nas Minas Gerais.

 Mas, a descoberta do ouro e esse afluxo de pessoas, vindas de Portugal e toda parte da colônia brasileira, esvaziando-se até mesmo os engenhos de açúcar do nordeste, provocou a escassez de alimentos e carestia de todos os gêneros e consequentemente a falta do braço escravo negro africano. Este, o negro, seria a solução, pois o investimento na escravização dos índios não era seguro em razão das epidemias e pela forte oposição dos jesuítas. Foi então que se expandiu o fluxo de escravos, atingindo-se a impressionante cifra de seis milhões de escravos negros africanos embarcados em 300 anos de tráfico para as Américas. Desse total, 30% (trinta por cento) morreu durante a viagem. Cerca de 1,8 milhão de negros cativos não resistiram à inanição, insalubridade e maus tratos durante a longa travessia do Atlântico que durava dois meses ou mais. O elevadíssimo número de mortos, durante a viagem de travessia do Atlântico, dá uma ideia de como eram tratados os cativos desde a sua captura e viagem para o Brasil. E por que tantos escravos? Simplesmente porque o trabalho, no sistema escravista, era considerado algo degradante que feria a reputação de um homem livre, principalmente se fosse branco, europeu e português. Portanto, o trabalho braçal era só mesmo para escravos e estes não faltavam, pois o tráfico já estava estruturado com importação liberada e incentivada, além do que os reis de Portugal já tinham até mesmo autorização do papa da poderosa igreja católica. Ademais as sucessivas guerras na península ibérica contra os mouros e mais tarde contra a Espanha,  destroçaram a economia e finanças de Portugal e a ordem do reino era buscar ouro nas colônias e, efetivamente houve a descoberta do precioso metal em Minas Gerais, no ano de 1693. Mal começou o século XVIII e disparou a febre do ouro em Minas com intensa demanda de mão obra escrava.

 

 
Porão de navio negreiro ou tumbeiro, onde se acumulavam centenas de negros acorrentados uns aos outros. Trinta por cento deles morriam de inanição e doenças por insalubridade. Nessa belíssima pintura de Rugendas, o marujo ordena aos escravos que retirem o corpo de um negro morto, o qual está sendo içado para o convés, de onde será lançado ao mar e servirá de comida para os tubarões, cujo cardume seguia na esteira do navio até o porto do Rio de Janeiro. 
Foto: Rugendas, J.M. Viagem pitoresca através do Brasil (1835), pintura, Prancha 1, 4ª Divisão.   Edições Ouro. Rio de Janeiro

 

  Em Lavras a chegada dos escravos se deu praticamente com a sua fundação. O historiador Nemeth-Torres aprofundou as pesquisas em fontes primárias e afirmou com segurança que os escravos chegaram a Lavras,  no ano de 1729, com os fundadores da cidade que se estabeleceram na sesmaria, cujos limites se iniciavam no funil do Rio Grande e estendiam-se  até a barra do ribeirão das Faisqueiras, o qual desagua na margem esquerda do rio, em frente à atual cidade de Ribeirão Vermelho. Na carta de sesmaria concedida a Francisco Bueno da Fonseca e filhos, em 15 de janeiro de 1737,  havia a seguinte afirmação sobre a existência de escravos:

 “... que eles suplicantes se achavam com grande número de negros.... e porque tinham posses e benfeitorias há mais de sete anos...” (1).

 

Nos anos seguintes, durante o ciclo da mineração em Lavras e principalmente após o esgotamento das minas de aluvião, a produção agropastoril se intensificou, demandando grande volume de mão de obra na ocupação e exploração das terras. A solução foi a

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(1) Nemeth Torres, Geovani- História Geral de Lavras, Volume I, 2018. 296 p.: il.  pgs 42-43.



Foz do ribeirão das Faisqueiras no Rio Grande,

em frente à  cidade de Ribeirão Vermelho

Foto: coleção Renato Libeck - 1984 



importação de escravos negros de suas colônias africanas. O tráfico de escravos era uma atividade totalmente estruturada e as primeiras instituições que se organizaram para a exploração comercial dos escravos foram as agências bancárias inglesas, que financiavam as expedições de navios negreiros. A segunda organização estruturada localizava-se no próprio continente africano, a pátria mãe dos negros e era  constituída pelas nações, cujos reis guerreavam entre si e escravizavam os povos vencidos. Aprisionados em guerras ou mesmo por meio de expedições de captura, às vezes comandadas por tropas dos capitães de navios, os negros eram levados para as feitorias portuguesas situadas em toda a costa da África, onde eram vendidos aos traficantes. Estes, os traficantes, se constituíam na terceira instituição estruturada do tráfico negreiro e se davam ao luxo de construir feitorias com fortalezas armadas, bem protegidas contra assaltos, verdadeiros “armazéns de escravos” que aguardavam  compradores. Por último aparecem na cadeia do tráfico de escravos a quarta instituição, os compradores brasileiros, grandes proprietários de terras que encomendavam a vinda dos escravos. No Valongo, ocorriam os leilões daquela “mercadoria”, a mão de obra para as fazendas e em menor escala para serviços do comércio e residências da cidade.

 

Como se vê, a escravidão era uma atividade totalmente estruturada que proporcionava grandes lucros para todos, as agências bancárias londrinas, traficantes instalados na costa da África, reis de nações africanas que vendiam os escravizados, comandantes de navios negreiros, traficantes brasileiros instalados no cais do Valongo e os próprios compradores e usuários dos escravos. É de doer a alma a violência praticada contra os negros, arrancados à força de suas casas, sua família. Mais dolorido, ainda, foi conhecer a história de um arquiteto baiano, Zulu Araújo, que em 2013 em visita ao rei da nação africana ticar, Gah Ibrahin, no país de Camarões, na África, terra de seus ancestrais e não muito distante do território dominado pelo grupo terrorista Boko Haram. Confrontou o rei perguntando-lhe, de surpresa, mas de forma bem serena: “Eu gostaria de saber como é que nós, que somos da etnia ticar, fomos parar no Brasil”. Surpreso, o rei não teve resposta e pediu para responder no dia seguinte. Assim o fez, respondendo que seu povo fez aquilo por ignorância e para se livrarem de maus elementos dentro da comunidade. Pediu perdão ao arquiteto e disse que precisavam se reconciliar com aqueles que foram deportados, vendidos aos mercadores portugueses. O arquiteto Araújo, mais surpreso ainda com a confissão do rei e o pedido de perdão, declarou que a presença dele, ali, representava a materialização  da reconciliação (2).

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(2) Gomes, Laurentino.  Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares - Volume I. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019. 479 p. pag 172-174

          O volume dos lucros advindos da atividade do tráfico de escravos, era algo extraordinário para a época. Basta dizer que em 300 anos, de 1550 a 1850, foram enviados ao Brasil seis milhões de negros cativos, dos quais morreram cerca de 30% antes de chegar ao destino. A maior parte dos escravos foi importada durante o período chamado de “febre do ouro”. A necessidade de braços para a extração do ouro era desmedidamente grande e proporcional à intensidade da imigração de portugueses para o Brasil naquele período. Minas Gerais possuía grande disponibilidade de terras apropriáveis e chegou a ter, no século XIX, a maior densidade demográfica de todo o Império, concentrando-se também o maior população escrava, cerca de 2,5 vezes superior à média nacional. Eram 168.543 escravos em 1819, saltando para 381.893 no ano de 1872. Foram importados cerca de 320 mil escravos na primeira metade do século XIX, verdadeira explosão da demanda em função da expansão das atividades mineradoras e, por consequência, o aumento da produção de alimentos para toda aquela gente que chegava aos sertões das “Geraes” (3). O censo do império revelou que entre 1831e 1840, cerca de dois terços (66%) das propriedades rurais de Minas Gerais, de pequeno tamanho, tinham até cinco escravos. Em apenas 163 delas havia mais de 30 escravos e a maioria das pequenas fazendas era abastecida de escravos por traficantes que os traziam do mercado do cais do Valongo, levando-os em caravana para a província das Minas Gerais.   

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(3) Castro, Bruno M. Forjando liberdades na encruzilhada da escravidão: as alforrias cartoriais do termo de São João Del Rei (c.1830- c.1860). Bruno Martins de Castro- Curitiba: CRV, 2021. 166 p. pg 35

 

 

2- O Negro na nossa história – uma dívida social

A história de Minas Gerais ganhou destaque no final do século XVII quando foram descobertas as jazidas de ouro e pedras preciosas. A partir de então a chegada de grande número de escravos negros modificou completamente o perfil da população. Havia os que trabalhavam e os que mandavam. Os negros foram estigmatizados pela cor da pele que trazia o símbolo da subalternidade, do escravo vendido no cais do Valongo, instrumento, ferramenta para produzir no campo ou na cidade. Nos tempos escravistas o trabalho, como dito antes, era coisa somente para negros, algo degradante que manchava a reputação do branco europeu ou nascido na colônia.  Machado de Assis, grande escritor brasileiro, nascido em 1839, neto de escravos alforriados escreveu em 1880 o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse romance, joia da literatura brasileira, é uma sátira retratando a escravidão e as classes sociais da época, destacando as elites ricas do Rio de Janeiro que mantinham escravos e tinham horror ao trabalho. O menino endiabrado, Brás Cubas, quebrava, literalmente, a cabeça das escravas que não atendessem a seus pedidos. Ganhou de presente um negrinho, o moleque Prudêncio, no qual montava como se fosse seu cavalo. O pior de tudo vem no final, Brás Cubas disse que se orgulhava de nunca ter ganhado o pão com o suor de seu rosto, ou seja, nunca ter sujado as mãos com trabalho. Como se vê, até na literatura clássica dos romances se descrevia  com ênfase a ojeriza da elite em relação ao trabalho, coisa para escravos, conforme contado pelo escritor e neto de escravos, oito anos antes da abolição da escravidão.

Escravo e trabalho foi uma dupla que atravessou séculos, mesmo após a abolição da escravidão. Em países escravocratas como o Brasil do século XIX nada se fazia para amenizar o trabalho escravo. Foi por isso que aqui não se desenvolveram pesquisas na área da mecanização agrícola, por exemplo, pois havia braços escravos em abundância. Aliás, nem mesmo a primeira escola superior de agricultura foi adiante. Criada por decreto de 1859, juntamente com o Imperial Instituto Bahiano de Agricultura, esperou quase 18 anos para ser inaugurada. Foi necessário novo decreto, de 23 de junho de 1875, mas ainda assim só teve início efetivo em 15 de fevereiro de 1877 na Fazenda Engenho de São Bento das Lages, com o nome de Escola Agrícola da Bahia (4). Destinava-se a ministrar curso em dois graus, o elementar e o superior. Mesmo sendo curso superior não atraiu nenhum aluno. Ninguém no país escravocrata queria ser agrônomo, engenheiro agrícola, silvicultor ou veterinário,  profissões cujos cursos foram propostos à época. E por que faltavam alunos? Simplesmente predominava a ideia de que o trabalho de campo nas fazendas era tarefa para escravos e não para brancos. Filhos de brancos estudavam na Europa, de preferência em Coimbra para ser Engenheiro, Advogado ou Médico, as profissões nobres da época. Mas, o governo imperial não se fez de rogado. Buscou professores na França, instalou o primeiro curso, de agronomia e foi buscar alunos nos estabelecimentos pios da Santa Casa de Misericórdia. Foram admitidos 18 alunos pobres, vestidos pelo Imperial Instituto  Bahiano de Agricultura, dos quais apenas 10 agrônomos se formaram em 1880 na primeira turma de diplomados. As dificuldades foram tantas que essa escola pioneira veio a ser fechada em 1902, mas felizmente foi reaberta em 1920. Não à toa, a evolução do ensino e da pesquisa agrícolas no Brasil no início do século XX, não acompanhou o desenvolvimento  verificado nos EUA e na Europa. Hoje, no entanto, lidera a pesquisa agrícola tropical e é um dos primeiros produtores mundiais de grãos, frutas e carne.

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 (4) Silva, Paulo R.. - A Formação do Profissional de Nível Superior na Área das Ciências Agrárias - Proposta de currículo Mínimo - MEC/SESu Brasília - 1981 - 260p.

 

       Essa definição imprópria de que o trabalho era destinado somente aos escravos dificultou a vida dos negros, pois ficaram atrelados a esse equivocado conceito, mesmo depois da abolição. Tinham menos oportunidades de emprego e educação. A sociedade se hierarquizou em classes, deixando os negros nas camadas subalternas, discriminando-os de forma velada e não tão ostensiva como nos E.U.A e outros países. Os índices de analfabetismo e desemprego entre os negros sempre foram os mais elevados, criando-se um ciclo vicioso do mal, que só começou a ser quebrado no início do século XXI com a criação de leis de igualdade racial. Tampouco é preciso mencionar os inúmeros casos de injustiça racial, diariamente exibidos nos meios de comunicação com prisões injustas e até mesmo execuções de negros pelo simples fato da cor da pele. Por qualquer motivo são logo colocados sob suspeita. As prisões e execuções arbitrárias de negros mostram, claramente, que o pelourinho ainda está presente, mesmo depois de 130 anos da abolição. A sociedade brasileira ainda não está pacificada com a causa dos negros. Há, ainda, muitas desigualdades raciais e sociais, fatores determinantes para a vida precária e excludente da população negra brasileira. Por isso, é inegável que temos uma enorme dívida social para com os negros. Essa dívida é ainda maior na área educacional, onde a discriminação racial foi terrível durante e depois da escravidão.  A Constituição de 1824, logo no início do Império, já proibia que negros tivessem acesso ao ensino. Não satisfeitos, trinta anos depois, em 1854 foi aprovado o Decreto 1.331 que proibia a admissão de negros nas escolas públicas. Em 1878 outro decreto, de nº 7.031-A, determinava que os negros só podiam estudar no horário noturno. Assim, a sociedade brasileira virou o século XIX com a abolição da escravatura, passando do trabalho escravagista para a sociedade do trabalho livre, mas, reproduzindo nas três primeiras décadas do século XX a lógica da dominação do poder do capital e das desigualdades. Pouca coisa mudou na situação dos ex-escravos e ainda, naquelas décadas, houve fortíssima leva de imigração europeia, para a qual se oferecia trabalho assalariado ou sistemas de parceria, colonato e outras formas de contrato nas plantações. Depois de 1930 perdurou a mesma situação de segregação, pois não houve leis para a igualdade racial, o que só veio a acontecer no início do século XXI (5).

         Com a proibição dos negros se matricularem em escolas o Brasil negou-lhes duplamente o direito à cidadania, não lhes dando condições de sustento e progresso social. Os negros não foram totalmente libertados. De que adianta a liberdade física, acabar com os grilhões, mas não incorporá-los à sociedade brasileira? Manter a desigualdade, a exclusão, a pobreza e consequentemente o racismo, foi uma crueldade sem limites. Teria sido diferente se a Lei Áurea tivesse sido contemplada com mais um artigo, garantindo “um sistema público de educação para todos” indistintamente. O educador Cristovam Buarque (6) disse que até hoje o Brasil não quis completar a Lei Áurea criando um Sistema Nacional de Educação de Base. Deixa-se tudo a cargo da família ou do prefeito, não do país e completa: “Nos navios negreiros havia marujos com a tarefa de impedir os escravos desesperados a pularem no mar, pois a morte deles era uma perda financeira pra o proprietário. Hoje não oferecemos escolas que assegurem a seus alunos a quererem permanecer nelas e se eles quiserem pular no mar da deseducação, aceitamos que o façam sem percebermos a perda que isso representa para o futuro de cada um deles, para suas famílias e para todo o país”. Acorda, Brasil!

        

 
Belíssima foto, diante do Paço Imperial, no dia da assinatura da Lei Áurea,
a abolição da escravidão  em 13 de maio de 1888. Pena que a lei não contemplou nenhuma
              medida de proteção e amparo aos libertos que foram deixados à própria sorte nas 
 estradas  e periferia das cidades. 
Foto: IPHAN 


 

Felizmente a sociedade brasileira passou a reconhecer sua imensa dívida social para com os negros, ainda que tímida e tardiamente, por meio das cotas raciais nas universidades,

 

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(5) Oliveira, Reinaldo J. e Souza Oliveira, R.. Origens da segregação racial no Brasil - https://doi.org/10.4000/alhim.5191, consultado em 18/12/2021.

 

(6) Buarque, Cristovam. Lei incompleta. In:  Correio Braziliense – Brasília-DF. 20 de maio de 2021,  p. 13                                

 

a Lei 12.711/12. Cotas que só chegaram em 2012, com 124 anos de atraso em relação à abolição, embora as elites rurais tivessem sido bastante diligentes em benefício próprio, como em 1968, quando aprovaram Lei 5.465/68, que ficou conhecida por lei do boi. Esta lei reservava 50% das vagas nas instituições de ensino de agronomia, veterinária e cursos técnicos agrícolas, para os filhos de fazendeiros, com claro e exclusivo favorecimento aos proprietários de terras. Já naquela época, quarenta anos antes, desprezaram os negros que, naquele exato ano de aprovação da lei do boi, representavam apenas 1,2% dos diplomados em cursos superiores. Não bastasse isso a mesma elite rural que antes aprovara privilégios para seus filhos, instituindo a lei do boi, ainda se insurgiu contra a lei das cotas raciais de 2012. As alegações para torpedear o projeto de lei foram várias e infundadas como a suposição de que promoveriam uma guerra nas universidades, que os alunos cotistas teriam dificuldade em conviver naquele ambiente, que eles não acompanhariam o nível educacional da universidade ou então que o nível do ensino superior seria rebaixado. Não contentes, os segmentos de empresários e fazendeiros que foram tão zelosos na aprovação da lei do boi, recorreram ao Supremo Tribunal Federal para barrar as cotas universitárias para negros, demonstrando insensibilidade para com a justiça social. Aliás, a lei das cotas universitárias foi das mais bem sucedidas e hoje contamos com considerável presença de negros em cursos superiores, embora essa lei represente apenas um pequeno esforço na reparação dos danos causados em 300 anos de escravidão e outros mais de 100 após a Lei Áurea.

As políticas de igualdade racial precisam ser incentivadas, pois só assim obteremos resultados que ultrapassem, em larga escala, aqueles míseros índices de 1967, com apenas 1,2% de negros diplomados em cursos superiores. Felizmente, com a lei das cotas raciais, o percentual de negros nas universidades brasileiras saltou para 30% em menos de dez anos de vigência da referida lei.

 

2.1- Os escravos em Minas Gerais e Lavras

Se antes a demanda de escravos era devida unicamente à exploração do ouro, mais tarde migrou totalmente para a produção agropastoril. A mão de obra escrava produzia alimentos para a crescente população e também para os comerciantes tropeiros que rumavam para as novas jazidas de ouro em outras regiões. Por isso, nesse contexto histórico e sobretudo geográfico da província das Minas Gerais, a comarca do Rio das Mortes, cuja principal vila era São João Del Rei e que tinha Lavras como parte de seu território, ostentava a maior quantidade de escravos. A região era o cruzamento das rotas de tropeiros e viajantes que vinham do Rio de Janeiro e São Paulo, pela estrada real, bifurcando-se ali em direção às minas de Goiás e Mato Grosso ou então para a capital Ouro Preto e demais vilas ao norte de Minas, como Sabará, Diamantina e Paracatu do Príncipe. A população escrava na região de Lavras, a comarca do Rio das Mortes era, em 1821, a maior de toda a província de Minas Gerais e contava com 71.147 escravos negros registrados. Em segundo lugar aparecia a comarca do Rio das Velhas (Sabará) com 42.218 cativos, um pouco mais da metade registrada na região de Lavras.  Vila Rica, a capital da capitania das “Minas Geraes”, tinha somente 26.736 e Paracatu, 6.249 escravos. Em Lavras havia no ano de 1814 um total de 128 escravos registrados nas minas de ouro, segundo relato do cientista alemão Von Eschwege, que passou pela região em viagem de estudos (7). Este número não inclui os escravos dedicados à grande exploração  agropecuária de subsistência e comercial e tampouco os pequenos garimpos, vez que os registros da Coroa indicavam apenas as minas de “real grandeza”. Em excelente pesquisa realizada pelo jornalista e historiador lavrense, Eduardo Cicarelli (8), foram levantados os dados de censos oficiais e verificou-se que, existiam 6.322 escravos em Lavras, de um total de 311.666 cativos da província de Minas Gerais, conforme registros de 5 de janeiro de 1883, do serviço de estatística da Província. O mesmo artigo informa, ainda, que a maioria dos escravos de Lavras era de origem do Congo e Angola (Bantos). Gostavam de batuque, capoeira, festas de congadas e danças. Eram bem mais dóceis que os sudaneses, muçulmanos de índole rebelde, sempre liderando as rebeliões, fugas e criação de quilombos. Tanto é verdade que na própria região de Lavras chegou a se formar um quilombo às margens do Rio das Mortes, agrupando grande número de negros e indígenas. Em 1743 havia muitos quilombos ao redor de Lavras, nas proximidades de Nepomuceno (Trumbucas), Carmo da Cachoeira (Gondu) e ainda o quilombo do Quebra-Pé em Três Pontas. 

 Em 1751 uma expedição armada partiu de Lavras e dizimou um quilombo na região de Três Pontas e os últimos ataques aos quilombos da Confederação Quilombola do Campo Grande, comandados por Bartolomeu Bueno do Prado, ocorreram entre 1757 e 1760.  Segundo seus informes ao governador, trouxe 3.900 pares de orelhas de negros e índios,  número contestado por alguns autores, embora outros apresentem dados de que a população do Quilombo do Campo Grande era de dez a quinze mil rebeldes, quando da última Guerra de 1759/60 (31). Esse enorme quilombo começava em Ibituruna e se estendia até Ibiá e espalhava medo na população da comarca do Rio das Mortes (9). Segundo as pesquisas do historiador Nemeth-Torres a população temia viajar pelos caminhos da região e esse  foi o principal motivo do pedido de transferência da sede da paróquia de Carrancas para Lavras (10). A transferência da paróquia se deu justamente ano de 1760, quando Bartolomeu Bueno, saindo de Lavras com sua tropa atacou o quilombo do Cascalho na serra de Três Pontas. Um pouco antes, em 1737, o capitão Francisco Bueno da Fonseca, também manifestou às autoridades provinciais que temia andar pelas vizinhanças de Ibituruna, pois estavam infestadas de quilombolas  que assaltavam os viajantes, como se verá mais adiante.

 

Assim, viajar até Carrancas, para assistir aos cultos na igreja matriz, onde ficava o vigário, era por demais perigoso. Cabe aqui lembrar que, segundo o mesmo autor, o patriarca da família Salles, Manoel da Costa Valle foi um dos subscritores da petição ao bispo de Mariana para a transferência da paróquia para o arraial das Lavras do Funil (11).  Mas, ainda de acordo com o mesmo autor, esse medo de assaltos no caminho, embora tenha sido o maior motivo, não foi o único para que a cúria de Mariana aprovasse a transferência da paróquia de Carrancas para Lavras. Havia também, o fato de que os Bueno, além de proprietários de muitas terras em Carrancas e Lavras, eram aristocratas inseridos em sólidas redes familiares,

 

 

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(7) Von Eschwege, Wilhelm Ludwig. "Freguesia de Sant'Ana das Lavras do Funil".. In: Pluto Brasiliensis: Memórias sobre as riquezas do Brasil em ouro, diamantes e outros minerais, v. 2, pp. 58-59. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. Série Brasiliana, 257. (Publicado em1833 em Alemão, Berlin: G Reimer).

(8) Cicarelli, Eduardo. A escravidão em Lavras. In: Jornal Lavras News. Edição eletrônica, consultada em 09/09/2005- Lavras Online.

(9)  Martins,Tarcisio Jose. Quilombo do Campo Grande: A história de Minas que se devolve ao povo. Edição ampliada. https://books.google.com.br/books?id=knV0s_U7FVcC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false       

             consultado em 22/12/2021.

(10) Nemeth-Torres, G.. Os 250 anos da Paróquia de Sant´Ana: Uma história da Igreja Católica em Lavras. Edição do autor. Lavras MG, 2010. 106 p – pg 45

(11) Nemeth-Torres, Geovani. 2010 Op, cit. pg 43

 

 

 

se relacionando com todos, inclusive com o patriarca da família Salles. Os Bueno gozavam, portanto,  de grande prestígio regional e em toda a província, a ponto de até emprestaram o nome ao povoado de Lavras que inicialmente era conhecido por “Povoação dos Bueno”. Não bastasse isso, os Bueno estavam, havia anos, no comando da missão do governo colonial para pacificar o quilombo do Campo Grande e justamente naquele ano de 1760 ele venceram o do Cascalho, em Três Pontas. Isso os deixavam em posição política privilegiada, o que certamente influenciou na decisão eclesiástica de transferência dos direitos de paróquia para a Igreja do Rosário em Lavras (12).

Além dos antigos medos, a população de Lavras havia passado por outros trágicos acontecimentos como as de 1833, em Carrancas e o enforcamento do escravo Joaquim Congo em 1838. Portanto, as reações dos negros de Lavras contra os maus tratos foram consideráveis. As revoltas e fugas tinham como motivação os constantes maus tratos com violentas torturas físicas que, não raras vezes, chegavam a provocar a morte do escravo. A literatura sobre a escravidão em Lavras, segundo pesquisas do jornalista e historiador Eduardo Cicarelli  (13), registra que havia, até o ano de 1831, ao lado da Igreja do Rosário, um pelourinho em forma de coluna de pedra lavrada, onde os escravos rebeldes eram amarrados e açoitados em plena praça pública. Uma das pedras deste pelourinho permaneceu por mais de cem anos nos fundos da atual Igreja do Rosário, na calçada do sobrado do Capitão Evaristo Alves e servia de banco para os frequentadores do armazém do capitão, tendo sido retirada em 1935, segundo o citado autor.



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(12) Nemeth-Torres, Geovani –2010.  op cit.  pg 46

(13) Cicarelli, Eduardo. A escravidão em Lavras. In: Jornal Lavras News. Edição eletrônica, 2002 - consultada em 09/09/2005- Lavras Online 



Há em Lavras inúmeras histórias e registros de escravos e numa delas informa-se que o inventário de Joaquim Tavares Coimbra, de 23 de maio de 1872, deixava para seus filhos 30 escravos, sendo 19 mulheres e 11 homens. Sobre a violência contra escravos ou deles próprios contra os patrões, Cicarelli (14) pesquisou os arquivos do mapa geral dos julgamentos proferidos pelo Júri da Província de Minas Gerais e ali se registra que a Vila de Lavras foi considerada a mais violenta do ano de 1844. Em toda a Comarca do Rio das Mortes, que compreendia entre outras, São João Del Rei, Carrancas, Ibituruna e Lavras, ocorreram 13 crimes, sendo oito praticados na Vila de Lavras. Na vizinha Nepomuceno, que fazia parte de Lavras, há relatos do historiador João Amilcar Salgado (15), médico e professor da UFMG, com raízes na família Salles, dando conta da existência de locais com passado turbulento, cheios de violência. _

 A chegada dos portugueses ao território mineiro não foi tão pacífica quanto se possa imaginar. Os primeiros a resistirem à ocupação dos bandeirantes, ávidos por ouro, que aqui chegaram no início do século XVIII, foram os índios. Várias nações indígenas viveram na região, os cataguases, caiapós e trumbucas dentre outras. Sofreram duros reveses do homem branco, ajudado pelos escravos negros que faziam parte de suas expedições, as bandeiras. Mais tarde os próprios escravos se rebelaram e passaram a formar os quilombos. Dentre os muitos quilombos catalogados pelo ilustre pesquisador, foram anotados os de Bárbara, Calunga, Bacia e Cascalho, sendo este localizado na Serra das Três Pontas. Afirma, ainda, o Professor João Amilcar, que todos eles, índios e escravos foram vítimas de violência e não é outra a razão para que tantos nomes de lugares e fazendas tenham recebido nomes como fazenda da Trumbuca, Queima Capote, Ermo, Cabeças, Desiderio, Arranca-Rabicho, Esmeril, Cascavel, Carrapato e Sapecado, todas nas proximidades da cidade de Nepomuceno. Em Lavras há, entre muitas, as fazendas do Queixada, Saudade, Morro do Quebra Ovo, Descoberto, Candongas, Contendas, Grotão e Criminoso, que nos levam a relacionar suas origens às lutas e violências cometidas contra índios e negros no início do povoamento da região. Um nome que não deixa dúvida é o da Fazenda Criminoso, pertencente aos Salles e Pádua, cuja origem é atribuída à história de uma tocaia para roubar os tropeiros que transportavam carga com objetos valiosos. Todos os tropeiros foram assassinados junto ao ribeirão, onde estavam acampados à noite, a 100 metros da atual capela de N.S. do Perpétuo Socorro, inaugurada muitos anos depois, no local onde havia uma cruz em homenagem aos tropeiros assassinados. A chacina foi tão violenta, segundo a versão do coronel Anísio Gaspar, antigo proprietário da fazenda e confirmada em entrevista por outro Salles, Nanato,  que a água do ribeirão ficou vermelha de sangue, pois usaram facão para matar os tropeiros. Ainda que existam outras versões para o nome da fazenda, o que se pode concluir é que de fato houve crime no local e os motivos foram diferentes daqueles da região de Nepomuceno, onde predominaram a violência dos bandeirantes desbravadores contra índios e escravos. Houve, ainda, dois casos marcantes de violência escrava em Lavras, como se verá a seguir.

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(14) Cicarelli, Eduardo. 2002 – op.cit

 

(15) Salgado, J. Amilcar. Nepomuceno: De como esta cidade está no mapa sentimental de Minas. In: http://jamilcarsalgado.blogspot.com.br/2010/09/nepomuceno-de-como-esta-cidade-esta-no.html

 

2.2- A Revolta de Carrancas de 1833

Um grupo de escravos revoltosos assassinou em 1833 o fazendeiro e Juiz de Paz, José Francisco Junqueira, filho do deputado e também fazendeiro em Carrancas, Gabriel Francisco Junqueira. Vários  membros da família foram mortos pelo mesmo grupo de escravos que havia sido insuflado por inimigos políticos do deputado. Havia muita turbulência e disputas políticas desde o ano de 1830, quando surgiram inúmeras revoltas de escravos, sedições e rebeliões por todo o império. Em Minas Gerais, a província mais rica e com o maior número de escravos, a incidência de revoltas e criação de quilombos foi maior. A revolta de Carrancas, assim chamado o massacre da família Junqueira, teve como motivação, além da insatisfação com os maus tratos, a influência do grupo político que tomou o poder na capital da província, principalmente quando divulgou o boato de que teriam libertado os escravos em Ouro Preto e que os escravos de Carrancas  conseguiriam não só a liberdade, mas também ficariam com as propriedades rurais de seus senhores.  O boato, que soava como música para os sofridos escravos,  incentivou o desejo de liberdade e mais que isso, o sonho da posse das terras. Aqueles que tomaram o poder em Ouro Preto tinham especial interesse em desestabilizar os governistas que se mudaram para São João del Rei e ali instalaram a sede do governo legalista. Alvo perfeito para uma rebelião de escravos. Além do mais, o deputado Gabriel Junqueira era grande proprietário de terras e comerciante que controlava os caminhos para o sul de Minas em direção à corte do Rio de Janeiro. Com isso angariou inimizades, pois aquela rota era essencial aos negócios de todos que produziam alimentos para o abastecimento interno.

 

A chacina começou no dia 13 de maio de 1833 e se estendeu para a fazenda vizinha, pertencente ao irmão do deputado. Ali mataram todos que ali se encontravam. Partiram para fazenda Jardim, próxima à cidade de Luminárias, mas foram recebidos à bala e se dispersaram, pois o proprietário já tinha sido avisado da chacina nas duas outras fazendas. A Guarda Nacional, criada em 1831, apenas dois anos antes e com a finalidade de manter a ordem pública em cada município, foi mobilizada e partiu de Lavras um pelotão de 44 membros com farta munição. Em 20 de maio encerrou-se a rebelião com o saldo de trinta escravos presos, um morto e onze feridos. Nove membros da família Junqueira foram assassinados pelos escravos revoltosos. Segundo o historiador Marcos Andrade (16), em dezembro de 1833 e abril de 1834, dezesseis escravos revoltosos foram enforcados em praça pública, tornando-se assim a Revolta de Carrancas o movimento de rebelião com a maior condenação coletiva, com pena de morte, em toda a escravidão brasileira. Politicamente, a repercussão foi tão grande que originou o projeto de lei nº. 4, de 10 de junho de 1833, que punia com mais celeridade a rebeldia escrava. Esse projeto se tornou lei em 1835 e serviu para o julgamento e condenação do escravo Joaquim Congo, que assassinou um fazendeiro em Lavras no ano de 1838, como se verá a seguir.

 

2.3- A execução do escravo Joaquim Congo em Lavras

A segunda história da violência escravocrata em Lavras aconteceu na tarde de 05 de dezembro de 1838, quando o escravo Joaquim Congo, de 28 anos de idade, assassinou o fazendeiro José Pimenta, o qual lhe dera uma surra pela manhã. O corpo do fazendeiro, totalmente desfigurado por golpes de enxada, foi encontrado numa mata próxima e levado de carro de boi para a perícia judicial e depois

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(16) Andrade, M.F. As revoltas do Ano da Fumaça (1833): a revolta dos escravos de Carrancas e a

sedição militar de Ouro Preto - 8º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Porto Alegre (UFRGS), 2017. http://www.escravidaoeliberdade.com.br/ . E-mail: marcos.andrade@pq.cnpq.br

 

 

 

 

 enterrado no adro da igreja matriz de Santana de Lavras, a atual Igreja do Rosário. Preso, julgado por um júri popular foi condenado à morte. Interessante notar que o poder dos fazendeiros sobre a vida dos escravos era mais que onipresente, pois as leis eram elaboradas por eles próprios na Assembleia Geral Legislativa do Império. Joaquim Congo foi julgado com base na Lei número 4, de 10 de junho de 1835, sancionada pelo Imperador Pedro II, logo após o massacre de Carrancas, e tinha a seguinte redação:

“Lei número 4, de 10 de junho de 1835 - "Determina as penas com que devem ser punidos os escravos, que matarem, ferirem ou cometterem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; ...

Art. 1º Serão punidos com pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e as suas mulheres, que com elles viverem”.

Joaquim Congo foi executado em 26 de junho de 1839 e o juiz determinou na sentença dentre outras indicações, que:

 “... em nome de Sua Majestade o Imperador, fosse (o réu) levado pelas ruas públicas desta Villa com pregão e baraço, digo baraço e pregão, até o lugar da forca, a ahí morrer de morte natural para sempre... “.

Assim, o réu foi escoltado pelas ruas de Lavras até chegar ao local da forca, na parte mais alta da cidade, onde hoje se situa o Cruzeiro, próximo às instalações da atual Copasa, ao lado da Rua Melo Viana. Para completar a demonstração de força dos  

                            

O Cruzeiro, situado na parte mais alta da cidade e onde foi   Enforcado  
o escravo Joaquim Congo 
Foto: coleção Renato Libeck 

fazendeiros, seus escravos foram forçados a participar do cortejo e assistir à execução para lhes servir de lição. Impressionante a crueldade do ato, pois não bastasse o longo desfile pelas ruas da cidade, o cortejo passou, ainda, pelo cemitério ao lado da Igreja do Rosário, no exato lugar hoje ocupado pelo prédio do CrediReal. Ali, ao lado da igreja e não no seu interior, era o local destinado ao sepultamento de negros, índios e mendigos, segundo relatam historiadores de Lavras. Obrigaram o condenado a entrar na cova para experimentá-la e dizer se estava de acordo. O cortejo seguiu pela Rua Direita (atual Rua Francisco Salles) e a trilha até o alto da pedreira, onde a forca foi instalada numa árvore. Este foi o único enforcamento de escravo ocorrido na cidade. A certidão de óbito, lavrada pelo vigário Francisco de Paula Diniz, assim registrou:

"Aos vinte e seis dias do mês de junho de mil oitocentos e trinta e nove, foi sepultado no adro desta Matriz, Joaquim Congo, escravo pertencente à herança de José Pimenta, de idade de vinte e oito anos, por execução de sentença de morte natural e foi por mim mesmo encomendado e dado os apontamentos no dito livro. O vigário Francisco de Paula Diniz." -Livro de óbitos da Paróquia - 1815/1843 - folha 173 v”.

 

2.4- Violência e assaltos nos caminhos dos Salles nas Lavras do Funil

              Como se viu pelos registros históricos, de certa forma a escravidão em Lavras não deixou de ter o seu lado violento, contrariando também a equivocada tese de Gilberto Freyre de uma suposta democracia racial. Os historiadores Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala- 1933) e Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil-1936) difundiram essa expressão mundo afora. Mas, se olharmos com atenção seus próprios textos vamos encontrar contradições. Nelas estão nitidamente descritos os poderes incontestáveis da aristocracia rural, que tudo podia e em tudo mandava, inclusive nas vilas, onde os senhores de engenhos e cafezais dominavam com mão de ferro o sistema eleitoral e o legislativo, de onde saíam as leis. Esse mandonismo era muito cruel para contra os escravos, fossem eles índios aprisionados para os combates nas Entradas e Bandeiras contra as tribos resistentes à invasão de seu território ou, mais ainda e com maior intensidade, com os negros. A escravidão sempre foi violenta, a começar pela captura do escravizado no seu país de origem, arrancando-o à força de seu ambiente familiar, seguindo-se a venda aos traficantes e transporte em condições sub-humanas em navios negreiros que cruzavam o Atlântico. Em numero infinitamente maior, os negros chegavam a se rebelar contra a crueldade de seus senhores e feitores, fugindo mata a dentro e formando os Quilombos, centros de resistência e independência da escravidão.

A vida do escravo foi uma constante tortura física e mental e ele sempre, por razões óbvias, buscava a sua liberdade. A escravidão no Brasil durou três séculos e o que resultou depois de tanto tempo? Gilberto Freyre afirmou que havia a tal democracia étnica ou racial, mas ao contrário, Arthur Ramos e outros intelectuais afirmaram que houve apenas a valorização da mestiçagem e do elemento negro na formação do país. Para eles a mestiçagem e a mistura razoavelmente equilibrada de costumes tão díspares, originários de diferentes regiões africanas, incluindo as seitas religiosas, impediram o preconceito racial no Brasil (17). Classificaram a tese de Gilberto Freyre como equivocada, baseada em padrões dos E.U.A e a chamaram de “mito da democracia racial”, pois ela inexistiu no Brasil. Outra autora, Lilia Schwarcz (18)  também condena a expressão “democracia racial” criada por Gilberto Freyre. Aliás, já no início deste capítulo falou-se da aproximação do negro à família do seu senhor, seja pelo compadrio, frequência às festas e cultos religiosos. Por parte do colonizador português houve a predisposição para a miscigenação, o que não aconteceu nos E.U. A e outras colônias inglesas, inclusive no próprio continente africano como a África do Sul, onde

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(17) Caldas, A.; Silva, N.G.P. A democracia racial no pensamento de Guerreiro Ramos. Temáticas, Campinas,      

                  29, (57): 88-116, fev./jun. 2021. Consultado em 30/12/2021 In: https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/tematicas/article/view/13921/10564 

 

(18) Schwarcz, L.M. Sobre o autoritarismo brasileiro. 1ª ed.- São Paulo, Cia das Letras -2019, Pág. 17  

                                  

até recentemente predominava o regime do “apartheid”. Por aqui o racismo é dissimulado, mas há muito preconceito de cor e isso prejudica os negros que são discriminados.

Outros autores afirmaram que Freyre, aparentemente foi influenciado pelos relatos do cientista alemão Von Martius (1794-1868), que visitou e percorreu boa parte do Brasil por três anos (1817 a 1820), pesquisando e pintando as paisagens tropicais da colônia.  Martius também dourou a pílula, defendendo a tese de que o Brasil era um país sem igual, onde se misturavam gente e povos. Todos que defendiam essa tese distorceram a violenta realidade do sistema escravocrata, descrevendo-a como “harmoniosa situação”, como se a miscigenação dos brancos portugueses com as índias e negras fosse algo natural, pacífico e consensual. Não foi, pois, a dominação daquelas escravas foi mais que violenta, cruel. O autor de Casa Grande e Senzala esqueceu-se de que as raízes da colonização portuguesa no Brasil foram totalmente opostas à dos ingleses na América do Norte. Os ingleses emigraram com famílias inteiras e ao chegarem à colônia tiveram como primeira preocupação construir escolas e igrejas para suas famílias. Os portugueses, ao contrário, aqui chegaram, em sua maioria, solteiros em busca da aventura de enriquecimento rápido com a exploração dos recursos naturais, especialmente o ouro e a aventura dos imigrantes solteiros incluía a miscigenação. Freyre romantizou a situação, falando de miscigenação pacífica, porém, imaginar que esse entrelaçamento com as mulheres indígenas e negras foi pacífico, por vontade própria das escravizadas, é minimizar e romancear a situação de completo domínio do escravizador e jugo das escravizadas. A escravidão é de todo condenável, pois fere o direito à liberdade e a despeito de uma certa convivência pacífica nas pequenas e médias fazendas do sul de Minas, houve também excessos de maus tratos contra os escravizados. As rebeliões e fugas, com criação de quilombos em locais mais distantes das fazendas são provas irrefutáveis da reação dos escravizados. Hoje, mais distante no tempo e com novos trabalhos de pesquisas sobre o regime de escravidão e racismo, tem- se no Brasil uma visão mais realista que nos leva a discordar da teoria da democracia racial. Por outro lado, é preciso entender que Gilberto Freyre ao formular esse conceito e descrevê-lo em suas obras de 1930, levou em conta apenas a situação dos conflitos raciais nos EUA iniciados na década de 1920. De fato, ali existiam leis raciais discriminatórias. Negros não podiam frequentar ambientes dos brancos, sequer o transporte publico, igrejas e escolas, o que gerou muita tensão e acabou por provocar conflitos sangrentos nos anos de 1950/60. Este autor trabalhou na década de 1970 em Michigan, berço da indústria automobilística dos EUA e ali pôde, de fato, sentir e presenciar as tensões raciais pós–assassinato de Luther King, ativista negro que pacificamente obteve muitas conquistas sociais para seus compatriotas negros. A tensão racial era uma constante na universidade norte-americana onde trabalhei, pois ali as centrais sindicais, a maioria de negros, eram muito ativas e praticavam o racismo reverso, ódio aos brancos. Tempos conturbados naquela nação, porém as diferenças para o Brasil se encerravam ali, naqueles distúrbios com constantes manifestações populares, pois embora por aqui não existissem leis semelhantes às dos E.U. A, a escravidão por si mesma é condenável, aqui como lá.

 

2.4.1 – Efeitos e resquícios da violência na Escravidão em Lavras

Não bastasse a situação da escravidão, que por si própria gerava muita insatisfação e às vezes revoltas com sangrentos levantes, havia ainda nos caminhos de Lavras a presença de assaltantes, negros que viviam aquilombados em diversos locais. Os caminhos das trilhas que ligavam os povoados próximos à cabeça da Comarca do Rio das Mortes (S.J.D.Rey) e às cortes da província e da colônia estavam infestados de salteadores. O medo de se viajar por aquelas paragens já era antigo, pois segundo registros do Arquivo Público Mineiro pesquisados pelo historiador Nemeth-Torres (19), o capitão Francisco Bueno da Fonseca, afirmou às autoridades da província, em 1737, que “... não se atreveria a descobrir ouro por aquelas paragens na vizinhança de Ibituruna, pois estavam infestadas de calhambolas (quilombolas) que salteavam os caminhos e casas dos moradores e por isso lhes estorvavam o sobredito receio”.

O medo de assaltos por escravos fugidos era tanto que o bispo de Mariana acabou por aprovar a mudança da paróquia de Carrancas para a vila de Lavras, mais populosa e cujos habitantes temiam percorrer as seis léguas que as separavam, para assistirem aos cultos religiosos, especialmente os da semana santa. Some-se a isso a revolta de Carrancas com a chacina de nove membros da família de um poderoso fazendeiro e a condenação e execução dos 17 escravos criminosos e mais, o outro caso do escravo Joaquim Congo também enforcado no alto do Cruzeiro e com direito a show de desfile pelas ruas da vila e  ainda a macabra cena de se obrigar o escravo a se deitar na cova e dizer se estava adequada e tem-se um quadro de total terror e pavor de se andar sozinho pelas estradas rurais de Lavras.

Por outro lado, a decretação da abolição da escravatura não foi suficiente para resolver a insatisfação e estancar as constantes revoltas dos escravos. Os negros, recém-libertados foram abandonados ao relento, deixados à própria sorte, literalmente, sem abrigo e sem comida. Muitos sequer tinham nomes, simplesmente carregavam o nome do patrão ou da fazenda onde trabalhavam. Quantos negros, hoje, conseguem levantar suas ancestralidades? Não conseguem avançar mais que duas ou três ascendências e se deparam com a falta dos registros de posses de escravos. Temendo pedidos ao governo de indenizações pela perda de escravos, o todo poderoso ministro da Fazenda, Rui Barbosa, mandou queimar todos os arquivos dos “Registros de Posse de Escravos”. Por essas e outras razões, os escravos e seus descendentes não tinham nomes, certidões, filhos registrados e sempre caíam nas expressões comuns de escravo, cativo, negro forro de fulano de tal, ou negro cabinda, congo e outras denominações, deixando claro a sua condição de negro escravo ou ex-escravo. Até mesmo na questão da identidade dos negros havia violência, pois muitos deles eram filhos bastardos dos senhores da casa grande e por isso nem sempre eram registrados para não causar “constrangimentos”. Mas, e o constrangimento das negras obrigadas a coabitar, violentadas por seus senhores? Vidas negras importam, como diz o slogan norte-americano contra a recente violência racial naquele país. Por aqui, após a abolição, os negros tiveram que construir suas próprias identidades, adotaram sobrenomes da natureza ou de santos de sua devoção ou até mesmo de seus antigos senhores. Ainda assim, mesmo com a decretação da abolição, alguns permaneceram junto aos seus senhores quase na mesma condição de escravo, mas a maioria fugiu das fazendas, amontoando-se nas periferias das cidades. No Rio de Janeiro o início das favelas se deu um pouco antes da abolição. Foi em 1870 com o término da guerra do Paraguai, quando os negros, que eram a maioria dos soldados (daí a origem do apelido de “macacos” que os paraguaios deram aos brasileiros. Os argentinos nos chamam de “los macaquitos”), voltaram para ficar ao lado da corte onde pensavam que seriam recompensados. Não havia lugar nem trabalho suficiente para eles e foram, então, ocupar os morros da cidade. O mesmo aconteceu depois da abolição e as favelas cariocas cresceram ainda mais.

 

 

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(19) Nemeth-Torres, Geovani.  2018 op. cit.  P. 57

 

2.4.2- O porte de armas dos fazendeiros

 

 Em Lavras não foi diferente do que aconteceu no pós-abolição na corte do Rio de Janeiro e outras cidades. Os negros expulsos das fazendas se instalaram precariamente nas periferias da cidade. Construíam barracos de madeira e se viravam para o sustento da família, se é que tinham uma, pois na maioria das vezes eram vendidos separados. Muitos caíram na marginalidade e isso aterrorizava os fazendeiros, antigos senhores de escravos. Temiam ataques de negros, isolados ou em grupos, como acontecia antes, porém apenas nas proximidades dos quilombos. Mas, com a abolição os assaltos migram para todas as estradas e periferias de cidades.  Por isso, a população urbana e especialmente os fazendeiros, nunca se aventuravam a se afastar de casa, a pé ou a cavalo, sem que houvesse pelo menos um ou dois acompanhantes e sempre munidos de armas de fogo na cintura ou mais comumente na algibeira da albardana da sela de seus cavalos. Esse era o costume em Lavras, o porte de armas por qualquer fazendeiro, especialmente quando se deslocava para a cidade e tinha que atravessar os bairros da periferia, onde se acumulavam os ex-escravos. Este autor participou nos anos de 1950, de alguns deslocamentos a cavalo, das fazendas até a cidade, ou mesmo entre as fazendas da família e ainda se lembra dos cuidados com o ritual do porte de armas de fogo para a viagem. Era comum os fazendeiros treinarem seus filhos, a partir dos doze anos de idade, no manuseio de armas de fogo para defesa e caça. Antigamente, pelo menos até os anos de 1950, não faltavam em Lavras armas importadas, comercializadas por tropeiros ou estabelecimentos comerciais. Havia espingardas cartucheiras Beretta de vários calibres, a famosa e cobiçada carabina Winchester do papo amarelo, calibre .44, pistolas Luger, Mauser e revólveres Smith & Wesson, H.O e mais tarde Rossi e Taurus e outras mais antigas como as garruchas de um ou dois canos.   

 

Tantos cuidados assim e o porte de armas pelos fazendeiros de Lavras faziam sentido. O receio de assaltos era real e muito grande entre a população, senão vejamos: O próprio governador da província de Minas Gerais, dom Lourenço de Almeida, escreveu carta ao rei de Portugal, em 1730, reclamando dos constantes ataques e roubos nas estradas por parte de indígenas e negros. Pedia, inclusive, a aprovação da pena de morte (20). Tanto era verdade que, um pouco mais tarde, em 1737, o capitão Francisco Bueno da Fonseca, um dos fundadores de Lavras, escreveu ao governador informando que não se arriscaria a andar em busca de ouro pelas paragens de Ibituruna, pois estavam infestadas de negros fugidos que salteavam os caminhos e casas dos moradores. Pouco tempo depois, em 1746, o governador enviou ofício às câmaras municipais pedindo ajuda para a formação de tropas para atacar o Quilombo do Campo Grande, o maior de Minas Gerais e cujos reforços de tropas contaram com a participação dos Bueno de Lavras. Essas campanhas contra os quilombos e o medo da população se estenderam até o final do século XVIII. Quando os cientistas Spix e Martius passaram pela região de Lavras em 1818, com sua expedição científica, estava claro e evidente o medo, verdadeiro pavor, que os fazendeiros tinham por conta de possíveis ataques de negros quilombolas. Os cientistas se impressionaram com aquele cenário de apreensão e medo da população. Observaram e descreveram as características e os costumes das pessoas típicas de Minas Gerais com seu comportamento de elevada autoestima, prestativas, comedidas e sobretudo muito asseadas. Destacaram os viajantes alemães que os fazendeiros só saíam de casa montados em mulas bem arreadas, incluindo freios e estribos de prata, e ainda portando (grifamos) espada e arma de fogo (21). As mulas, que também


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 (20) Gomes, Laurentino. Escravidão: da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte e dom João ao Brasil. Vol II. 2021. Rio de Janeiro: Globo Livros. 512p. pp 388-389

   

(21) Spix, J. B. e Martius, C.F.P. (1824). Travels in Brazil, in the years 1817-1820. Vol. 2 London.


 

impressionaram os cientistas, eram importadas de Sorocaba, entreposto de comercialização das tropas vindas do Rio Grande do Sul.  Minas chegava a comprar dez mil muares por ano.

 

 Como se viu, o receio de assaltos por parte de escravos rebelados e escondidos nas estradas foi notado até mesmo por visitantes estrangeiros na região de Lavras. Além dos embates do século XVII, que chegaram a mobilizar tropas da província e com participação dos municípios, seguiram-se mais tarde, já nos meados dos anos de 1800, os trágicos acontecimentos da chacina de Carrancas e o enforcamento do escravo Joaquim Congo, no alto Cruzeiro, em Lavras. Se antes tinham medo, agora, com essas novas escaramuças, os cuidados aumentaram e era evidente que todos os fazendeiros se armaram para a proteção de suas famílias e o patrimônio. Os Salles e Pádua, fazendeiros de Lavras, como Antônio de Pádua da Silva Leite (1765-1849), filho do patriarca Manoel da Costa Valle, e seus filhos Fortunato Antônio de Salles (1813-1877) e Saturnino de Pádua (1811-1888), conheciam os relatos diretos de ancestrais participantes das guerras contra os quilombolas e em seguida presenciaram os atos consequentes da chacina de Carrancas, de1833 e a execução do escravo Joaquim Congo em 1839. Não só esses três ancestrais conviveram com todos aqueles trágicos acontecimentos do século XIX ocorridos em Lavras. Seus filhos Domingos Pereira de Salles (1850-1927), meu bisavô e João de Pádua, nascido em 1844, também fazendeiros em Lavras, tinham motivos suficientes para serem adeptos do porte de armas para se defenderem, pois viveram bastante tempo ainda nos tempos da escravidão e das revoltas escravas.  Em alguns dos inventários da família Salles, do século XIX, constavam na relação de bens as armas de fogo como espingardas e pistolas. Portanto, os avós e nossos pais, nascidos entre 1864 e 1920 (o bisavô Fortunato Antônio de Abreu, 1864-1954 e Nanato 1920-2019), carregaram esses costumes herdados de seus respectivos pais, os quais tangidos pelas circunstâncias eram obrigados a portar armas de fogo para defesa pessoal. Este autor e vários de seus primos, que frequentavam as fazendas, também adquiriram esse costume. Um deles, inclusive se acidentou nos treinos com espingarda cartucheira, quando o tiro saiu, literalmente, pela culatra e feriu-lhe gravemente o antebraço. Definitivamente, armas de fogo não devem mesmo fazer parte dos costumes de hoje e felizmente saíram de cena já nos anos de 1960/70, quando surgiram as modernas estradas asfaltadas e veículos mais rápidos, além do que a situação dos descendentes de escravos já havia melhorado um pouco.  Cessaram, portanto as razões para se andar armado pelas estradas rurais, costume dos tempos das rebeliões escravas quando ninguém saía sozinho de casa, mesmo de uma fazenda para a outra e não importava a distância, se três ou vinte quilômetros, viajava-se acompanhado e sempre portando armas de fogo. Aliás, parece que a década de 1960 foi mesmo um período de mudanças em Lavras, pois além de cessar o costume do porte de armas, encerraram-se as atividades do Clube de Tiro ao Alvo, cujo stand de tiro se situava na Avenida Ernesto Matioli, em frente ao Corpo de Bombeiros e o Fórum de Lavras. Este clube foi muito ativo e era mantido por fazendeiros  acostumados ao uso de armas e adeptos do esporte de caça. Havia muitos adeptos do esporte de tiro ao alvo, como o prof. Adolpho Moura, Anísio Alves de Abreu Filho e Gilvan de Souza que eram frequentadores e exímios atiradores em alvos móveis, pratos lançados por uma catapulta. Os dois últimos mantinham coleção de armas e possuíam um ônibus especial adaptado para viagens de caça e pesca ao Pantanal, levando mais de vinte cães das raças perdigueiro e pointer, usados na caça esportiva. Na atualidade, já no início deste novo milênio, foi criado em Lavras novo clube de tiro e caça, porém com finalidades estritamente esportivas e para colecionadores, nada tendo a ver com as motivações do passado relativas ao medo de ataques de escravos nas estradas rurais. Assim também em Brasília, o autor praticava tiro ao alvo por puro lazer, talvez pelas reminiscências das caçadas nas fazendas e lagoas às margens do Rio Grande. Introduziu e treinou os filhos nessa modalidade de esportes, a partir dos 12 anos, e até conseguiram medalhas em campeonatos nacionais.

 

Mas, todos esses acontecimentos estavam inseridos num cenário de muita miséria para os negros. Eram maioria no município, cuja economia girava em torno das lavouras, especialmente o café, altamente exigente de mão de obra escrava. Com a abolição da escravidão tiveram que abandonar as fazendas. Aqueles que foram morar à beira das estradas, às vezes conseguiam, além de sua precária choupana, pequeno espaço para plantar, colher e criar algumas galinhas ou mesmo um porquinho de engorda para o sustento da família. Porém, para quem morava nas periferias de Lavras, com casebres amontoados, isso não era possível e a fome era constante. Este era o cenário de Lavras, pelo menos até os anos de 1960, conforme pesquisas de campo aqui citadas.

 

Como se viu, as consequências da violência contra os negros não se encerraram com a abolição da escravidão. Em certo sentido até se acentuou, pois, se de um lado cessaram os açoites físicos, por outro, acirraram-se as sequelas da alma ressentida, com a miséria e a fome em razão, principalmente, do abandono a que foram relegados pela sociedade e até mesmo a absurda negação de sua identidade civil. Tudo isso contribuiu para empurrá-los para o analfabetismo funcional e a marginalidade. Grande dívida social tem a sociedade brasileira para o reparo dessas injustiças cometidas contra os negros. Ainda bem que no limiar do século XXI medidas corretivas começaram a ser tomadas para mitigar os males de antes.

 

2.4.3- Consequências da escravidão - racismo e preconceitos

Há racismo no Brasil? Difícil de responder. Se considerarmos, no entanto, que o racismo é a herança de todas as relações construídas durante séculos de escravidão, onde o negro era comprado e tido como instrumento de trabalho e o branco europeu, o português, considerava injurioso e indigno o trabalho braçal, de fato havia discriminação racial no Brasil. Porém, essa discriminação racial tinha como base a equivocada crença de inferioridade das raças escravizadas, incluindo costumes, valores e comportamentos. Ainda que integrados à família do senhor dos escravos, o negro até chegava a gozar de simpatia. Porém se criasse algum problema era logo enquadrado como negro, escravo trabalhador braçal, seguindo-se adjetivações pejorativas. Este conceito de trabalho, reservado exclusivamente a escravos, felizmente não mais perdura. Entretanto, em recente passado ainda presenciamos tratamentos semelhantes dispensados aos negros. Junte-se a isso a falta de escolaridade e a subalternidade no trabalho e tinha-se um ambiente propício à continuidade da discriminação do período de escravidão que, diga-se, durou mais de 300 anos. Felizmente a situação começou a mudar com leis positivas e maior educação do brasileiro em geral. Em nada, mas nada mesmo e comprovado cientificamente, se baseia a equivocada crença de inferioridade das raças escravizadas (grifo nosso). Não gosta do nariz mais achatado da raça negra? Os padrões internacionais elegeram como modelo de beleza o nariz fino da raça que tem o crânio dolicocéfalo? Ora, ora, por que tamanha ignorância científica dos adeptos das falsas teorias racistas? Seriam elas baseadas apenas em valores estéticos? Como engenheiro gostamos de citar e comparar pesquisas da área de mecânica dos fluídos. Está demonstrado e comprovado que tubos estreitos, de menor diâmetro, comprimem e aquecem o líquido ou o ar neles injetados sob pressão. Ora a respiração humana o que é, senão a sucção (pressão negativa) do ar através das fossas nasais? Então..., para os esquimós, ou os moradores das gélidas regiões nórdicas, é certo que eles tenham “dutos nasais” mais estreitos, pois “aquecem” um pouquinho o ar gelado que respiram. Se eles se mudarem para a África, de clima seco e tórrido, ou mesmo para Teresina, no Piauí,  onde temperatura diária é de 40/42º C e nem se pode abastecer o avião depois das onze horas da manhã (perguntei isto ao comandante do avião e a resposta técnica: sujeito à evaporação e explosão do combustível), os esquimós teriam o ar aspirado com mais calor e desconforto. É por isso que os habitantes dos trópicos, no caso os negros, têm as fossas nasais mais alargadas. Portanto, nesse quesito fisiológico ou de estética, nada a ver com falsas teorias racistas. Não há espaço para racismo, somos iguais na alma e nos direitos e deveres humanos. Qualquer alteração é produto do meio e não racial entre os humanos. Há muito preconceito de cor e isso já é combatido pela educação e leis modernas que coíbem e punem infratores.

O historiador Laurentino Gomes ensina em seus livros sobre racismo que há dificuldades na sociedade brasileira em acertar as contas com o passado de escravidão. Para ele, a razão está no fato de que “a escravidão não é só um comércio de gente. Ela é uma estruturação da sociedade, de poder, distribuição de recursos, de terras, riquezas, de benefícios e de privilégios. Um grupo tem acesso a riqueza, a privilégios, a confortos, à repartição dos recursos públicos, e outro não”.  Uma pena, pois segundo ainda o historiador, citando uma frase do padre Antônio Vieira, do finalzinho do século XVII: “O Brasil tem o seu corpo na América, e a sua alma na África. Ou seja, a essência, o povo, o elemento mais importante de constituição da sociedade brasileira era de matriz africana e nós sempre valorizamos muito as riquezas físicas nacionais, mas não o povo, sua gente”.

 

Passada abolição começou outra série de problemas para os ex-escravos.  Precisava-se de trabalhadores, porém ex-escravo era perigoso sob a ótica dos fazendeiros. Então pressionaram o imperador para abrir a imigração para estrangeiros. Vieram os italianos a partir de 1890. Aceitavam-se quaisquer imigrantes, exceto negros e asiáticos., começando-se aí a discriminação oficial dos negros após a abolição. Antes mesmo do decreto de imigrações veio a lei da vadiagem que tipificava a prática pública da capoeira, esporte e dança de negros, como crimes. Não parraram por aí as ações do governo, pois em novembro de 1890, Rui Barbosa, Ministro da Justiça, determinou a queima dos arquivos oficiais de registros de escravos. No século XX, Getúlio Vargas sancionou a  Lei de Contravenções Penais, de 1940, impondo pena a quem for considerado vadio, ou seja o negro que perambulasse pelas ruas e sem emprego. Em 1945, novamente Getúlio Vargas regulamentou a imigração, limitando-a aos estrangeiros de “ascendência europeia”, em clara desconsideração à cidadania do negro. Foi a Lei Afonso Arinos, de 1951, a primeira no Brasil a incriminar a discriminação e preconceito racial, seguindo-se, em 1985, a lei que proibiu a discriminação em elevadores, reforçada pela a Lei 7.716/89,  tipificando como crime atos de discriminação de cor, raça, etnia, religião ou procedência nacional. Somente mais tarde, em 2002, surgiu o Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH, que dá suporte às políticas de discriminação positiva, as chamadas ações afirmativas, com vistas a devolver a cidadania plena aos descendentes de escravos, culminando com a aprovação a lei das cotas raciais nas universidades.

Com certeza esses novos dispositivos legais têm condições de abrir o caminho tão desejado para produzir as transformações necessárias à sociedade brasileira que, por tanto tempo, negou o direito à cidadania plena aos negros, os escravos de antes que eram destinados somente aos trabalhos braçais na construção do país que, ao final, recusou-lhes a plena cidadania. Assim foram mantidos até recentemente, nos mais baixos níveis da escala social, sem instrução e sem empregos qualificados. Grande dívida social!

 

3- Os Salles e o trabalho escravo nas fazendas e na cidade

Manoel da Costa Valle, pentavô e patriarca da família, chegou a Lavras em 1750, justo quando se esgotou o ouro das lavras faisqueiras de beira de riachos. O declínio das atividades de mineração provocou profundas mudanças na economia da recém-criada Capitania das Minas Gerais, que se separou de São Paulo em 1720. Nosso ancestral, optou pela exploração agropastoril às margens do Rio Grande. As condições geográficas e as terras férteis e virgens eram propícias ao desenvolvimento da produção agropecuária. Outro fator que contribuía para o sucesso do empreendimento de produção agrícola era a proximidade das terras da fazenda com o estreitamento do Rio Grande, a chamada garganta do funil. Seus cem metros de largura se estreitavam para apenas vinte, formando uma garganta rochosa que facilitava a construção de ponte capaz de suportar carroças e animais. Para lá convergiam os viajantes que precisavam atravessar suas tropas de comboios que rumavam para o norte e centro-oeste. Assim, a vila das Lavras do Funil, ou “arraial dos Bueno” se constituía em cruzamento natural das rotas da estrada real. Por isso, se tornou importante produtora agropecuária para o abastecimento do comercio de tropeiros que ali, obrigatoriamente faziam seu ponto de pouso para descanso, alimentação da tropa de burros cargueiros e compra de víveres para a longa jornada seguinte, de retorno à corte do Rio ou em sentido oposto, em direção às províncias de Goiás e Mato Grosso ou ainda às comarcas mineiras mais ao norte. Além da construção da ponte do Funil, a região também foi dotada de um porto para embarque de mercadorias, o Porto Alegre, onde hoje é a cidade de Ribeirão Vermelho. Ali havia também modernas embarcações para passageiros, barcos a vapor, iguais aos do Rio Mississipi, nos E.U. A, de onde, aliás foram importados. Esse porto, veio a ser mais tarde (1890) o principal ponto comercial da navegação do Rio Grande. O porto se integrava à rede ferroviária da EFOM, cuja estação de Ribeirão Vermelho foi inaugurada em 1888.

Por conta dessa efervescência nas rotas do ouro dos caminhos reais, a população da comarca do Rio das Mortes saltou de 49.485 em 1767, para 209.664, em 1821, sendo respectivamente 26.891 e 71.147 escravos (22). O arraial de Sant´Anna das Lavras do Funil já contava com 1.000 habitantes no ano de 1760. Pouco mais de cinquenta anos depois, em 1813, o arraial foi elevado à categoria de Freguesia e desmembrado de Carrancas e a população registrada contava 10.612 almas. A imensa população da Comarca do Rio das Mortes demandava considerável volume de produção de alimentos, acrescentando-se, ainda o crescente comércio de venda de alimentos de subsistência aos tropeiros a caminho do interior

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 (22) - Castro, B.M. – Forjando Liberdades na Encruzilhada da Escravidão: as alforrias cartoriais do termo de São João del Rei (c.1830 – c.1860). Curitiba: CRV 2021, pág. 32-33

 da colônia. Havia também os comerciantes que buscavam produtos para outras praças, especialmente para a corte do Rio de Janeiro, de onde também traziam sal, produtos manufaturados importados da Inglaterra e especiarias. Não foi à toa que Manoel da Costa Valle escolheu a região de Lavras para fincar raízes e estabelecer seu próspero negócio de produção agropecuária. Aliás, outra eminente figura teve os mesmos motivos para se instalar em Lavras, o missionário norte-americano Samuel Rhea Gammon, em 1892, quase um século e meio depois de  Manoel da Costa Valle. O Dr Gammon também enxergou potencial na região devido a sua estratégica posição geográfica que facilitaria o desenvolvimento. Foi assim que instalou em Lavras uma Escola Internacional, transferida de Campinas e que se transformou numa das melhores universidades do país, a UFLA. Da mesma forma e quase simultaneamente, empresários da E.F.O. M- Estrada de Ferro Oeste de Minas, compraram em 1892 a Fazenda do Engenho, localizada onde se situa a cidade de Ribeirão Vermelho e que pertencia aos avós paternos deste autor. Ali instalaram, em 1895, o complexo ferroviário com a estação, rotunda e ponte metálica sobre o Rio Grande com ramal ferroviário estendido até a sede da cidade de Lavras. Como se vê, o pentavô das famílias Salles, Pádua e Costa, não foi o único a antever o potencial daquele ponto estratégico da região de Lavras. O patriarca pioneiro acertou em seus prognósticos, pois a população cresceu vertiginosamente e a demanda por alimentos aumentou, como de fato se comprovou ao longo do tempo.

 Por conta desse progresso havia necessidade de elevada quantidade de mão de obra para tocar as lavouras e os rebanhos de gado de leite e corte, suínos e até mesmo ovinos para produção de lã. A mão de obra, como não poderia ser diferente naqueles tempos, era quase que exclusivamente escrava, fosse na mineração do ouro ou na produção agropastoril.  Lavras, se não teve tanto ouro como se esperava, tanto que até a batizaram com um nome referente à mineração, foi privilegiada geograficamente e também pela fertilidade do solo e abundância de água. Ponto ideal para a logística das viagens exploratórias dos séculos XVIII e XIX havia na comarca do Rio das Mortes e em especial no Termo da Vila de São João Del Rei, intenso comercio de grãos, couros, tecidos grosseiros de algodão (tradição também em Lavras até os anos de 1950/60).  Na fazenda dos pais e avós do autor havia rebanhos de ovelhas para produção de lã e pequenas plantações de algodão (23). Também eram produzidos nas fazendas de Lavras, com destinação ao comercio tropeiro,  a banha de porco, toucinho defumado, farinhas, queijos, açúcar, carne de sol, reses e suínos para abate.

Nos anos oitocentos, a cidade de São João Del Rei drenava grande parte da produção agropastoril e funcionava como centro creditício para os fazendeiros promovendo financiamentos para a produção e comercialização. Assim, com a crescente produção agrícola, puderam realocar a força de trabalho dos escravos já ociosos sem o ouro para garimpar. Por outro lado, as cidades oitocentistas ainda carregavam o estilo português, já

 

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(23) Silva, Paulo Roberto. Preciosidades de Minas: o Algodão, ovelhas, fruticultura e o papel da mulher na lida do campo, nos séculos XIX e XX, na região de Lavras.  http://contosdaslavras.blogspot.com/2019/03/o-algodao-as-ovelhas-de-producao-de-la.html   O autor, ainda criança, participou nos anos de 1950 de mutirões de preparação da lã, para a fiação nas fazendas da família. Os novelos de lã, depois de tingidos eram enviados para as tecelagens artesanais localizadas no distrito de Rosário, entre Lavas e S.J.D. Rei.


comentado anteriormente, ou seja, para a maioria dos habitantes da comarca, a cidade representava apenas o ponto de encontro nos finais de semana ou em dias de festa. Quase todos moravam nas fazendas e os poucos moradores urbanos tinham suas chácaras na cidade com enormes quintais onde produziam alguns alimentos, especialmente a criação de galinhas. Era comum  até mesmo a engorda de suíno para consumo próprio, costume esse que perdurou até os anos de 1960/70. Quando Manoel da Costa Vale chegou às Lavras por volta de 1750, a virada do perfil econômico já havia acontecido e logo iniciou as atividades agrícolas. Não havia, ainda, naquele século XVIII nenhum  tipo de mecanização nas atividades agrícolas e tudo era feito por mão de obra escrava e a importação de negros foi bastante elevada, principalmente em Minas Gerais no período 1750/1850.  Nossos antepassados não fugiram à regra do país escravocrata. Nas grandes fazendas era comum haver mais de trinta escravos. Estudos em inventários de 103 fazendas sanjoanenses, revelaram que mais da metade, 54 fazendas tinham mais de 30 escravos. Basta dizer que o café, produto que demanda grande quantidade de braços para seu cultivo, exportou no ano de 1800 apenas 150 quilos produzidos na província de Minas Gerais e representava apenas 1 ou 2% das exportações até 1830, saltou para 45% nos anos seguintes, dobrando em relação ao açúcar em declínio. O café foi, portanto na segunda metade do século XIX, a salvação dos fazendeiros, pois as exportações de  açúcar, algodão e tabaco haviam caído vertiginosamente.  Manoel da Costa Valle e mais tarde seus descendentes, Salles e Pádua, seguiram a mesma trilha dos fazendeiros da região. Com terras férteis às margens do Rio Grande, tratou logo de instalar lavouras para subsistência e pequeno engenho de produção de aguardente e açúcar. Trouxe consigo o costume português de consumo de frutas de clima temperado e seus deliciosos doces, como o marmelo, figo, pera, pêssego e outras. Para completar, descobriu que a deliciosa goiaba, fruta nativa, se prestava também à fabricação de doces e geleias em substituição ao marmelo ainda inexistente por aqui, mas abundante em Portugal, de onde importou algumas mudas de marmeleiro, iniciando assim a tradição dos lavrenses de sempre cultivar essa deliciosa fruta em seus pomares domésticos para produção de geleias e marmelada. 



Manoel da Costa Valle também cultivava em suas fazendas o fumo, que tinha grande procura e o algodão para produção de fibras para tecidos. A criação de ovelhas também era outra tradição portuguesa, para produção de lã e confecção de colchas que aqueciam no rigoroso inverno montanhês do sul de Minas. O Rio Grande, piscoso por natureza, fornecia o pescado, as curimbas, piracanjubas e dourados em abundância. Em 2016 visitamos as fazendas do Meio e do Açude, propriedade dos Salles e posteriormente transformada em pousada e lá ainda encontramos os pequenos açudes e tanques, de água corrente e límpida, que serviam para a colocação dos peixes recém-pescados no rio e usados para a alimentação e venda aos viajantes de acordo com a demanda.  Some-se a tudo isso, ainda, a criação de gado, muares e principalmente de suínos, responsáveis pela produção de banha e carnes cosidas e armazenadas em latas de 18 litros, conservando-se por três meses, sem nenhuma refrigeração ou aditivos químicos. Havia ainda na fazenda a produção de aguardente, açúcar e rapadura, produtos que associados à farinha de mandioca (cultivo indígena e logo absorvido pelos portugueses) e mais tarde o café produzido em grande escala. Assim, produzia-se tudo que um viajante tropeiro necessitava para a longa travessia dos sertões das gerais rumo ao interior.  Evidente que todas essas atividades das fazendas dos Salles exigiam grande número de escravos para que se mantivesse uma escala de produção comercial.




    Fala-se muito da produção de café nas fazendas de Lavras, mas, não se pode esquecer que o fumo, um dos cultivos tradicionais entre o Salles, também ocupou considerável espaço. Seu cultivo exigia muita mão de obra e era um produto de consumo muito difundido entre a população das fazendas e das vilas. Ainda hoje, no século XXI, existem plantações de fumo nas fazendas das colinas do rio Grande, incluindo-se a terras das fazendas Limeira, do Meio, Barreiro, Bela Vista, Fábrica Velha e tantas outras que ainda hoje permanecem na posse dos Salles e Pádua. No mesmo período do café também cresceram muito as produções de milho, feijão e mandioca que eram plantados entre as fileiras de café,

costume trazido para Minas pelos paulistas (24). Para tantas e intensas atividades agrícolas, os fazendeiros tinham que investir pesado na aquisição de escravos. Saint Hilaire descreveu, em sua viagem de 1822 pelo vale do Paraíba, que os fazendeiros gastavam todas as suas rendas na compra de escravos e estes se dividiam em trabalhadores da lavoura, condução de carros de bois, tropas de burros, cuidados com o gado de leite, aves e porcos para produção de banha, carne e toucinho. A produção desses alimentos básicos, utilizados na subsistência e venda aos tropeiros viajantes, era bastante intensa em Lavras, pois ali era ponto de parada obrigatória para descanso e reabastecimento da tropa.

Não eram muitos os escravos da família Salles, embora ocupassem grande faixa de terras ao longo de ambas as margens do Rio Grande e depois subdivididas em várias fazendas, conforme registrou o historiador Marcio Salviano Vilela (25).  Sobre a relação numérica de escravos dos Salles ainda não foi possível encontrar dados que cubram todo o período desde a chegada à Lavras de Manoel da Costa Valle, nem mesmo nos poucos testamentos deixados a herdeiros. Mas, pelos relatos de parentes nascidos entre 1895 e 1920 e a presença dos descendentes dos escravos nas fazendas dos Salles, não restam dúvidas que a quantidade deles foi limitada. Em 2016 o autor entrevistou o mais longevo membro da família Salles, Fortunato Pereira Sales Filho (1920-2019), conhecido por Nanato, tendo falecido aos 99 anos de idade. Era filho de Fortunato Pereira de Salles e neto de Domingos Pereira de Salles (1850-1929) e Lucinda Maria de Jesus Salles. Nasceu na Fazenda do Meio, de propriedade de seu avô, onde passava temporadas e viveu a maior parte de sua vida na fazenda Três Barras, onde constituiu família. Relatou ter convivido com filhos de escravos, com os quais brincava e pescava no Rio Grande.


Nanato - Fortunato Pereira Salles Filho, aos 96 anos, com o autor e Anizio Pereira da Silva. Nascido em 1920, conviveu com filhos de escravos na fazenda do Meio e depois nas Três Barras, onde se radicou. Memória viva, lúcida, contou-nos diversas passagens de sua vida na companhia de descendentes

de escravos que com ele trabalhavam nas fazendas.

Foto do autor - 2016, Lavras,


Segundo Nanato, existiam vários descendentes de escravos na fazenda de seu pai e outros parentes, na região de Ribeirão Vermelho e Perdões, principalmente nas fazendas do Meio, Açude, Limeira e Barreiro. Alguns desses descendentes de escravos se mudaram para a região das Três Barras, onde já moravam alguns Salles. Ele próprio levou um deles para a sua propriedade rural.   Confirmou que os descendentes de escravos tinham habilidades

           

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(24) Del Priori. Mary. Histórias da gente brasileira: volume 2: Império. São Paulo: LeYa, 2016. 520p. pp58-  

         83

(25) Vilela, Marcio Salviano.  Minha Aldeia, a pérola do Rio Grande. Indi- Editora, Lavras 2014. 736p.  

 

específicas, uns eram carreiros, outros balaieiros, carpinteiros, ferreiros e vaqueiros mas, a maioria trabalhava nas lavouras de milho, arroz, feijão, café, algodão e fumo cuja produção era tradição entre os Salles. O fumo era comercializado para outras cidades do sul de Minas, de onde vinham os compradores, especialmente de Itanhandu. As produções de algodão e lã de carneiro eram usadas para a tecelagem de colchas. Além dos Salles, todas as fazendas das regiões das Três Barras, Fábrica Velha, Criminoso, Cervo , Ribeirãozinho tinham camaradas descendentes diretos de escravos, informou Nanato. Na fazenda das Três Barras, de Amanda Custódia de Abreu (Samanda), avó paterna deste autor, havia também alguns descendentes diretos de escravos, já citados, conhecidos de Nanato e com os quais também convivemos.

 

 

 4-   Os anos de 1950/60 e as influências da escravidão em Lavras

A escravidão em Lavras teve acontecimentos marcantes como as revoltas descritas anteriormente. No entanto, predominaram as características próprias do lugar, com fazendas de médio porte, com até dez escravos na propriedade onde moravam os próprios fazendeiros e suas famílias. Castigos e torturas para escravos revoltosos eram acontecimentos mais comuns nas efervescentes capitais de províncias como Ouro Preto, ou mesmo São João Del Rei, cabeça de comarca. Embora tivesse havido um pelourinho em Lavras, seu uso não era frequente, a julgar pela escassez de registros. Há que lembrar que as torturas de escravos eram mais comuns em grandes fazendas, cujos senhores moravam fora e deixavam os escravos, em grande número, sob o comando de feitores, verdadeiros carrascos que exigiam esforço desmedido dos cativos. Nada mais natural do que desejar e buscar a liberdade, livrando-se do jugo da escravidão e seus cruéis castigos. Mas, a maioria das fazendas de Lavras, pelo menos


Pelourinho- Negro no tronco. Castigo publico com açoites.

Foto: Biblioteca Publica de N. York. Gravura de Debret, em Viagem pitoresca e histórica ao Brasil- 1834.



a partir da segunda metade do século XIX, era de tamanho médio com menos se dez escravos e diretamente administrados pelos próprios donos que não tinham interesse em criar conflitos com seus cativos. Assim, os relacionamentos com os negros eram pacíficos, em sua grande maioria, criando-se até mesmo laços afetivos. Convidavam seus senhores para apadrinhar filhos e frequentavam os cultos religiosos na fazenda ou na cidade e tudo isso como forma de agradar ao poderoso senhor das terras e de seu destino. Também promoviam festas como a congada, folia de reis, festa do Divino Espírito Santo e outras do calendário religioso, sempre buscando agradar e se aproximar socialmente dos fazendeiros, seus senhores absolutos. Na família Salles, já na primeira metade do século XX, havia grande integração dos homens em atividades esportivas com pelo menos dois times de futebol registrados e que disputavam campeonatos regionais. Outra forma de aproximação social dos escravos era manter a esposa

 


 


 


ou filhas trabalhando na cozinha da casa grande. Assim, criavam-se vínculos afetivos com toda a família do fazendeiro. Além disso, os costumes negros trazidos de diferentes regiões da África tiveram influências no idioma e na culinária dos brasileiros.  Um exemplo típico é o modo de falar dos mineiros do sul de Minas, colocando o diminutivo de forma carinhosa em quase tudo – um pouquinho, carrinho, pedacinho, comidinha, cafezinho e assim por diante. Essa foi uma das marcas da influência das amas secas que cuidavam da filharada da Casa Grande, pois no Brasil colonial a sociedade era rural e patriarcal com grande miscigenação, o que não ocorria em outros países. Aqui, os colonizadores chegaram solteiros, sem a família na maioria das vezes em busca da riqueza do ouro. Seguindo a tradição das fazendas, este autor conviveu, quando menino, com camaradas (empregados rurais) descendentes de negros e italianos que labutavam no eito ou na casa grande. Nesta estavam as amas de leite, cuidadoras de crianças e as encarregadas dos cuidados domésticos. No retiro (assim era chamado o curral de gado leiteiro) estava o negro Abílio que também levava o leite em latões na tropa de burros até a fabrica de laticínios da fazenda Criminoso. Os vaqueiros Maé e Paixão, negro alto, forte, de porte atlético, com enorme chapéu de palha e laço de couro trançado, pronto para laçar o animal que lhe fosse pedido, incluindo as ovelhas na época da tosquia, quando os meninos adoravam pegar no colo os cordeirinhos de lã macia e sedosa, enquanto a ovelha-mãe era tosquiada. Havia, ainda, em nossa fazenda, o folclórico negro, Lázaro Simão, de uns 40 anos, calvo, o melhor e mais requisitado balaieiro/cesteiro da região. Era capaz de tecer com taquaras de bambu os mais diversos tipos de cestos. Teceu um grande cesto, com formato de barco, chamado de rede de balanço. Dependurada no madeiramento da cozinha, a criança ficava na rede sob os cuidados da cozinheira. 


 

Havia também, entre os negros outro camarada, de origem italiana, Vitor Amaro. Olhos azuis e pele muito clara, que o obrigava a usar um enorme chapéu de palha. Era o carreiro, que cuidava dos bois de carro e os conduzia com maestria, bastando apenas chamar, com vozeirão de barítono, o nome de cada boi e o mesmo o obedecia fielmente. Nunca maltratava nenhum deles, nem mesmo nas dificuldades de atoleiros ou íngremes subidas dos morros daquelas serras à beira do Rio Grande. Ao contrário, sempre os agradava com uma espiga de milho ou sal que os animais tanto gostam. Seus gritos no comando da boiada, o tintilar da vara de ferrão bem na cara do boi, mas sem no entanto esbarrar no animal, o cantar do carro cheio de milho ou café recém-colhido, eram música e alegria para os meninos aboletados no alto da carga do carro de boi a descer e subir os morros à beira do Rio Grande ou das cachoeiras do ribeirão Água Limpa.

 

Na fazenda Jacuba, pertencente à nossa família e situada às margens do Rio Grande, na divisa com a fazenda Maria Jerônima de Naná Pádua, herdeira do Sr Tonico de Pádua e bem próximo à cidade de Ribeirão Vermelho, trabalhava outro negro. Personalidade marcante, o Sr Benedito, alto, forte e também dono de vozeirão, sempre nos recebia com muita cordialidade e às vezes, com ele e sua família almoçávamos depois de hora e meia de cavalgada pelas estradas íngremes que cortavam as fazendas da Serra de Iraci Salles e da Cachoeira de Tonico de Pádua. Sr Benedito tinha gosto especial pelo feijão preto, costume dos cariocas que ele conservava. Por ser um feijão de sabor mais acentuado, os meninos não gostavam muito, mas sempre havia alguém a dizer-lhes que aquele feijão era especial e fazia engrossar a voz, tal qual a do Sr Benedito. Nas demais fazendas da família havia outros negros como o retireiro (aquele que cuida das vacas leiteiras) Tião Gaudêncio, Antônio carreiro, Euclides, Calixto, Vitão, que era um bom jogador do time Três Barras Futebol Club cujo “diretor” era o nosso avô, Anísio Gaspar, casado com uma Salles. Era o proprietário da fazenda, do campo de futebol e do apito do jogo, quando ele mesmo não estava jogando no ataque de seu time.  Pelo lado feminino, havia a Tódia (Nelzira Afonso Gaudêncio), Fia e a famosa Sá Benedita e sua neta Maria e o irmão menor, Rogério, que chegou a ser adotado por uns tempos em nossa casa. 

   


 

Na cidade, além das que trabalhavam na casa, havia sempre a companhia de dona Elzira, vizinha e madrinha de mais de uma centena de afilhados e que tratava a todos com extrema doçura como se filhos fossem. Aliás, educou todos os filhos até a faculdade, tornando-os profissionais liberais, professores e até oficiais das Forças Armadas. Uma de suas filhas alfabetizou o próprio pai que era militar. Isto sem contar os inúmeros negros da cidade com os quais nos relacionávamos, como famoso açougueiro Tote e seu irmão, Grilo, motorista do ônibus- lotação urbano. Mas, a  fazenda era o nosso espaço, onde as crianças passavam os meses de férias com os netos de escravos, alguns um pouco mais velhos como as pajens e adultos que estavam sempre ao nosso redor, formando uma imensa família, de puro amor e respeito recíproco, como era exigido pela matriarca da família.

De certa forma todas essas pessoas nos marcaram e deixaram um legado de amor que ainda hoje, setenta anos depois, os lembramos com carinho. Interessante que até mesmo aquela negra que assustava as crianças, Sá Benedita, está entre as reminiscências da infância e hoje vemos o caso com outra lente. Como era inadequado o tratamento que se dispensava às crianças. Havia sempre o falso “terror”, incentivado pelos parentes como modo de se “educar” as crianças artiosas. Bastava falar que iriam contar tal traquinice à velha Benedita para os meninos se aquietarem, tal era o medo que causava em todos. Tinhas olhos embaçados e um único dente incisivo à mostra e ela gostava de exercitar esse “poder” sobre os pirralhos, “menino custoso”,  como era chamado em Lavras. Havia sempre a promessa de que “o homem doido” ou Sô Juvenal iriam colocá-los num saco, sequestrá-los e levar para bem longe (crueldade... para com os miúdos). Aliás, encontramos a origem dessa lenda do “homem do saco” que sequestra criancinhas. Laurentino Gomes conta que a história é verdadeira, registrada na autobiografia de um escravo nigeriano, Olaudah Equiano, alforriado nos E.U.A. O ex-escravo relata em seu livro (26) que “havia a prática indiscriminada de sequestrar e escravizar pessoas em toda a região onde morava. Os traficantes levavam consigo grandes sacos, usados para imobilizar os sequestrados, especialmente crianças e adolescentes”. Ele próprio, com apenas dez anos de idade, foi vítima desse tipo de sequestro quando estava sozinho em casa, com os irmãos, enquanto os pais trabalhavam fora. Foi levado para a      Inglaterra e ali, em 1776, comprou sua liberdade e passou a lutar pela abolição da escravatura e término de comercio escravo. Ora, tivessem nossos pais ou professoras do curso primário, conhecido a origem dessa história do terrível homem do saco que sequestra crianças na rua..., este autor e demais meninos dos anos de 1950 não teriam tido tanto medo dos juvenais, beneditas e tantos outros nome que circulavam em Lavras como seguidores daquele costume de 200 anos antes na distante Nigéria, colônia dos ingleses na África.

  O menino Olaudah Equiano e sua história. Sequestrado aos 10 anos foi metido num saco e levado ao capitão do navio inglês. Transformado em escravo conseguiu a alforria em 1776 e tornou-se ativista na causa da abolição da escravidão na Inglaterra.  Foto: internet

Certamente os escravos que viviam em Lavras tiveram amigos e parentes que passaram por situação semelhante, ou conheciam a história do sequestro de Olaudah Equiano, de triste memória. Histórias de sequestros de crianças, tristes e verdadeiras, mas que transpostas no tempo e no espaço serviam como “fakes” para amedrontar as crianças artiosas que as próprias amas ou pajens negras cuidavam. Lavras era cheia dessas histórias contadas por escravos e repetidas pelas mães aos meninos travessos, como o autor que era chamado de “menino custoso”. Infância recheada de influências dos negros ex-escravos e seus descendentes que representavam a metade da população da cidade

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(26) Olaudah Equiano. The interesting Narrative and other writings pp 37 e 47. In: Gomes, Laurentino. 2019 op cit.,  p. 163

A convivência em meio à família com os negros, durante toda a infância e juventude, foi apenas uma das características marcantes nas Lavras da segunda metade do século passado. Os meninos negros eram companheiros de caçadas, pescarias, “peladas” de futebol, seguidas de mergulhos no ribeirão e lagoas às margens do Rio Grande e tudo mais que se podia fazer com plena liberdade na imensidão dos espaços das fazendas e da chácara na cidade. Já os adultos estavam sempre solícitos a qualquer pedido dos garotos como apanhar frutas, arrear os cavalos e acompanhar na natação nas enchentes dos ribeirões, com jangadas improvisadas com os pseudocaules das bananeiras ou mesmo nas cavalgadas pelos campos, serras e margens do Rio Grande onde, mais tarde, promovíamos caçadas com as espingardas cartucheiras. Das mulheres negras restaram as lembranças das amas, amigas, contadoras de histórias e que estavam sempre prontas a cuidar da meninada com muito amor e carinho além de preparar quitutes, arrumar nossas bagunças e cuidar dos demais afazeres do lar. Todos eram mesmo considerados pessoas da família, tratadas com respeito e compartilhavam tudo em igualdade com todos da família. Tanto assim que seus casamentos eram realizados em nossas casas e seus filhos continuaram esse relacionamento familiar.

Além das doces memórias das traquinices e dos carinhos recebidos dos negros e negras nos tempos de infância e juventude, mais tarde surgiram outros garotos negros como Antônio Augusto, colega do 4º ano do Grupo Escolar Padre Dehon e que certa vez presenteou-nos com um belíssimo e desconhecido fruto, o caju, bem vermelho, de cheiro inebriante, saboroso e raro no sul de Minas. Ainda hoje quando saboreamos aquela fruta, a imagem e o forte aroma experimentado há tanto tempo vêm à mente a memória daquele negrinho amigo, comunicativo, alegre e esperto nas corridas. Era imbatível no ”pique”. Ninguém o pegava nessas brincadeiras e por isso ganhou o apelido de “mosquito elétrico”. Logo em seguida, em 1957, emigrou com seus pais adotivos para o norte do Paraná onde se estabeleceram no mesmo ramo da produção agrícola e de gado de leite. Ali, segundo alguns Salles que também imigraram para lá, dispensou todos os cuidados a seus pais adotivos quando eles mais precisaram e sempre gozou do carinho e respeito de toda a família e amigos. Toninho Resende. O doce e alegre menino dos anos de 1950 faleceu recentemente no Paraná, onde sempre morou com os Resende.

Mas, o relacionamento com os amiguinhos negros não foi apenas de alegrias. Histórias tristes também aconteceram. Um pouco mais tarde, já no colégio, perdemos dois de três  colegas negros que tiveram que interromper os estudos para trabalhar e ajudar no sustento dos irmãos, conforme descrito mais adiante. Porém, pode-se afirmar, com segurança que a convivência entre filhos de fazendeiros de toda a região de Lavras e os camaradas das fazendas, negros ou não, foi muito pacífica, embora nem sempre as condições de trabalho tivessem sido as melhores naquela metade do século XX. Da mesma forma, o acesso à educação foi muito dificultado pela carência generalizada de escolas rurais. Nas diversas fazendas dos Salles/Pádua, na região das Três Barras, Queixada, Cajuru do Cervo, Lagoinha, Boa Vista, Criminoso (27) e Fábrica Velha, havia pelo menos uma escola primária em cada local. Embora

 

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(27) O historiador Nemeth-Torres, do Instituto Histórico e Geográfico de Lavras – IHGL, publicou a ata de inauguração da capela da Fazenda Criminoso, ocorrida em 1933, então pertencente à família Salles. Ali funcionou, desde a inauguração da capela, uma escola primária, vinculada à rede municipal ensino. In: https://www.facebook.com/groups/1630561507216102

faltassem condições, com grandes dificuldades próprias da época como a inexistência de professoras, e muitas eram leigas e quase sempre as mesmas abnegadas mulheres da família Salles, ainda assim alguns fazendeiros se esforçaram para manter o ensino regular em suas fazendas. Embora precárias e geralmente com professoras leigas, essas escolas eram supervisionadas pela municipalidade e nelas todas as crianças eram atendidas, filhos de proprietários de terras ou de simples trabalhadores rurais. Mas, ainda assim, a realidade para 

 
Capela N.S.do Perpétuo Socorro, inaugurada em 1933 na Fazenda Criminoso, então propriedade de Anísio Alves de Abreu e Lucinda Augusta Salles. No seu interior funcionava a escola primária . Foto do autor - 2013


os negros foi mais dura, pois não puderam prosseguir os estudos na cidade. A consequência foi que anos mais tarde nenhum daqueles meninos negros da década de 1950 ocupou cargos na administração pública ou na iniciativa privada (grifo nosso). Nunca tivemos em Brasília, com mais de vinte mil cargos de assessoria, um único chefe negro. Nem mesmo algum professor que fosse negro. Constatou-se o óbvio nas recentes pesquisas do MEC, confirmando a situação educacional dos negros. Viveram o drama de ficar para trás e pior, inchando as periferias pobres de nossas cidades, padecendo dos males do desemprego, das drogas, prostituição, da marginalidade e tudo mais de ruim que possa existir quando se falta a dignidade do trabalho remunerado. Por isso, conhecendo essa realidade por meio a convivência com os negros nas fazendas, na cidade e nas escolas, nos dedicamos com afinco na defesa, no MEC e no Palácio do Planalto, a criação das cotas educacionais como política de inserção dos negros. Temos uma enorme dívida social para com os descendentes negros e aqueles que sempre conviveram com eles, fraternalmente, compreendem melhor o alcance social dessas medidas sociais, ainda que paliativas.

 Assim, em meio à família Salles, vivemos e convivemos com os camaradas das fazendas, ainda “meio-escravos” no século 20, pois até os anos de 1950 não havia salário para trabalhador rural. Permanecia o velho sistema das fazendas do sul de Minas, onde o empregado, chamado de “camarada”, morava numa pequena casa, sem água encanada e tampouco energia elétrica, facilidades inexistentes, aliás, até mesmo nas sedes das fazendas de café e gado de leite. Trabalhavam até o meio dia para o patrão no regime de plantio à meia.  Recebiam a terra preparada, arada e gradeada, sementes e adubos. O camarada cuidava da capina e da colheita e a produção era dividida igualmente com o patrão. Ao redor de sua casinha ele mantinha pequenas plantações, criação de galinhas e um ou dois porquinhos de engorda que lhe produziam carne, o toucinho e banha para a cozinha. Escola para os filhos quase não existiam e assim muitos cresceram analfabetos, mas, lamentável e dolorosamente estavam prontos para o trabalho na enxada aos 12 anos de idade. Infelizmente esse era o costume nas fazendas da região de Lavras, até os anos de 1950/60 e os meninos analfabetos assim permaneciam pelo resto de suas vidas. Dura realidade para as crianças, filhos de negros nas fazendas do Brasil colonial escravocrata e cujos costumes e efeitos ainda se estenderam por quase todo o século XX.

Havia na fazenda muitos outros negros e até italianos como as famílias Nicola, Amaro e Magliano (Mariano, para nós).  Pelo lado feminino as negras Marieta, Tódia, Fia, e a famosa Sá Benedita e sua neta Maria do Gaspar, nos deixaram as lembranças de amas, amigas, contadoras de histórias e que estavam sempre prontas a cuidar da meninada com muito amor e carinho, além de preparar quitutes, arrumar as bagunças e demais afazeres do lar. Todos, homens e mulheres, eram mesmo considerados pessoas da família, verdadeiros agregados que compartilhavam tudo em igualdade. Tanto assim que seus casamentos eram realizados em nossas casas e seus filhos continuaram esse relacionamento familiar de compadrio.  Todas permaneceram agregadas à família até se casarem e a ultima, até sua morte, no ano de 2020, aos 75 anos de idade e cercada de atenção e carinho pela família Salles que a adotara desde criança. As famílias sanguíneas dos agregados tinham também fortes vínculos com os Salles. Frequentemente os visitavam e anualmente, também íamos às festas juninas em suas humildes casas, geralmente situadas em fazendas vizinhas. Nunca ouvimos de nossos pais e avós notícia alguma sobre violência com negros nas fazendas, o que demonstra que o sistema escravocrata de antes da abolição e principalmente após a Lei Áurea, foi mais brando no quesito violência. Em Lavras, podemos afirmar que os descendentes dos escravos criaram vínculos de amizade e respeito mútuos, na cidade e no campo, até porque eram poucos numericamente em cada fazenda. Uma senhora negra, de extrema empatia e que era vizinha na cidade, Dona Elzira, se gabava naqueles anos de 1950, que tinha mais de cento e vinte afilhados e os padrinhos de seus próprios filhos eram cidadãos de prestígio, como o Dr Lourenço Menicucci, Francisco Dessimoni e outros, demonstrando o grau de proximidade e o orgulho da amizade entre negros e brancos na cidade de Lavras.

Mais tarde, convivemos com outros negros, o garoto Rogério da Benedita, adotado por nossa família e na escola primária com Antônio Augusto Resende. Para encerrar a seleção parcial de nomes que marcaram nossas vidas, avançamos para a década de 1990. Em Brasília aconteceu um fato marcante na convivência com os negros. Acolhemos o garoto Edson, de apenas dez anos, despachado de Luanda, capital de Angola, por ordem judicial. Por coincidência, do mesmo país que mais forneceu escravos para Lavras e toda Minas Gerais, conforme descrito no prefácio deste artigo. Desta vez, diferentemente, como dito antes, o menino não foi sequestrado e nem colocado em saco e entregue ao comandante do navio negreiro. Viajou com todo conforto aos cuidados do comandante da luxuosa e enorme aeronave Airbus 330. Ali estava mais uma oportunidade para sanar um pouco os erros do passado. Tinha forte sotaque angolano, inibido, vestia roupas surradas e trazia apenas uma sacolinha de papelão contendo quase nada. Efetivamente, todo apoio lhe foi dado, mereceu toda a atenção de nossa família, professoras e vizinhos que dele se compadeceram. Difícil foi conter a emoção, ainda mais quando contou que passava fome e dormia em cima de árvores para fugir das minas enterradas pelo chão das ruas descalças da periferia de Luanda.

Ainda em Brasília tivemos contato e convivência com outros negros. O velho Carioca, remanescente do Quilombo do Mesquita, na divisa do Distrito Federal com Goiás, foi quem cuidou dos plantios de fruteiras da chácara recém-adquirida, em 1981. Mais tarde visitei o Quilombo do Mesquita, onde os costumes negros eram os mesmos de Lavras. Aliás, situado próximo aos municípios  de Luziânia e Cristalina, terra das minerações de ouro desde os anos de 1763, quando os bandeirantes paulistas partiam do funil do Rio Grande, pela picada de Goiás iniciada pelos Buenos de Lavras, a concentração de escravos tinha as mesmas características da região do arraial de Sant`Anna das Lavras do Funil, onde já estava o patriarca dos Salles com seus negócios a abastecer os viajantes e tropeiros que pegavam a picada pata Goiás. Em 2016 este autor participou da Festa do Marmelo no Quilombo do Mesquita (28) e se sentiu em casa com os costumes dos negros, os mesmos praticados em Lavras. O cultivo do marmelo naquele quilombo foi um costume que os portugueses também deixaram aqui, tal qual em Lavras e todo o sul de Minas. 

Fotos do autor – fazendo doce de marmelo com o orgulhoso quilombola. na  Festa do Marmelo - Quilombo Mesquita, Luziânia-Go, 216 

 

Finalizando o breve histórico sobre a vida dos negros nas fazendas de Lavras e região, pode-se dizer que os casos violentos de Carrancas e de Francisco Congo, foram exceções. A conduta dos mineiros, pequenos e médios fazendeiros, em relação a seus escravos sempre foi pacífica, pois eram bem integrados ao estilo de compadrio e se acercavam da casa grande, com trabalhos e festas. Isto, no entanto, não descaracteriza a violência da escravidão em si. Definitivamente, a escravidão no Brasil deixou marcas indeléveis, tanto nos descendentes dos negros escravizados como em nós que com eles convivemos nas fazendas e nas cidades.  Os negros tiveram menos oportunidades na educação e no trabalho e isso não foi diferente em Lavras, como se viu pelos relatos apresentados. Desde o início da abolição em 1888, os negros lutaram em desigualdade e mal se mantinham, subsistiam.  A partir de então, a.

 

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(28)  https://contosdaslavras.blogspot.com/search?q=quilombo+do+mesquita

 

sociedade brasileira reafirmou a sua hierarquização em classes que perpetuou os negros nos extratos subalternos e o racismo passou a ser velado e, por isso, mais difícil de ser combatido.

 

 

4.1- As favelas na cidade de Lavras, 1888 - 1968

 

 Na segunda metade do século XIX os levantes de escravos se alastravam por todo o Império e o governo já não suportava mais as pressões externas e internas para por fim ao absurdo da escravidão. Assim, no domingo de 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinou a Lei Áurea, libertando os escravos. Porém, sem nenhum amparo aos libertos, os negros se viram abandonados na estrada. Sem apoio algum, muitos permaneceram junto aos seus senhores, quase na mesma condição de escravo, enquanto outros perambulavam pelos caminhos em direção às cidades, vez que eram escorraçados das fazendas por onde passavam em busca de comida e trabalho. Começou aí, com maior intensidade, o processo de favelização das periferias das cidades. Foi assim também em Lavras. Os ex-escravos tinham apenas duas opções, continuar nas fazendas ou ir para a periferia das cidades. Grande parte foi para a cidade e os das fazendas continuavam sem salários dignos, trabalhando expediente corrido, de seis da manhã até o meio dia para o patrão e depois cuidando de plantar sua roça de milho, feijão ou outra, no regime de “meia”. Esse sistema perdurou até a chegada da “Reforma Agrária” de 1964, quando então os trabalhadores rurais foram expulsos de vez das fazendas e mais uma vez, 76 anos depois da abolição da escravidão, migraram para a periferia das cidades.

 

Todas as estradas de chegada à cidade de Lavras foram tomadas pelos escravos expulsos das fazendas, em duas ocasiões, em 1888 e 1964. Ao chegarem à cidade, onde desembocavam as estradas, eles se acamparam definitivamente. As diversas saídas da cidade de Lavras para as fazendas, como as ruas do Capim, Serrinha, Rosas, da Cava, Chapada, Charquinho, do ribeirão Vermelho, da Ponte do Funil, Estação Experimental, Aquenta Sol, do ribeirão Santa Cruz e Poço Bonito, enfim todas as entradas da cidade foram tomadas pelas levas de retirantes expulsos das fazendas. Alguns acampamentos foram avançando em direção ao centro da cidade, como no caso da atual Rua Donato Bauti que era apenas uma trilha, conhecida por Rua do Fubá, uma cava de tráfego de carros de bois e tropeiros que vinham da direção do Rosário, Itumirim e Luminárias, passando ao lado do antigo campo de aviação e chegando ao túnel da RMV, no final da atual Rua Otacílio Negrão. Todas essas entradas foram ocupadas pelos negros e lá estavam, na década de 1950, quando este autor as percorria a cavalo, em direção às fazendas. Morava ali, numa dessas precárias casinhas, uma filha de escravos, nascida  ainda nos anos de escravidão. Sá Malvina, bastante idosa, era portadora de bócio endêmico, com protuberância na região do pescoço, formando enorme papo que chamava atenção das crianças, e era assistida por nossa família. O menino sempre ia levar cestas básicas com produtos vindos da fazenda. Pôde assim, conviver e testemunhar a precariedade dos casebres, a maioria de pau a pique, com paredes construídas com bambu trançado, amarrados com cipó e reboco de barro misturado com estrume de gado. A cobertura com telhas rústicas de barro, feitas pelos próprios negros nas olarias às margens dos córregos e modeladas nas coxas (essa é a verdadeira origem da expressão “feito nas coxas”). Aquele reboco primitivo apresentava-se com muitas rachaduras e ali se alojava o mosquito transmissor da doença de Chagas, conhecido por barbeiro. Assim nos ensinavam na escola e o menino ficava impressionado com aquele perigo das casas de pau a pique à beira da estrada, a poucos metros do túnel da estação Costa Pinto.

 

Ainda no campo dos estudos das ciências agrárias e convivência com os descendentes de escravos libertos, o autor participou, em 1967, juntamente com colegas do curso de agronomia, de uma pesquisa domiciliar nas ruas periféricas de Lavras. Como parte dos estudos da disciplina de Sociologia Rural, orientados pelo professor Guaracy Vieira, fizemos o levantamento sociológico de toda uma rua, à época conhecida por “saída para a Ponte do Funil”. Iniciamos as entrevistas domiciliares logo acima da Estação de Lavras da RMV até o final da rua, no alto do morro, onde hoje se situa o bairro COHAB. Situação mais que penosa dos moradores. A maioria  era de negros, sem instrução, família numerosa, sem empregos, sobrevivendo de “bicos” em trabalhos eventuais na cidade e nas fazendas , principalmente em época de colheita do café. Incrível que mesmo depois de oitenta anos da abolição, já na terceira geração, os descendentes negros,  ainda enfrentavam a mesma situação de antes, o abandono, a falta de empregos, o analfabetismo e a ausência do poder público. Oitenta anos depois..., sim oitenta anos e a situação pouco ou quase nada havia mudado. Ingrata escravidão que tolheu a liberdade e discriminou os negros, relegando-os a segundo plano na sociedade patriarcal brasileira do século XIX e quase todo o século XX, com profundos reflexos em nossas vidas e o saldo de uma enorme dívida social.

 

 

5-  A Educação e a ascensão social dos negros em Lavras

Mas, nem só de violência viveu a Vila das Lavras do Funil na época da escravidão, ou ainda no pós- escravidão. A abolição se deu em 13 de maio de 1888, porém, a notícia oficial somente chegou à cidade no dia 28 de maio, quinze dias depois, por meio de correspondência do Palácio da Presidência da Província de Minas Gerais, de Ouro Preto, datada de 16 de Maio de 1888, que manda publicar e fazer cumprir a Lei nº 3.353, de 13/05/1888, em virtude da qual foi abolida a escravidão do Império. Por outro lado, há que se lembrar de que mesmo durante a escravidão e mais frequentemente após a abolição, muitos negros se destacaram nas artes e ofícios na comunidade lavrense e gozavam de grande estima e consideração de todos.  Alguns passavam à condição de agregados da família, pois tinham elevado grau de dedicação e com mútuo respeito. Na família Salles foi assim com as amas de leite, auxiliares domésticas, artífices de carpintaria, marcenaria, trabalhos manuais em vime e bambu (confecção de cestos e balaios, esteiras para carros de boi) tão úteis nas fazendas.

 A influência da cultura negra nos costumes brasileiros tem sido objeto de inúmeros trabalhos de pesquisa e tem se mostrado muito importante em diversos setores, até mesmo na incorporação de palavras e forma de se falar. O mineiro, por exemplo, se expressa com formas diminutivas das palavras, o que segundo os filólogos tem origem nas amas negras, que cuidavam das crianças dando-lhe a “comidinha, o brinquedinho...”. Na cidade de Lavras, contam-nos os cronistas e jornalistas que muitos negros se destacaram como líderes, ente eles o professor e jornalista José Luiz de Mesquita que fundou jornais, criou a escola noturna e alfabetizou milhares de pessoas, além de criar entidades filantrópicas. Foi um verdadeiro líder comunitário, tendo, inclusive, iniciado no Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural- IPHAN, o processo para o tombamento da nossa quase tricentenária Igreja do Rosário. Havia também líderes negros que fundaram clubes de futebol, salões de dança e ainda verdadeiros artistas da música que fundaram a banda Euterpe Operária. José Luiz de Mesquita foi, segundo os historiadores Hugo de Oliveira e Bi-Moreira, a expressão máxima da raça negra em Lavras, morreu pobre em 16 de junho de 1967, deixando um legado de mais de cinco mil alfabetizados. Sua herma encontra-se ao lado da Igreja do Rosário, a qual foi tombada pelo IPHAN, em 1948, por sua iniciativa.

Lamentável foi, portanto, a proibição do acesso dos negros à educação desde o início do Império e que perdurou por mais de cem anos. Nos anos de 1950, havia razoável número de negros no curso fundamental, gratuito. Entretanto, à medida que as séries escolares avançavam, escasseavam-se os negros nos bancos escolares. No curso ginasial, a partir dos 12 anos, em colégio privado, portanto pago (não existiam colégios estaduais, gratuitos em Lavras), havia cinco turmas de 50 alunos. Apenas dez eram negros e desses, somente três conseguiram chegar ao final do curso de segundo grau. Ainda assim, dois deles tiveram que interromper os estudos por sete anos para trabalhar e ajudar os pais no sustento da família. Coincidentemente os dois jovens negros, ex-colegas de colégio, foram alunos deste autor, no quarto e último ano do curso de agronomia na UFLA em 1974.  



 

5.1- As cotas raciais nas universidades

 

Diante dos acontecimentos pós-abolição pode-se afirmar que se a Princesa Isabel tivesse logrado êxito em seu projeto de indenizar os escravos, teríamos na atualidade outra situação social para os negros. Muito melhor, com certeza, se tivesse havido a inserção de dois outros artigos na Lei Áurea, o primeiro doando um pequeno pedaço de terras e o segundo garantindo que a Educação seria para todos e obrigatória.

 

Foi cruel a discriminação dos meninos negros desde o nascimento. Permaneciam analfabetos nas fazendas e ainda que estivessem na cidade, eles eram apenas 4% (quatro por cento) das matrículas colegiais dos anos de 1950/60. Somente 1,2% (um vírgula dois por cento) conseguia concluir a universidade, ainda assim com anos de atraso em relação a seus colegas de mesma idade.  Isto, numa sociedade onde os negros represenatvam quase 60% da população. Eles tinham que optar entre trabalhar para comer ou estudar. Esta foi a lição mais clara sobre a desigualdade racial que o autor pôde presenciar em Lavras. Uma desigualdade que nos dividia, separava, apartava os amiguinhos, não só pela quantidade de dinheiro que permitia montar casa na cidade e estudar nos melhores colégios pagos, pois inexistiam colégios publicos, gratuítos, mas, também pelas oportunidades que nos eram oferecidas desde então e ao longo de todo o tempo. Mas, por outro lado, felizmente, ainda que muito mais tarde, 50 anos depois, entre 2003 e 2005, este autor teve a oportunidade de contribuir para minorar a terrível situação do difícil acesso dos negros à Educação. Integrou a comissão especial do Ministério da Educação, onde trabalhou por 35 anos na Educação Superior, a qual elaborou as bases para a Lei das Cotas Raciais nas Universidades (Lei 12.711/2012), reservando 50% das vagas universitárias para os negros, vez que, o censo revelou que em 1997 apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos, que se declararam negros, havia frequentado uma universidade. Índice baixíssimo para uma população majoritariamente negra em nosso país e sem chances de melhorias.

 

Em contrapartida a aquele baixíssimo índice de diplomas superiores, bastou a criação da lei das cotas raciais e já se verificou, em cerca de 20 anos de sua existência, um salto bastante elevado no que tange a presença de negros na universidade, representando quase 40% dos estudantes matriculados em 2020. Este percentual ainda precisa crescer mais, pois os negros representam 56% da população brasileira. Talvez nossos netos, daqui a cinco ou dez anos, encontrem e sejam atendidos por profissionais negros, médicos, advogados, padres, professores de faculdades, dentistas, juízes, engenheiros, empresários e tantas outras profissões liberais que lhe foram negadas antes.

 

As cotas nas universidades vieram em boa hora para o Brasil, embora tardia, buscam corrigir a antiga discriminação, sentida até mesmo em Lavras, a terra dos ipês e das escolas. Aliás, os efeitos da discriminação pode ser sentido e medido em qualquer lugar. Em Brasília, o autor trabalhou por quase quarenta anos em meio a mais de vinte mil cargos de assessoria e nunca teve ou viu um único chefe negro. As cotas raciais nas universidades permitirão um grande progresso na tão desejada ascensão social dos negros. É incompreensível por que muitos brasileiros ainda acham que a lei das cotas raciais é injusta. Não é! Basta conhecer a realidade e essa se torna bastante clara para quem vivenciou e observou a situação dos negros desde os tempos de criança, passando pelas escolas, faculdade, empresas e órgãos públicos e ainda assiste, nos dias de hoje, manifestações de negros no país e no exterior, clamando por seus direitos.

Neste prédio da cidade de Caienne, Guiana francesa, participamos de jantar de confraternização de um congresso internacional sobre floresta amazônica (março de 1990). Da sacada do salão de festas, no segundo andar, presenciamos uma manifestação de negros, chamados de “creoles”, reclamando “liberté, liberte´ ” para uma das últimas colônias das Américas. Cento e sessenta oito anos (168) se passaram desde a nossa proclamação da Independência e ali os negros ainda clamavam “Liberdade..., Liberdade” para os visitantes  de diversas nacionalidades, incluindo este autor, constrangido e triste por  e recordar o passado. 

A década de 1990 não foi das melhores nas minhas lembranças sobre escravidão. Foi iniciada com esse triste episódio de Caienne/Guiana e encerrada com o drama do menino angolano acolhido em minha casa. 

Foto: internet


6- Conclusão

 Não é fácil falar sobre escravidão em casa,  nosso país com 60% de pessoas com sangue negro, mestiços, pardos como os classificam o IBGE. Com essas palavras iniciamos o texto sobre a convivência da Família Salles com a escravidão em Lavras. Quando escreveu sobre o tema, Gilberto Freyre preferiu não adentrar com profundidade na questão e se limitou a explorar a aproximação dos negros com seus senhores e principalmente a miscigenação entre brancos e negros, formulando a tese da “democracia racial”. Nunca acreditei nessa tese, pois vivenciamos, ainda na década de 1950, a dura realidade da vida dos descendentes de escravos. O autor de Casa Grande e Senzala não estava totalmente errado em sua tese, mas valeu-se apenas da metade da verdade. Foi seguido por outros historiadores e contestado por muitos, pois a realidade da escravidão foi bastante dura, cruel mesmo, ainda que pesem a seu favor a boa convivência entre senhores e escravos na maioria das vezes.

   O patriarca da família Salles/Costa/Pádua, imigrante português Manoel da Costa Valle, chegou à Lavras em 1750 acompanhado de escravos negros para a exploração do ouro. Tendo escasseadas as jazidas, tratou de estabelecer-se no negócio da produção agrícola e pecuária para subsistência e venda de víveres aos viajantes que passavam por aquele importante entroncamento. Ocupou as margens do Rio Grande em enorme faixa de terras, logo abaixo da atual cidade de Ribeirão Vermelho, abrangendo ainda partes de Perdões e Nepomuceno. Evidente que para tocar a sua produção agrícola teve que contar com o braço escravo. Não foi possível ainda levantar o número exato de escravos das fazendas dos Salles. Entretanto, entrevistamos membros da família, nascidos entre 1895 e 1920 com relatos de suas convivências com descendentes de escravos que foram libertos pouco antes. A convivência com os descendentes de escravos nas escolas, no trabalho e principalmente na fazenda, onde também trabalhavam imigrantes italianos que vieram substituir os negros nas plantações de café do sul de Minas, proporcionou ao autor uma ampla e importante experiência, acompanhando seus trabalhos na dureza do eito e sobretudo ouvindo suas histórias do tempo da escravidão. No entanto, bagagem maior foi adquirida com o olhar perscrutador, investigativo na literatura e pesquisas acadêmicas, com livros, revistas técnicas e jornais nacionais e de outros países, muitos deles escritos e produzidos por intelectuais negros. Estes, os relatos dos descendentes de escravos, têm considerável valor, pois refletem a ótica dos vencidos, dos subjugados. Também muito contribuíram as reuniões da Comissão de Igualdade Racial, da qual participamos como representante do Ministério da Educação junto ao Palácio do Planalto. Ali, conhecemos relatos de protagonistas, os próprios descendentes de escravos negros, que embasaram as razões para a aprovação da lei das cotas raciais nas universidades.

 Conhecer a história apenas pelo lado do vencedor tem sido a praxe universal nas escolas e na literatura, Entretanto conhecer os fatos sob a ótica dos vencidos pode mudar a história. Nunca tivemos dúvida sobre a enorme dívida social que nosso país tem para com os negros e logo no início deste capítulo de livro foram formuladas algumas questões e dentre elas, se alguém já havia perguntado a opinião dos negros, as vítimas da escravidão. Não só as fizemos diretamente aos negros, como também conhecemos e estudamos várias publicações onde expressam suas opiniões, dores, frustrações e esperança de dias melhores no contexto social brasileiro, a sua pátria, vez que foram arrancados à força de suas nações africanas em distante passado.

 O advento da lei das cotas raciais foi mais um passo contra a antiga resistência e má vontade da aristocracia rural das fazendas de café e gado de leite em relação aos negros, a começar pelo baixíssimo número de escolas nas fazendas. As escolas eram malvistas por alguns fazendeiros que achavam que elas tomavam o tempo dos trabalhadores (crianças e adolescentes), principalmente durante a colheita do café. Serviam, as escolas, segundo a típica atitude do dominador escravocrata, para encher a cabeça do trabalhador com outras ideias, contrárias aos interesses dos fazendeiros. Mas, é importante lembrar que nas fazendas dos Salles, ao contrário dessas ideias e atos escravocratas, muitas contavam com escolas primárias, ainda que em condições precárias. Mas, isto, por si só, não redime o crime da escravidão.

  E como foi a escravidão em Lavras? Não foi diferente de outras partes do Brasil. No entanto, exceto as poucas exceções aqui descritas, a convivência com os escravos e depois com seus descendentes foi de certa forma tranquila, corroborando até mesmo a tese de Gilberto Freyre, aqui contestada, pois a boa convivência não apaga o crime da escravidão. Ao longo dos últimos setenta anos acompanhamos a lenta evolução social daqueles cujos pais trabalharam na escravidão e depois dela.  Foi uma convivência prazerosa entre crianças e jovens brancos e negros. Não havia discriminação entre eles. Gostavam da natureza e brincavam como iguais, companheiros de verdade na tranquila e pacata vida no campo, de onde trouxemos doces recordações. Porém, mais tarde, ao chegar à cidade, sentimos a ausência dos meninos negros. Os pouquíssimos colegas de colégio e faculdade tiveram que sacrificar anos e anos de sua vida com o doloroso dilema de escolha entre trabalhar para comer ou estudar. Aquele reencontro na universidade, do professor com seus únicos ex-colegas negros que foram obrigados a abandonar por uns tempos a escola secundária, e então, quinze anos depois reaparecem como seus alunos no último ano da faculdade, foi um choque de consciência, um soco na alma. Despertou no autor a questão da enorme dívida social que a sociedade brasileira tem para com os negros. Tanta injustiça, as proibições de frequência dos negros à escola desde os tempos do Império, com leis expressas já em 1824, seguindo-se vários outros decretos cerceando-lhes o direito aos estudos e privilegiando a elite rural, em 1968 com a lei do boi que garantia 50% das vagas em cursos de agronomia, veterinária e técnicos agrícolas, exclusivamente para filhos de fazendeiros, muito antes do surgimento das cotas raciais em universidades.  Porém, ainda que tardiamente, surgiu a lei das cotas raciais nas universidades. Um grande progresso, louvável ascensão social dos negros, tal qual intitulamos este capítulo, valendo encerrá-lo com a bela ilustração abaixo, mostrando os formandos da Universidade Afro-Brasileira, que desde 2010 trabalha na reparação histórica de séculos de segregação e injustiça social.

Não é fácil falar sobre a escravidão em casa. Não era! Agora tornou-se mais fácil quando se olha com amor aqueles que ajudaram o Brasil a crescer e hoje conquistam a sua completa cidadania, com os mesmos instrumentos que o eminente lavrense, negro, José Luiz de Mesquita fez desde o início do século XX: com a Educação!

 Tomando emprestadas as palavras da ex-chanceler alemã, Angela Merkel, digo: Os crimes cometidos contra os negros e seus descendentes são e permanecerão parte da história do Brasil, e essa história deve ser contada repetidamente.



 

Finalmente, cabe registrar: O símbolo da ascensão social dos negros em Lavras pode, com justiça, ser atribuído a uma figura marcante, digna de homenagens, o educador, Professor José Luiz de Mesquita. A comunidade reconheceu e concedeu-lhe grande honra, ao colocar seu busto na praça central da cidade, bem em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, para a qual ele batalhou e conseguiu, junto ao IPHAN, o tombamento daquele patrimônio cultural da cidade. Ali, naquela igreja funcionou desde o ano de 1783 a primeira escola do Arraial de Sant´Anna das Lavras do Funil e finalmente autorizada em 1792 pela rainha D, Maria, de Portugal. E hoje passados quase 240 anos da fundação da primeira escola de instrução em Lavras e cem da atuação daquele professor negro, ainda


 é necessário reconhecer que será pela Educação que conseguiremos reduzir a distância do bem-estar social previsto na Constituição para todos os brasileiros e em especial para os negros. Para eles, o racismo e a intolerância continuam prevalecendo em nosso país, aumentando-se a cada dia as desigualdades sociais com a miséria destruindo vidas. O professor José Luiz de Mesquita tinha razão, pois é no banco das escolas que os negros e pobres vão mudar seus destinos. Este é o caminho, único, para mudar essa assustadora situação: a Educação! Devemos acreditar nisso e somente assim poderemos acabar com aquelas tristes frases, ditas algumas vezes pelos próprios negros:
“Isso não é para gente como nós. Nosso lugar é no eito e na cozinha”. Triste, saber que os negros sentem diariamente a discriminação, deixando-os inibidos para a busca da melhoria de suas vidas, tolhendo-lhes iniciativas de progresso. Felizmente, outra educadora, também negra como o professor José Luiz de Mesquita, acreditou na Educação e venceu essa barreira psicológica, discriminatória. Joana Angélica Guimarães, reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia. Venceu e tem consciência de que é acolhida em seu meio e enfatiza a falta que faz a Educação para os negros nesse contexto e assim vencer a discriminação.

Façamos a nossa parte, sociedade e governo, criando e executando políticas publicas consistentes que contribuam para a ascensão social dos negros. E sabemos qual é o caminho, a Educação! 


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(29) - Autor:Domingo Martínez Castilla/Universidade do Missouri - Ao germe o que é do germe: doenças europeias e destruição da civilização andina. Tradução: Jaime de Almeida, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de Paris I. E-mail: jaimeida@terra.com.br . In: https://www.academia.edu/52562424/Ao_germe_o_que_%C3%A9_do_germe_doen%C3%A7as_europeias_e_destrui%C3%A7%C3%A3o_da_civiliza%C3%A7%C3%A3o_andina