terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Histórias de aniversário – III: Um aniversário que quase não aconteceu e o legado do Dr Koch

           O Dr Heinrich Hermann Robert Koch foi um eminente médico alemão que nos legou, no final do século XIX, inúmeros estudos e teses no ramo da patologia e bacteriologia. Em 1905 foi distinguido com o Premio Nobel de Medicina pelas suas notáveis contribuições que facilitaram, ainda hoje, a compreensão da epidemiologia das doenças transmissíveis. É provável que poucos profissionais, como os agrônomos que passamos por disciplinas de patologia animal (sim... estudei essa matéria que constava da disciplina de práticas de medicina veterinária, obrigatória nos currículos do curso de agronomia da década de 1960), se lembrem que a técnica de fixação e coloração de bactérias para estudo em microscópio foi criada e desenvolvida por esse cientista. Também a descoberta do agente carbúnculo e seu ciclo se deve ao Dr Koch. E olhe o quanto penamos nos exames teóricos e com as práticas de laboratório para descrever os sintomas do carbúnculo hemático (bactéria antrax - Bacillus anthracis). Trata-se de doença contagiosa que ataca os bovinos e o aluno que não soubesse diferenciá-la do carbúnculo sintomático, a vulgar manqueira, não contagiosa, estava automaticamente reprovado pelo rigoroso e competente Prof. Dr. Edmir Sá Santos.

 Mas, foi também o Dr Koch quem descobriu e dissecou a fundo os segredos da doença da tuberculose. Publicou em 1882 o primeiro artigo em que identificou o bacilo causador desse mal, a Mycobacterium tuberculosis e que depois recebera o nome de Bacilo de Koch. Essa bactéria se aloja no pulmão e se dissemina por meio da tosse, espirros e pelo ar onde podem permanecer por horas. Por essas razões e mais pela falta de tratamento sério os doentes eram segregados. Estima-se que 25% da população do século XIX tinha tuberculose. A enfermidade passou a ser chamada de mal do século e no período romântico, matou inúmeros brasileiros e privou a literatura de grandes talentos. Em passado mais distante são registrados como vítimas fatais os padres Manoel da Nóbrega e José de Anchieta e mais recentemente Casimiro de Abreu, Castro Alves, José de Alencar, Manuel Bandeira, Noel Rosa e vários outros benfeitores da humanidade em todo o mundo. O pânico, em relação à doença, era tanto que sequer era mencionado seu nome completo. Era identificada nos laudos médicos e nas conversas apenas pelas letras - tb. Poucas são as referências, pelas vítimas e familiares, sobre os males da doença. Exceção apenas para o poeta Manuel Bandeira que não fez segredo nenhum, ao contrário, cantou sua doença em versos:
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
- Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino

Mas por que essa alta incidência da doença no meio artístico? A literatura indica que isso se devia aos hábitos desregrados de vida dos artistas. Noctívagos, se alimentavam mal, eram sedentárias e dependentes de álcool e fumo, além de frequentarem ambientes fechados, com pouca ventilação e grande circulação de pessoas. Além dos bares e tavernas se reuniam à noite, a céu aberto, em praças e outros ambientes sem nenhum agasalho, submetidos à chuva e ao frio (haja romantismo e vontade de impressionar as moças com suas serestas...). Hoje em dia não há mais pânico diante  desse mal, pois há políticas de saúde pública eficientes no combate às doenças chamadas infecciosas. Por outro lado, os tratamentos com modernas drogas debelam a doença em menos de 30 dias. Deixou, portanto, de ser um fantasma para a sociedade depois que as vacinações em massa com o BCG foram popularizadas, embora sua eficácia tenha sido pouco satisfatória para a modalidade pulmonar.
           
Mas, afinal o que tem a ver o legado do famoso bacteriologista, Dr Koch, com a vida de um jovem engenheiro? E o aniversário que quase não aconteceu? Pois bem, a vida em Belo Horizonte era tranquila, prazerosa em quase todos os sentidos, não fora o mal que acometera o jovem, recém-chegado do interior. Gostava da cidade-capital das Gerais e se dera bem no trabalho e na vida sentimental. Porém, no campo da saúde não poderia dar certo, com alimentação deficiente em vitaminas, frutas e nutrientes essenciais, refeições frugais no restaurante Massahud (má saúde, seria mais apropriado, até porque ficava bem próximo da região hospitalar da Santa Casa e outros hospitais da capital mineira). Além disso e para piorar as condições, havia excesso contínuo de trabalho nas intempéries, com chuvas e ventos muito frios nas geladas montanhas das regiões de Ouro Preto e da Serra do Cipó. Não bastasse todo esse quadro, havia também o cigarro constante. Tudo isso somado e ao mesmo tempo, minou a saúde do menino e a evolução de uma simples pneumonia para um quadro gravoso de tuberculose pulmonar, não era, portanto, de se surpreender.

 A subnutrição é uma das principais causas para a instalação do bacilo de Koch. Mas, nesse caso outro fator agravante, além daqueles já mencionados, contribuiu para a aquisição do temível bacilo. No mesmo local de trabalho residia o menino, num minúsculo quarto, dividido com outro colega, ambos fumantes inveterados. A atmosfera poluída era respirada a noite toda. Mas, o pior era que essa residência/escritório de trabalho se situava a um quarteirão de grandes hospitais como a Santa Casa de Belo Horizonte e o Hospitais da Faculdade de Medicina da UFMG e o São Lucas e outros. Não bastasse a poluição autoprovocada pelo cigarro, os arredores não eram nada recomendáveis em termos de salubridade e qualidade do ar que se respirava. Estava, portanto, montado o cenário que, associado à frágil compleição física, e carga de trabalho em excesso, se tornaria propício para o certeiro ataque da tal micobactéria. O jovem engenheiro de 23 anos, recém-chegado do interior de ares mais puros e sadia alimentação, não resistiu ao ataque daquele bichinho identificado pelo Dr Koch. Incrível a sucessão de fatores desencadeantes, tal qual acontecia com os artistas que levavam vida desregrada em constantes noitadas. À exceção da vida noturna que inexistiu para o jovem engenheiro, tudo contribuiu, a começar pela pobre alimentação, fumo constante, ambiente fechado e altamente poluído, sedentarismo, vivencia de 24 horas/dia nas proximidades de grandes hospitais públicos onde certamente o ar estava contaminado por bactérias, vírus e bacilos de toda ordem. E pior, quando executava tarefas no campo, havia sobrecarga de trabalho sob chuva e ventos gelados nas regiões montanhosas de Ouro Preto e da Serra do Cipó, município de Conceição do Mato Dentro, próximo à Diamantina. No way..., não tinha jeito, o bacilo de Koch encontrou terreno fértil!

Mas, sabe-se lá o destino de cada um, pois na própria Belo Horizonte, no ano de 1924 ou 25, esse mesmo bacilo colheu também outro jovem, coincidentemente de mesma idade, 23 anos, que trabalhava muito, até altas horas da noite, madrugadas inteiras, como telegrafista para custear seus estudos de medicina. Seu nome, Juscelino Kubitschek de Oliveira, o nosso ex-presidente JK. Seu tio o socorreu financeiramente para que pudesse parar de trabalhar, se tratar e continuar os estudos de medicina. O tio desse jovem órfão, desde os três anos de idade, residia em Diamantina e era irmão de seu pai. O pai de JK, João César, havia morrido prematuramente, aos 34 anos, também com essa mesma e terrível tuberculose. No livro “O essencial de JK”, o autor, Ronaldo Costa Couto, descreve a prematura partida do pai de JK apontando a causa como a exposição ao vento gelado das serras. É verdade, sei disso por experiência própria. A exposição aos ventos gelados do espinhaço de Diamantina, ou mais precisamente, a 60 km ao sul da cidade, na Serra do Cipó, na Fazenda do Palácio, na antiga Estrada Real, caminho das jazidas de diamante até Ouro Preto e dali para a capital da corte, Rio de Janeiro, também me abateu e fraquejaram os pulmões. Ali estive, durante algumas semanas, executando projetos florestais debaixo de chuva fina e os fortes e uivantes ventos gelados. Não há quem aguente isto por muito tempo. Coitado de João César, caixeiro viajante, a cavalo sob chuva e frio naquelas montanhas, dormindo ao relento, mal alimentado e certamente, não contava com os recursos terapêuticos que o jovem engenheiro pôde desfrutar no Hospital Militar de Belo Horizonte. Não havia ainda, para ele, o milagroso e eficaz antibiótico penicilina, descoberta pelo cientista Alexander Flemming em 1928 e disponibilizada como medicamento em 1941, durante a II Guerra Mundial. E ainda lembrar que foi nesse mesmo Hospital que o filho de João Cesar, JK, veio a se tornar o Major-Médico, cirurgião, que logo em seguida foi atuar no front da Revolução de 1932 no Túnel da Mantiqueira.

Que triste sina do nosso saudoso JK. Perdeu, aos dois anos de idade, o pai que era um jovem de 34 anos e depois, ele próprio aos 23 anos, também se contaminara com aquela terrível bactéria da tuberculose. Não fora aquele caridoso tio ele não teria sido curado e nem se formado em medicina. Teria morrido, de madrugada, em cima do manete do telégrafo dos Correios, pois dependia do salário para sobreviver e estudar. Hoje não teríamos também a nossa bela capital Brasília. E eu nem estaria aqui, na Brasília de 56 anos de existência, desfrutando dessa maravilhosa cidade-parque. Mas, as crueldades dessa fatalidade, apelidada de “tb”, sobre JK não pararam por aí. Novamente a insidiosa doença lhe açoitou a alma. Não bastassem o pai e ele próprio terem contraído aquele mal, também sua filha passou pela mesma via crucis aos 13 anos de idade. Foi afastada do colégio, no Rio de Janeiro, onde ele exercia o honroso cargo de Presidente da República, para que ele e a própria filha fossem poupados, e não houvesse especulações em torno da família. Em menos de um ano estava curada, pois os recursos médicos estavam avançados e, afinal ele, o pai, também era médico, disse Ronaldo Costa Couto em seu livro.

Mas, o jovem engenheiro agrônomo, como JK e seu pai João Cesar, também iniciou o tratamento no mesmo Hospital Militar de Belo Horizonte, situado a uns três quarteirões de sua residência e escritório com aquele quartinho poluído pelo cigarro... E com a mesma sorte que o ex-presidente JK, também contou com uma alma caridosa, amorosa, que lhe estendeu a mão e o salvou da morte certa. Não haveria aniversário naquele 5 de abril, em Belo Horizonte. Sim, tudo se encaminhava para tal. A começar pela falta de senso próprio quanto à alimentação inadequada, sobrecarga de serviço sob intempéries, persistência no vício do cigarro, moradia inadequada, além da proximidade da grande área hospitalar com inevitável contaminação do ar. E pior, ainda, a grande resistência em ir ao médico e seguir as prescrições, ou simplesmente cuidar-se. Hoje, analisando a situação, é difícil entender por que predominava, à época, tamanha falta de senso ou conhecimento, a ponto de não se saber avaliar o risco que corria a própria vida. Não é a toa que a literatura médica aponta as mulheres como mais cuidadosas da própria saúde. O especialista em cirurgia torácica, Dr EvilazioTeubner, recomendou a cirurgia do nervo intercostal para aliviar as dores do peito e nas costas. Seria extirpado um pinçamento do nervo intercostal, um nervo entre as costelas dilaceradas, sequela de antiga cirurgia de pleurite que o menino se submeteu aos dois anos de idade, em Lavras. Sim, pleurite aos dois anos de idade e somente foi salvo pela perícia do Dr Jacinto Scorza, ex-prefeito da cidade, que usou e abusou da então recém-descoberta, penicilina. Também não era para menos, pois até então, antes do aparecimento dos antibióticos, milhares de pessoas morriam de doenças bacterianas, como a pneumonia, ou de infecções depois de cirurgias. Santo antibiótico, embora outros médicos como o Dr. João Amilcar Salgado e Dr. Armando Greco, da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, ambos com ligação à cidade de Lavras, condenassem o abuso de antibióticos e diziam, naquele final da década de 1940, que a medicina estava em lua de mel com os antibióticos e os hormônios, medicamentos cada vez mais eficazes. 

Embora com toda essa anamnese nada animadora, o jovem engenheiro continuava insensível às recomendações médicas. Outro médico, o pneumologista Mário Marques, ainda recomendou que se deixasse de fumar. Nada foi seguido, apenas o tratamento à base de hidrazida do ácido isonicotínico. Mas, pior que o diagnóstico foi o prognóstico desse médico que, felizmente, revelou-se totalmente equivocado. Ele recomendou à namorada do jovem: “leve-o de volta para a cidade natal, para morrer”. Ainda bem que essa cruel recomendação só me foi contada alguns anos depois pela própria pessoa que a recebeu diretamente daquele nada sensível médico do serviço público. Ao saber disso e juntando as peças dos acontecimentos da época, só então o jovem engenheiro pode avaliar a extensão do perigo pelo qual passara.

 A viagem de retorno definitivo para sua cidade natal foi feita praticamente deitado no banco do veículo, com dificuldade de respiração e intensa dor no peito. A namorada, seu anjo caridoso, deixou o trabalho em Belo Horizonte e chorosa levou o jovem para Lavras, onde “morreria” junto aos familiares, conforme predição do equivocado médico. Ali permaneceu por uma semana, orando e confortando a todos e inclusive ensinando aos familiares sobre a superalimentação e cuidados necessários no tratamento, pois tinha bastante prática de residência médica. Ela levou muito a sério as palavras finais daquele médico, porém só me revelaria aquele equivocado prognóstico  muito tempo depois. Não fora seu cuidado, fatalmente aconteceria o pior, pois o menino ignorava, não tinha conhecimento e tampouco sensibilidade para avaliar a gravidade e os cuidados que a situação requeria. Assim como JK teve a sorte de ter a assistência do tio, o jovem e teimoso engenheiro, que ignorava os perigos desvendados pelo Dr Koch, também contou com uma alma caridosa e amorosa, sua namorada, com quem veio se casar algum tempo depois, já completamente restabelecido e em plena atividade profissional. Deus foi muito generoso com aquele jovem teimoso e descuidado com o bem mais precioso, a saúde, a própria vida. Sua carreira profissional mal acabara de iniciar e poderia ter sido encerrada prematuramente, ali mesmo na capital mineira. Teria tido um triste final, a começar que não teria viajado de volta, para a cidade natal, com a cabeça recostada no macio e acolhedor colo de sua amada, mas, transladado numa nave de madeira, dura, envernizada e lacrada, para sempre.

Pois então..., o aniversário no 5 de abril seguinte, que quase não houve, aconteceu, sim! E mais, dois anos depois houve ainda o casamento, lá mesmo em BH, na belíssima Catedral de Lourdes, onde recebi nos braços aquela que me deu a mão nos momentos cruéis da vida. E os aniversários já têm se repetido umas cinquenta vezes depois daquele quase trágico encontro com o bacilo de Koch. Graças a Deus! E também à mão caridosa de alguém que conhecia o métier e foi protagonista naquela plena recuperação, como também a assistência de toda a família. Foram quarenta dias assim, em plena recuperação. Sim, a vida é bela, sobretudo aos 71, com muita saúde e disposição para o trabalho e curtir a vida, a família e os amigos, principalmente depois de ter sobrevivido a esse e mais três outros dribles na dona morte com sua foice pronta para ceifar vidas. Numa das vezes, a primeira, o ex-prefeito e médico cirurgião, Dr. Jacinto Scorza salvou-lhe a vida. Na segunda vez foi salvo pela mãe que o resgatou do fundo de um reservatório d´água. Na última vez, a foice da dona morte não teve vez, num desastre aéreo em grande aeronave, quando salvou-se por milagre. Mas essas são outras histórias.

Saúde e tim-tim neste aniversário, com um brinde à vida, com os familiares e amigos. Sempre! Deus é grande e sempre nos reserva uma missão aqui na terra. E o melhor é exercê-la com muita alegria e amor no coração. A cada aniversário me lembro disso e dou graças a Ele!


Brasília, 5 de abril de 2016


Paulo das Lavras


 
No rigoroso inverno de Ouro Preto,                   
escalando montanhas da região para
execução de projetos de reflorestamentos
 de siderúrgicas sob chuva e frio cortante.

Revisitando o local quase 50 anos depois

 
Nos tempos de BH


 
Recuperando-se em Lavras     
                               
 
dois anos depois..., pronto...


... para a lua de mel – Poços de Caldas (mas,
ainda com maço de cigarros no bolso da camisa..)




  
Relembrando JK, quase 50 anos depois, no
 lançamento de mais um livro sobre sua
bela história, ao lado de uma de suas netas



Disposição para o trabalho nunca faltou..., aos 50 (à direita), visitando
 a UFLA, com o ministro da Educação Murilo Hingel  que cumprimenta
 a Profª Marília Lunkes e o prof. Canísio Lunkes, que aparecem de costas.
O prof. Silas Costa Pereira, primeiro reitor da UFLA, ao centro



A mesma disposição aos 70. Batalhando no Congresso Nacional



...ou aos 71, com o colega professor da UFSJDR. Saúde é tudo. Muitos
aniversários têm sido comemorados, depois de dar grandes dribles naquela
tenebrosa senhora da foice... Acho que vivi uma história alegre e com
 missão cumprida, pois já a venci  por 4 x 0