segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

O som do Silêncio na alma, Haendel e Garfunkel

 

 Pianista Brigitte Bouthinon – Concerto Embaixada da França- Teatro Nacional- Brasília 2019 
Foto do autor


Não, o título da crônica não está errado! Todos sabemos que a linda música “O som do Silêncio” é de Simon e Garfunkel. Nada a ver com o grande compositor Georg Friedrich Händel ou Haendel (1685-1759). Mas, recentemente fui despertado por um amigo que publicou nas redes sociais uma belíssima história de como teria sido criada a composição musical de “The Sound of Silence”.  Fez grande sucesso nos Estados Unidos, principalmente porque foi usada como trilha sonora do não menos famoso filme de Hollywood, The Graduate (1967), que aqui no Brasil ficou conhecido por “A Primeira Noite de Homem”, com Dustin Hoffman, Anne Bancroft e Katharine Ross. Naquela década de 1970, dez anos depois de seu lançamento, trabalhei em temporadas naquele país e convivi com o sucesso da música tocada diariamente nas rádios. A música aborda temas sensíveis como a melancolia, a insensatez das pessoas que não ouvem nem enxergam o óbvio, o cego que não vê, mas convive com a escuridão no silêncio da alma. A lembrança dessa música fez-me despertar, tocando no fundo da minha mente e mais que depressa, após acordar daquele choque nostálgico, me flagrei buscando-a no aplicativo de streaming, na internet. Uma, duas, três vezes repetidas e a letra foi totalmente reassimilada, recuperada inteiramente de cor e salteada após aquele destravamento e liberação do subconsciente da alma. Viajei longe, distante, muito distante e em lugares muito diferentes tanto no espaço geográfico quanto no tempo. Primeiramente em Berkeley, naquele lindo campus da Universidade da Califórnia, onde estive e fiz questão de visitar o prédio principal que aparece nas cenas do filme A Primeira Noite de um Homem.

Pura reflexão, pura emoção, ao revirar os escaninhos escondidos no porão da alma e se deleitar, pois a música causa-nos prazer, alegrando-nos e promovendo felicidade e saúde. Ali, naquele distante país, em longas temporadas, sozinho, longe de casa e de todos, por vezes as garras e unhas do subconsciente, ocultas como as dos felinos, afloravam repentinamente, levando-nos a um quase colapso psicológico, parecendo até mesmo que a loucura estaria passando bem perto de nós. Em outras palavras, no jargão médico, um ataque de ansiedade ou de pânico, que é mais comum do que se imagina, pois quase sempre nos dedicamos somente ao trabalho e descuidamos do lazer que ameniza as durezas da vida. Foi naquela bela canção de Simon e Garfunkel que encontrei certo alívio na alma ao imaginar o drama nela contido, em sua belíssima letra. E como não poderia deixar de ser, o figurino técnico científico da psicologia funcionou direitinho: “quando estamos tristes, ou alegres...”.. 

A letra fala da velha amiga, a escuridão! Talvez a escuridão do apagão da mente, da dor da saudade, da perda de alguém, da angústia cortante que embota o pensamento e nos deixa deprimidos, à beira de um colapso. Mas, ao mesmo tempo houve um “clarão”, uma visão que surgiu mansamente e que havia deixado sementes do bem enquanto eu dormia bem plantadas ali no meu cérebro..., no Som do Silêncio, ainda que eu caminhasse, só, pelo vale da sombra da morte como diz a Bíblia. Um sonho bem atormentado, quando ali estive por alguns dias, naquele luxuoso hotel na Dupont Circle, coração da capital americana, Washington-DC, no distante ano de 1978. O mesmo silêncio, a mesma angústia e a semente plantada no coração vinte anos antes, no internato do Seminário na distante Itaúna, quando da morte do coleguinha na piscina. Verdadeira perturbação que, afinal, cedeu lugar à música sacra. A letra de The Sound of Silence parecia que foi escrita de encomenda para aquela solidão, no silêncio da noite ali naquele hotel estrangeiro. E assim aquela linda e suave composição dos cantores americanos, verdadeiro hit, ali e no mundo inteiro, passou a fazer parte de minha memória cintilante, gravada para sempre no subconsciente. Assim, e por isso, fui despertado pelo colega, para o valor que a música representa para a alma. 

“Hello darkness, my old friend

I’ve come to talk with you again

Because a vision softly creeping

Left its seeds while I was sleeping

And the vision that was planted in my brain

Still remains

Within the Sound of Silence”

A segunda “viagem distante” que veio-me à mente, sobre os efeitos da música na alma, foi a experiência do menino no internato do Seminário, no ano de 1958, quando com apenas 12 anos de idade presenciou a morte de um coleguinha, por afogamento na piscina. Por algum tempo ficou em profunda depressão, sozinho, longe de casa e com as “imagens” da morte de seu coleguinha que só foi descoberta já na hora de se ir embora. O menino tinha sido o último a sair do vestiário e ali restavam as roupas do coleguinha. Dois padres e mais dois adultos se trocaram rapidamente e se atiraram na profunda piscina, de água um pouco escura que não permitia visualizar o fundo. Fizeram uma corrente de mãos dadas e passaram a mergulhar a partir da local mais fundo. No terceiro ou quarto arrastão a partir da borda mais funda encontraram o corpo inerte do Baianinho, esses era seu apelido. Queria que aquilo não fosse verdade, que talvez fosse apenas um pesadelo daquele seu próprio afogamento, aos três anos de idade, em um grande reservatório de água, mas salvo pela mãe que mergulhou e me resgatou. Mas não era um pesadelo, era real. Retirado do fundo da piscina, o coleguinha, inerte, foi submetido às técnicas de ressuscitação, mas de nada adiantaram. Desespero total, sem chances de ressuscitação.  Um trauma para o menino, criança ainda e que a tudo presenciou, do resgate do corpo inerte à dor do velório por toda a madrugada até que na manhã seguinte chegassem os parentes para o traslado do corpo para a Bahia. Longe dos pais e sem nenhuma orientação psicológica, foi um tempo difícil para o menino seminarista. Recordo-me apenas que estava sozinho, deprimido, silencioso e cabisbaixo em ambiente estranho com mais de 70 meninos e com imensa saudade de casa e chorava todas as noites, no escuro e ainda assim com a cabeça encoberta para ninguém perceber, naquele imenso dormitório coletivo. Dor em dobro, pois a imagem de seu próprio afogamento, com a figura da mãe, desesperada a massageá-lo e respiração boca a boca salvando  sua vida, essas técnicas de salvamento não surtiram efeito ali com o coleguinha. Resultou em profunda mudança de comportamento, permanecendo quieto, calado até mesmo na sala de recreio, à exceção quando me aproximava do pianista para ouvir os clássicos e musicas sacras, ainda que fossem repetidos ensaios de aprendizes. Não sei quanto tempo durou esse profundo estado de choque, só me lembro que um dia, na sala de estudos, num domingo, no horário dos chamados “estudos livres”, quando organizávamos coleção de selos ou leitura de livros de literatura, ouvia atentamente “O Largo” de Haendel, executado por imponente orquestra sinfônica e de olhos fechados, mergulhado na minha dor da alma, aconteceu algo extraordinário que hoje chamo de meu turn point.  Foi naquele momento, ouvindo o Largo de Haendel, que o meu estado letárgico foi atingido com intenso tremor, sentindo-me melhor, muito melhor, aliviado de um peso que carregava. O menino chorou por longos minutos, copiosa e silenciosamente, ali mesmo na sala de estudos, em meio aos colegas, porém de olhos fechados e em verdadeiro transe da alma. Flutuei no espaço com a alma enlevada e na plateia imaginária daquele lindo concerto com a orquestra executando a belíssima composição de Haendel, que arrebatou minha alma, compreendi que havia algo mais além daquele estado traumático, de profunda angústia,  causado pela perda do amiguinho que morreu afogado e a ausência, a dor, também cortante, da falta dos familiares, pais, irmãs e em especial do irmão mais novo companheiro de escola, cavalgadas e futebol no campinho da Estação Costa Pinto. 


Nunca me esqueci daquele momento mágico, de silêncio interior quebrado por essa magistral composição clássica de Haendel. Interessante que naquele tempo nem havia ainda os John Williams de hoje, com suas maravilhosas trilhas sonoras pra o cinema, mas havia Bach, Beethoven, Wagner, Tchaikovsky e outros clássicos que enchiam o salão de estudos do seminário com a sonoridade de suas belíssimas composições e até mesmo nos salões de recreio. Mais que tudo, aquele som de musica enchia a nossa alma. Incrível o poder, a magia da música. Num dos salões havia um piano francês Pleyel e os colegas seminaristas que nele praticavam já sabiam... “lá vem o Paulo Roberto... deixe-me tocar logo aquela do Haendel, o Largo, senão ele não me larga...”.  Ainda hoje, paro tudo que estiver fazendo e ouço com atenção e emoção essa belíssima composição que preenchia o silêncio da minha alma, alma triste do menino que havia perdido um coleguinha e estava longe de casa. Ouvir Haendel era como um bálsamo para a alma. Ficava estatelado ali, ao lado do piano, às vezes olhos fechados, com os acordes me entorpecendo, devagarinho, fazendo-me flutuar e sentir um gaudio indescritível, com lágrimas correndo pelo rosto. De tanto ouvir quase todos os dias aqueles acordes eles ficaram gravados na minha memória cintilante e o simples fato de se lembrar de seu nome, como aqui, agora, nesses escritos, o corpo vibra, arrepio e sinto-me como se lá estivesse ao lado do pianista, meu tutor, Clóvis Augusto Ribeiro, o CAR, como o chamava, pelas iniciais de seu nome, bordadas nas peças de roupa e a quem fui grato por todo o tempo que estive ali no Seminário de Itaúna. Não se espante se por acaso me encontrar de olhos fechados, balançando a cabeça em ritmo pausado e solfejando as notas musicais de O Largo, como executado no link indicado ao final.

Santa música, elixir da alma, todos os dias executada na sala de estudos ou de recreio e hoje, já passado muito tempo e sentindo a enorme paixão que tenho por algumas composições clássicas, posso entender que, naquele dia, ali na solidão do internato do menino seminarista, aquela música de fato penetrou no meu subconsciente e atravessou a minha alma, revigorando-a de tal forma, envolvente e reconfortante, que nenhuma conversa, toque, abraço ou afago anterior tinha produzido. Foi um momento revelador e inesquecível. A música marcou-me para sempre, pois voltei a sentir e acordei novamente para a vida naquele instante de seu “toque” na alma, banindo a tristeza a angústia persistente. Foi como destravar o sentimento. A Música devolveu-me a Vida, de repente e sem saber do que estava se passando. Só me lembro de que a partir de então, ali na solidão do internato passei a me interessar pela música clássica e sacra, os cânticos gregorianos que ainda hoje sei cantar. Nunca me esqueci daqueles longos momentos de silêncio interior, quebrados por uma canção que acabei ouvindo-a todos os dias. Eu não tinha, ainda, consciência do efeito terapêutico da música. Mas era exatamente isso que ela passou a exercer sobre minha alma. Eu não sabia, mas sentia seus efeitos que ajudavam a curar a minha dor, a tristeza, a melancolia da alma abalada por dois eventos traumáticos, primeiro a separação brusca da família, sem nunca ter imaginado antes que poderia ser dolorida e depois a morte do coleguinha com todo o ritual do frustrado salvamento.

Aprendi também que nas cerimônias de luto os cânticos, as músicas sacras, também confortavam a alma e nos ensinavam a lidar com a Morte, uma das questões mais perturbadoras de nossa vida. Agora, decorrido tanto tempo, posso afirmar com absoluta certeza que aquelas experiências traumáticas do menino, com a morte do coleguinha à sua frente e poucos dias antes, o brusco rompimento da convivência familiar, foram superadas pela música com plena sublimação na alma. Assim, a música transformou a dor inconsciente em algo positivo que, aos poucos, foi ocupando o vazio da alma diante do prazer da harmonia dos sons. A Música cura e em tudo ela estava presente. Tanto assim que passei a me interessar mais pela musica sacra e me esforçava muito mais no coral dos meninos seminaristas. O coral cantava nas missas solenes de domingo, na igreja matriz da cidade. Aliás, a música influenciava a todos, pois, logo após as missas, mães caridosas corriam a nos abraçar e incentivar-nos carinhosamente como se nossas mães fossem. Era sem dúvida um conforto carinhoso e de inestimável valor para os meninos carentes do afeto familiar.

A música, confirmam os especialistas em terapia, é capaz de produzir efeitos extraordinários e não somente nos seres humanos, mas também em animais. Já vi reportagens sérias, na TV, dando conta de que a instalação de sistema de som nas salas de ordenha de vacas leiteiras, reproduzindo músicas clássicas suaves, faz aumentar a produção de leite. Parece surreal, mas não é, só não disseram se houve experiências com rock, samba de breque ou funk... rsrs. Certamente, com o requebrar das vacas em ritmo mais hot e acelerado, a produção leiteira diminuiria, imagino eu... No campo da psicologia é certo que a Música tem a rara capacidade de penetrar no ser humano, por mais atordoado que estiver pela dor, tristeza, desilusão ou desespero e nele romper as barreiras emocionais e produzir instantes de calmaria e paz na alma. Agora pense num filme. Imagine-o sem trilha sonora... Sem graça, sem emoção! A trilha sonora dá vida ao filme impõe o ritmo da ação, seja aventura ou cenas de amor. As trilhas sonoras de Indiana Jones e Jornada nas Estrelas nos impulsionam para a aventura, enquanto as de Romeu e Julieta e Summer Place nos convidam a amolecer o coração e enchê-lo de amor e ternura. A Música penetra na alma, sem pedir licença.

Feliz daquele que pode alcançar a velhice… e reviver seus dias de glória e contar aos netos suas experiências recheadas de muito amor e com as falhas devidamente perdoadas e corrigidas. Não há prazer maior e, no campo da música, ao longo de toda a minha vida, sempre renovei energias, forças e motivações em determinados momentos com o auxílio da Música. Ao dormir, aciono determinada seleção de musicas com temporizador e a audição leva-nos ao completo relaxamento da alma. Há músicas clássicas e eruditas que parecem que foram criadas para o relaxamento da alma. Viajante contumaz como fui na vida profissional, com mais de 3.000 viagens e duzentos dias/ano fora de casa, em aeroportos, hotéis e aviões, não é de se espantar que a música tenha ocupado espaço especial na minha vida. Hoje compreendo por que ao voltar de longas temporadas de serviço nos EUA e França, trazia para casa pilhas de discos (LP... ou Album com dizem os americanos), fitas K-7 e por ultimo CDs. Era e ainda sou obcecado por essa maravilhosa arte dos sons melodiosos. Sempre me ajudou, acariciou minha alma nos momentos de alegria e de tristeza, sobretudo na solidão de longos voos intercontinentais e mais frequentemente nos fins de semana em hotéis, embora às vezes de luxo, mas totalmente vazios de sentimento e com a alma dolorida pela saudade que nada mais é do que o amor que fica. A presença da Música soa para mim como um amigo próximo, confidente, que não me questiona por que às vezes me fixo apenas na melodia, nos sons expressos nas partituras e, em outras, a atenção se volta para a letra, o conteúdo, o enredo.  Especialistas ensinam: quando se está alegre, a mente só pensa no ritmo, nos sons e suas sequencias. Se gostamos, aprendemos logo o ritmo. Quando estamos tristes, continuam os especialistas, focamos a atenção na letra, no conteúdo. Não raras vezes dizemos: Puxa vida, essa letra foi feita para mim, tal a semelhança com a própria situação pessoal.

 A Música é, portanto, muito mais que um conjunto de sons melodiosos, ritmos e vozes. Música é Vida, é alma em regozijo e até há um ditado popular: Quem canta, seus males espanta..., é verdade. Sou obcecado por ela, talvez pelos momentos de solidão em aeroportos, aviões e hotéis em longas temporadas no exterior. Está presente no meu dia a dia e, francamente, sempre a preferi em detrimento de estranhos que sempre estavam a meu redor. No carro enquanto dirijo, há CDs e pendrives, classificados por gênero e de fácil acesso ou mesmo com links ao telefone. Fiel companheira, a música traz alegria à alma. Nos concertos e recitais era comum, após o encerramento, avançar para o palco e cumprimentar o maestro, o tenor ou qualquer dos membros da orquestra. Foi assim com Ray Conniff no Ballroom da Academia de Tenis de Brasília, com a pianista francesa Brigitte Bouthinon-Dumas, no Teatro Nacional e tantos outros. Não bastava gritar “Bravo!” tinha que subir ao palco e, interessante, nunca fui barrado nem mesmo pelos atentos e fortes seguranças de Mikail Barishnikov. Mas, também..., como disse um maldoso e irônico amigo: quem iria suspeitar de um velhinho engravatado ou de smoking?  

Obrigado ao amigo Bertolucci que nos trouxe essa recordação, a qual nos levou novamente a refletir sobre o valor da música. A música nos ajuda a lidar com os sentimentos, curando-nos da ansiedade e até mesmo da dor da morte de um ente querido. Hoje, juntando os dois eventos, nos quais a música teve papel fundamental na cura de minha alma, posso afirmar com absoluta certeza: A música tem efeito terapêutico. A música cura e alimenta a alma.

 

Brasília, 28 de fevereiro de 2022

 Paulo das Lavras


 
Foi nesse hotel, na Connecticut Avenue, na capital americana, que o menino “compreendeu” e absorveu o significado da beleza da letra e dos acordes da canção “The Sound of Silence”


 


Videos de Haendel:

- Piano:   https://www.youtube.com/watch?v=SAg0a0RIqc4

- Orquestra Sinfônica:         

            https://www.youtube.com/watch?v=uMlxM69ZJFA

                                                                   (copie  e cole em seu navegador)  

 - Coral e Letra... O Largo  Santo, És Senhor -

                               https://www.google.com/search?q=largo+de+hendel+letra+Santo 



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