terça-feira, 31 de janeiro de 2023

A infância mais livre do mundo e o Café de Flore em Paris

 

 Menino das Lavras no badalado Café de Flore, em Paris, degustando o melhor café du Brésil 
com biscoitos croissant et Madeline


Minha infância foi vivida com a maior liberdade possível, de todo o mundo. Por isso sempre fui grato a meus pais pela infância que me proporcionaram. Uma infância sem medo, sem portas trancadas, sem grades e até mesmo sem muros. Infância de quem cresceu diante da imensidão de espaços vazios, verdes pastagens e coloridas do outono ao verão, matas córregos, lagoas e até um grande rio, o Rio Grande na segunda fazenda de invernada das vacas prenhes e bezerrada desmamada em regime de engorda para o abate. Espaços capazes de acolher o vazio da natureza com suas variadas fauna e flora. Lugares onde a vista se perde até encontrar o horizonte das montanhas. E que montanhas... , do Queixada, da Jacuba, do Grotão, da Fábrica Velha, das Três Barras, Jacuba à beira rio e mais..., principalmente, a mais majestosa de todas, a Serra da Bocaina, que emoldura a cidade natal, Lavras. Ah..., a belíssima Bocaina, cantada em versos pelo saudoso jornalista e poeta Hugo de Oliveira, o sonho de todo exilado, ainda mais quando o exílio dourado já dura quase meio século:

Há muito tempo afago esta esperança:

dar vida aos sonhos de voltar à terra,

de me perder nos alcantis da serra

e reviver meus tempos de criança;

voltar onde se exala um ar que amaina

a flama de tristeza do exilado...

 

Sim, ali, do azul das serras e dos verdes campos de minha terra, de onde lançava olhares desimpedidos, livres do concreto e da poluição, o menino sonhava voar, voar como os pássaros, principalmente como aquelas aves de rapina com seus velozes e certeiros voos de caça, ou simplesmente flanando ao sabor das correntes de ventos ascendentes. Até pareciam pairar no ar de tão suave e leve aqueles voos com asas de grande envergadura e pontas arrebitadas para cima, tal qual o winglet nas pontas das asas dos grandes aviões de hoje. Aliás, os engenheiros aeronáuticos só descobriram o valor das pontas das asas arrebitadas quase cem anos depois que Santos Dumont inventou o avião.

Mas, ainda assim, admirando aqueles lindos voos planados o  menino não se contentava apenas com os sonhos aeronautas. Caçar, nadar, pescar e cavalgar pelas seis fazendas de seu pai, Retiro dos Ipês (sede), Três Barras/Barro Preto, Cachoeira (próxima à Bebela), Jacuba/Rio Grande, Faria e Corguinho também nas Três Barras e a mais próxima, a apenas dois quilômetros. A mais distante, a invernada do Faria, ao lado da Estação de mesmo nome, se estendia ao longo da via férrea, que ainda hoje interliga Lavras à Três Corações, distava  umas três léguas, quase em linha reta, passando pela Fazenda Ribeirãozinho, do Sr. Quincas Guimarães. Em todas elas, onde meu pai tinha gado solteiro e plantações de café, milho e feijão, fazíamos visitas quinzenais ou mensais, geralmente nos finais de semana ou nas férias escolares, sempre a cavalo, em marchas que duravam até três horas para vencer a maior distância, na Estação do Faria. Essa distância era um pouco maior que a sempre preferida, entre a fazenda sede e a casa da cidade, uma grande chácara de 20 hectares situada no final rua Progresso (hoje Vila Cruzeiro do Sul), cujo traçado avançava somente até a esquina da rua Sabino Lustosa, antiga 15 de Novembro. Essa cavalgada era a melhor de todas, passava pelo espigão do Passa Vinte, onde hoje se situa o Bairro Serra Azul, em direção ao Queixada, cuja estrada de boiadeiro passava exatamente por sobre o atual trevo de Ribeirão Vermelho na BR 265. Dali descia-se à esquerda do espigão do Queixada até a Fazenda Dessimoni, atravessando o ribeirão Água Limpa, já na divisa da fazenda Retiro dos Ipês, nossa propriedade, sonhado e desejado paraíso. Eram 16 km, vencidos em exatas duas horas de cavalgada, com direito a guaraná gelado em geladeira movida à querosene, na venda (armazém) do Vico do Cristóvão, na região da serra do Queixada. Ah..., que aventura, prazer de criança, um simples guaraná gelado com biscoitos da marca Confiança, que soavam como um crepe royalle do Café de Flore em Paris, onde a nata da sociedade parisiense se reunia e escritores como Gustave Flaubert escrevia seus contos e romances.  

 
 Café de Flore/Paris – foto 1de Ygor Coelho. Na foto 2, do autor, o Menino das Lavras no badalado Café de Flore, degustando o melhor café du Brésil com biscoitos croissant et Madeline, posando com o charme do cachimbo a imitar os famosos escritores. . Assim, com um laptop à mão, o menino pôde, em doce reminiscência relembrar a simplicidade de sua infância no Armazém do “Cristóvo”, na serra do Queixada, com o guaranazinho e o biscoito Confiança.... Infância feliz! 






Quem não se lembra dos Biscoitos Confiança, vendidos na cidade nos anos de 1950 e 60? Havia um fornecedor em Lavras, Sr. Arnaldo Corradini, que, com seu furgão Chevrolet ano 51, abastecia  os comerciantes da cidade e região. Residia na Rua Umbela, hoje Azarias Ribeiro. Para abastecer os bares da situados na Praça do Trabalhadores e o tradicional Armazém do Julinho, estacionava seu furgão em frente à casa de meu avô, Anízio Abreu (Rua Francisco Sales - 794/812), também conhecido por Anízio  Gaspar. Ali, a meninada ficava a espiar a abertura da porta do furgão lotado de doces, balas, biscoitos, chocolate Falchi, jujubas e todo tipo de guloseima.... Vontade louca de se esconder ali dentro do veículo e se fartar.... Desafios aos coleguinhas não faltavam, mas sequer se atreviam a chegar perto do Sr. Arnaldo Corradini, amigo de nosso avô e que parecia adivinhar as traquinagens dos meninos de olhos arregalados. 

 Esse era o furgão de entrega aos comerciantes. Meninada de olho grande e pensando
 em se esconder no seu interior e fartarem-se com as guloseimas. 
Foto: internet


Tempos bons, de meninos livres, que podiam brincar na rua e nas chácaras. Aprendi, assim, que a liberdade na infância é fundamental para a formação com visão de largos horizontes, quer na planura dos campos das fazendas ou do alto das montanhas alvenses.  Deve ser por isso que me encantei, algum tempo depois com os espaços abertos de Brasília e aqui me instalei, onde os horizontes também se perdem de vista, dando-nos aquela sensação de liberdade, tal qual desfrutada na infância. E já se vão 48 anos longe daqueles lugares sagrados da infância e a todo momento vêm à lembrança os sonetos de outro poeta, Casimiro de Abreu, em seu poema Meus Oito Anos:

Oh! que saudades que tenho, da aurora da minha vida,

 da  minha infância querida que os anos não trazem mais!

 Como são belos os dias de despontar da existência!

 Respira a alma inocência. Livre filho das montanhas,

 eu ia bem satisfeito, da camisa aberto o peito,

 pés descalços, braços nus...”.


 
 Serra da Bocaina em Lavras (foto 1). O menino sobrevoando-a em um AeroBoero, como a matar as saudades da infância, quando invejava as aves de rapina que dela vinham em voos planados até  sua casa na cidade. Planar sobre ela e depois vetorando a proa rumo norte, em direção à cidade, foi por demais emocionante, como se o menino tivesse transformado seu sonho pueril em realidade.     Foto 2- vetorando cabeceira 023. Serra da Bocaina ao fundo. 
Fotos do autor  


O menino das Lavras não se cansava de cavalgar por entre rios e montanhas. Doce infância, doce juventude, vividas na Terra dos Ipês e das Escolas e o belo jardim para o footing dos fins de semana, onde desfilavam lindas meninas. Ah..., mas como pôde o poeta Hugo de Oliveira, tirar as minhas palavras que fazem doer a alma? Não, não é bem assim, poetas são românticos sabem trabalhar as palavras para, mais que ninguém, expressar com mestria a alegria da alma:

“Àquela terra se eu voltar um dia,

Mais velho, embora, assim, menos rapaz,

Terei corpóreo o sonho que queria:

De Lavras ter o amor de suas manhãs,

Viver seus dias e morrer em paz,

Sob canções de ipês e flamboyantes”.

                                                                                                     (Hugo de Oliveira)

 

            E se assim não for, que as cinzas do menino repousem sob os ipês amarelos da janela onde nasceu, na Fazenda Retiro dos Ipês. Lindo pedaço de terra, cercado pelos ribeirões Água Limpa e Maranhão e toda enfeitado de ipês, berço santo da infância e da juventude, que lhe proporcionou serenidade e toda a alegria da vida de quem, literalmente, percorreu meio mundo, conheceu gente e trabalhou no melhores centros mundiais de tecnologia educacional e pesquisas. Mas, sempre grato à terra que lhe deu tudo, da vida à formação profissional, alargando seus horizontes. Doce infância, doce juventude na terra onde nasci.

 

 Brasília, 31 de janeiro de 2023

 Paulo das Lavras


 ... e se não puder voltar à terra natal, que as cinzas, então, um dia, repousem à sombra 
do ipê amarelo, à janela deste quarto onde nasci. 
Foto do autor—Fazenda Sítio Retiro dos Ipês- Lavras


 
Estação do Faria, inaugurada em 1928, distando 25km de Lavras na rota para Três Corações. 
 A seu lado havia igreja, escola, venda e casas de família. A fazenda alugada por meu pai ficava a poucos 
metros à direita, com pastagens de invernada para gado solteiro (vacas prenhes e garrotes)

Foto: internet