sábado, 28 de abril de 2018

Os ipês amarelos de minha terra



Desembarquei do trem maria-fumaça na estação Costa Pinto na velha cidade natal, Lavras. Lá estavam, a me esperar, minha mãe, meu pai e todos os seis irmãos. Abraçaram-me, choraram de alegria depois de tanto tempo fora de casa, num distante internato a dezesseis horas de trem. Caminhamos a pé, carregando a mala de viagem, até a nossa casa, a casa de nossa infância a apenas 300 metros da estação. Como foi boa e gratificante aquela pequena caminhada, com os vizinhos a acenar e cumprimentar o menino que chegava. Como é bom voltar à terra querida, caminhar pela rua de terra, na verdade a velha estrada de rodagem que se iniciava na estação e ligava a zona rural da Serrinha, prosseguindo até o Farias e dali para Três Corações, à esquerda ou a Carmo da Cachoeira à direita. E o menino já a  conhecia, inteirinha, pois aos cinco anos de idade foi levado à cidade de Varginha, no consultório do Dr Valladão, para tratamento de um grave acidente ocular que o fez perder totalmente a visão do olho direito. Aquela rua, melhor a estrada, tinha apenas três casas em seus primeiros cem metros. A casa do Alfredão, cujo pai, Sr. Antônio Scheid Lopes, era o chefe da estação, seguindo-se o portão da Cerâmica N.S. Aparecida, do Sr Custódio Alvarenga e por último a chácara do Sr Nhonhô Gouveia, que chegava até o segundo pontilhão, chamado de mata-burro. Este fazia divisa com nossa chácara, a Fazendinha, de 20 ha, hoje Vila Cruzeiro do Sul. Passado o mata-burro, caminhava-se por uns duzentos metros sob a sombra de mangueiras enfileiradas e lá estava a doce casa de minha infância. Como é bom chegar, rever a família e vizinhos, quase todos à porta de suas casas no horário da chegada do trem.  Receber o afeto de todos era como sentir-se “protegido”, seguro em meio a todas as pessoas queridas.

Como é bom ser bem recebido assim, caminhar abraçado aos pais e irmãos que se revezavam no toque, nas mãos dadas e sentir o cheiro das mangueiras da terra natal e se extasiar com a belíssima e inteira visão da imponente serra da Bocaina um pouco distante e que emoldurava aquele cenário tão familiar. A velha e grande casa estava lá, do mesmo jeito, pintada de branco com as cimalhas na cor azul bem forte, destacando as caprichadas molduras por sobre portas e as numerosas janelas, tudo em belo estilo português, tal qual tinha visto na zona rural de Lisboa no caminho de Sintra. Como é bom rever e retornar ao doce lar.

Foi então que acordei, sobressaltado, confuso. Parecia que meu espirito saía de meu corpo e naquele estado de sono hipnagógico, quando a mente está destravada e as imagens do subconsciente são tão nítidas e vivas a ponto de sugerir a realidade. Como poderiam estar juntas no mesmo instante as imagens da infância, a dos pais já falecidos e ainda as do longínquo Portugal que só conheci depois de adulto? Percebi que estava apenas sonhando, sufocado e com uma dor danada no peito, a dor física da apneia, agravada pela sequela cirúrgica de uma renitente pleurite aos dois anos de idade e que ainda hoje, depois de setenta anos, ataca nas noites frias de inverno. Mas, pior que a dor física naquele momento hipnagógico foi a da saudade, pois comecei a “ver” a casa mais antiga ainda, da fazenda com o belo ipê amarelo reluzindo à janela do quarto onde nasci. Dor no peito, saudade matadeira, pois como disse o poeta Caio Abreu: “Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de giz”. Tinha jeito de arco-íris a minha”.

Compreendi a mensagem do subconsciente que grava as coisas doces da vida e os desejos ocultos da mente. As sequelas cirúrgicas ainda terão alguns invernos a mais pela frente e nada de pessimismos. Mas, mesmo estando, há tanto tempo, a 1.000 km de distancia quero, quando chegar o dia, repousar para sempre debaixo daquela janela, à sombra dos ipês amarelos que a emolduram. E que as pessoas queridas daquela família de então e que ainda hoje lá residem, possam me receber com o mesmo afeto, carinho e amor mostrados em sonho. E desta vez, ainda que eu não sinta mais o abraço e seja apenas cinza cremada, deitem-me para sempre à sombra daquele belo ipê amarelo ao lado da janela do quarto onde nasci. Doces reminiscências da infância. Doce repouso à sombra dos ipês amarelos de minha terra natal.



Brasília, 28 de abril de 2018

Paulo das Lavras

A janela do quarto onde nasci. Fazenda Retiro dos Ipês - Lavras
Foto: Dilma de Abreu



Estação Costa Pinto, em Lavras. Ali desembarcou o menino 
de 13 anos, ao reencontro da família
Foto: acervo de Renato Libeck


A família de sete irmãos, o menino com 11 anos.
 Dois anos depois foram reencontra-lo na estação Costa Pinto

O menino aos 11 anos, pouco antes de ir para o internato no distante Seminário.
 Ali permaneceu apenas um ano. A saudade apertou. Sonhava todos os dias com a casa
onde vivia com a família. Voltou para casa sob grande emoção e tão grande que, 60 anos depois, sim sessenta anos, teve uma sonho maravilhoso retratando a alegria da volta.




Cidade de Lavras, década de 1950. Trezentos metros adiante da estação estava a  casa do menino.
 Percurso assinalado em azul, pela estrada que ligava Lavras, à Serrinha e Três Corações,
 passando em frente à casa grande da fazendinha.
Incrível realidade do sonho, mostrando aquele antigo caminho que contornava
a matinha da fazendinha, local de aventuras dos meninos e amiguinhos da região.
Foto: acervo de Renato Libeck.


O segundo portão do caminho, ao lado da casa do chefe da estação era a Cerâmica.
 Sr Custódio e seu filho, Tiãozinho Alvarenga (cunhado de minha mãe) também
 eram comerciantes de fumo de rolo. No meio do ano era época de colheita e
havia mutirões para “destalar” as folhas verdes recém-secadas á sombra.
Tarefa para todos, inclusive para os meninos com direito a receber pagamento.
Foto: acervo de Renato Libeck


Logo, logo a casa grande da fazendinha era avistada, tendo ao fundo
a imponente serra da Bocaina. O ipê amarelo à esquerda e casa anexa,
 deram lugar à rua Progresso, justamente na esquina com
 a rua Lazaro de Azevedo Melo. A casa ainda hoje se encontra preservada



Fazenda Retiro dos Ipês em foto de agosto de 2014. Casa de um século de existência
 Sob a sombra de seus ipês, ao lado da janela do quarto onde nasci,
a família me receberá novamente e ali as cinzas repousarão
para sempre, junto ao cordão umbilical que ali também adormece.
O pó retornará ao pó, diz a Bíblia.
Foto: Dilma de Abreu