sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Diante do mar – a partida e a saudade que fica

 

 

Guardo as memórias que me trazem riso,

 as pessoas que tocaram a minha alma e

 que, de alguma forma, me mudaram para melhor.

 Guardo também a infância toda tingida de giz.

Tinha jeito de arco-íris a minha”

Caio Fernando de Abreu


Por que quando toca o sino de uma igreja ou o apito de um trem, de um navio, ou ainda a decolagem de um avião, os sons e as cenas nos remetem às lembranças de despedidas? Por que muitas das vezes choramos diante de cenas assim, mesmo depois de tanto tempo do acontecido? Lembro-me que não consegui conter as lágrimas ao ouvir os apitos de um navio zarpando do porto de Nova York, com a bandeira brasileira tremulando ao vento. Pedi ao motorista que parasse o carro e sozinho fiquei a contemplar, extasiado, a cena como se fosse a oitava maravilha do mundo. E isso foi quando já era adulto, um jovem “yuppie” que por lá trabalhava periodicamente. Tudo bem, aí teria a explicação do forte fator da saudade da pátria distante por tanto tempo. Puro ataque de banzo, nostalgia, que é a saudade dolorida da pátria. Compreensível, “rever” e imaginar ali, diante daquele símbolo nacional, a pátria amada, a família, os amigos, os lugares onde vivi em plena harmonia com a felicidade na alma. Por isso jamais me envergonharia daquelas lágrimas solitárias diante dos sonoros e tristes apitos do navio e principalmente o tremular do auriverde pendão que, tantas vezes, nos perfilamos diante dele e cantamos o Hino Nacional. Não à toa sempre mantive uma bandeirinha verde-amarela sobre a mesa de meu escritório, naquele país, contrastando com milhares de bandeiras norte-americanas espalhadas de porta em porta na Wall Street. E ali, naquela cidade, uma única bandeira auriverde valia mais em meu coração que milhares daquelas em vermelho e azul, hasteadas em várias avenidas daquela cosmopolita cidade.

 Por outro lado, em matéria de apito de despedida, vivenciei ainda criança, um duro episódio que deixou marcas indeléveis na alma: o apito do trem! A partida do menino de 12 anos que, por conta própria decidira ir para o seminário, o empolgava. Empolgava? Sim, até chegar o momento da despedida com os estridentes apitos da maria-fumaça que esbaforia seus vapores de água quente saindo das caldeiras, branquinhos, jogados para o lado sobre os trilhos e a fumaça negra para o alto, de sua chaminé fumegante. A longa viagem de 16 horas foi um misto de curiosidade pelo “novo”, contrastando com a angústia, ouvindo a noite inteira o contínuo tralalaco-traco das rodas de ferro sobre os trilhos, como a provocar-me doloridas lágrimas por ter deixado para trás os entes queridos. Só então caiu a ficha do menino que partiu e deixou tudo e todos. Ah..., se o menino soubesse a dor da despedida e a saudade incontida por um ano inteiro, em tão distante lugar, ele não teria se decidido a partir com tão pouca idade.

            Mais tarde, já na adolescência o menino gostava de ouvir musicas, e uma em especial, da qual tomei emprestado seu nome para título desta crônica e que pode ser ouvida no link indicado ao final. E essa música lembra a saudade, a dor da despedida. E essa dor dolorida de despedida é como aquela do protagonista de uma história de amor que, em desespero assistiu a desatracação do navio que zarpou levando a amada, deixando o porto com aqueles característicos apitos de sonidos tristes, de dolorido adeus. Lágrimas corriam, o coração apertava em estranha sensação de perda, parecendo que nunca mais voltaria a vê-la, conta-nos o escritor em seu romance. E assim segue a vida, cheia de adeus, repleta de saudades sem fim. Mas, afinal o que é a saudade? Sei, não! Só sei que muitos poetas tentaram defini-la, mas nunca se chegou a uma definição completa. Saudade é o amor que fica, dizem alguns, ou melhor, disse o médico oncologista, Dr. Rogério Brandão, de Pernambuco, depois de ouvir as doces palavras de despedida de uma menininha, um anjo, atacada pelo câncer e já em estado terminal. Saudade é o amor que fica..., disse ele, com lágrimas nos olhos ao relembrar aquele anjinho que partiu para sempre, segurando suas mãos, ali no leito. E é mesmo! Saudade é o amor que fica!

 Outros acham que é infeliz quem vive sem saudade, sem lembranças de amor, de amizade e também das coisas que fez ou deixou de fazer. Clarice Lispector romantizou a saudade e creio ter sido a que mais completamente a descreveu. A saudade é assim nas palavras da poetiza e romancista:

“... Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida. Quando vejo retratos, quando sinto cheiros, quando escuto uma voz, quando me lembro do passado, eu sinto saudades... Sinto saudades dos amigos que nunca mais vi, de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

 ... Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito! Daqueles que não tiveram como me dizer adeus;

... Sinto saudades das coisas que vivi e das que deixei passar, sem curtir na totalidade. Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que... não sei onde... para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...”

Mas, o que é saudade em outros idiomas? Simplesmente não existe tradução dessa palavra mágica para nenhuma outra língua. No inglês se diz: I miss you, sinto sua falta. No francês Vous me manquez, você me faz falta. Só mesmo no nosso idioma existe essa expressão que sintetiza todo o sentimento da alma, da falta que sentimos das coisas e das pessoas queridas, com aquele aperto no peito. Sentir saudades é sinal de que estamos vivos. Viva a saudade, boa, gostosa, que nos faz viver, reviver! Sinto saudades da minha infância, do meu primeiro amor, do segundo, do terceiro, do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, disse outro poeta. E prossegue na lista saudosa: Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei! De quem disse que viria e nem apareceu... De quem apareceu correndo, sem me conhecer direito... De quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer. Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito! ...De gente que passou na calçada contrária da minha vida e que só enxerguei de vislumbre! Bem verdade, os poetas são verdadeiros artistas em trabalhar as palavras para expressarem sentimentos. Mas, posso ainda acrescentar que sinto saudades até dos livros que li e que me fizeram viajar pelo mundo inteiro, da terra dos Faraós, às mais distantes, da Babilônia, Grécia, das Arábias e “da... Zoropa”! Sinto saudades das musicas da Jovem Guarda e dos Embalos de Sábado à Noite que vivenciei na terra do Tio Sam e que me fizeram sonhar e ainda hoje as lembro.  E de todas essas saudades a mais dolorida é aquela das coisas que deixei passar..., sem curtir, sem marcar, sem apreciar como deveria. Ah..., por que não estudei música, idiomas como o alemão, o italiano? Por que não assisti a todos os concertos, recitais, corais e desfiles de fanfarras colegiais de minha cidade, com suas lindas balizas de roupas coloridas e enfeitadas, como as acrobáticas cheerleaders que via nos Estados Unidos anos depois? Ah..., ia me esquecendo, sinto uma saudade danada do trabalho, daquele compromisso diário, de terno e gravata e constantes viagens pelo país e exterior. Trabalho?  Sim do trabalho, mas..., é a chamada “saudade aliviada”, aquela em que você sente saudades apenas do ambiente, das pessoas, mas fica aliviado da “carga” de responsabilidade. Assim é a “saudade aliviada”.

Mas, os poetas existem e aí estão para cantar o amor, as boas coisas da vida. E a saudade o que é senão o amor que fica?  E sabe de uma coisa mais que certa? É a afirmação do poeta Rubem Alves, que é um pouco lavrense (sua mãe nasceu em Lavras, onde ele morou por algum tempo). Ele define o poeta como um “apaixonado pela vida”. Você já viu algum poeta deixar de cantar e exaltar a vida? Costumo dizer que o bom poeta, escritor, contista ou seja lá que gênero literário tenha, ele não representa, não inventa. Ele VIVE a história, o poema, o conto ou a crônica. Qualquer assunto é transformado, por palavras, em uma trama ou enredo agradável... Por quê? Porque ele está falando de sua paixão, a VIDA e quer compartilhar essa maravilha com seus leitores. Os poetas desejam voltar às suas origens. É lá que mora a verdade que os adultos esqueceram. Fogem da loucura da vida adulta. Buscam reencontrar a simplicidade da infância. Para se curar da adultite é preciso tomar chá de infância, virar criança de novo..., completa o poeta e filósofo Rubem Alves.

 E esses mesmos sábios poetas que exaltam a vida dizem, também, que a nossa saudade é maior do que em todo o mundo, porque é expressa em português, sem tradução para outros idiomas. Segundo esses especialistas, costuma-se usar sempre a língua pátria, espontaneamente..., quando estamos desesperados, seja para contar dinheiro, fazer amor e declarar sentimentos fortes dentre outras situações de emergência. E isso, expressar as fortes emoções no idioma pátrio, é muito comum e não importa em que lugar do mundo estejamos. Sei muito bem, já passei por constrangimentos de se exclamar em português quando deveria falar no idioma local, do interlocutor. Por isso e muito mais é que cheguei à conclusão que tenho muitas saudades e o consolo de que sentir saudades é sinal de que estamos vivos. Viva a saudade boa, gostosa, que nos faz viver, sonhar. E enquanto houver sonhos, haverá Vida! E para encerrar, os versos do poeta Bastos Tigre:

Ter saudade é viver passadas vidas,

Percorrendo paragens preferidas,

Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se… E em sonho, como por encanto,

A dor que nos doeu já não dói tanto,

Gozo que foi é gozo inda maior.

Têm razão os poetas, pois a saudade é mesmo a herança dos que abriram o coração para amar... No entanto, outros dizem que saudade mata. Não sei se mata, mas que dói, dói..., e muito, mas é uma dor gostosa de viver. Dizem os especialistas que a saudade em vez de matar, pode trazer a cura, fazendo a vida valer a pena. A saudade pode se transformar em fonte de cura que faz a vida valer a pena! E, vale!

 

Brasília, 19/02/2021

                             (mês da pandemia recrudescida, fazendo aumentar a saudade dos entes queridos)

  Paulo das Lavras


 
Ouvir o apito do navio e assistir à sua partida é uma das mais dolorosas despedidas. O som dos apitos, longos e lúgubres, a imensidão do mar, são fatores que contribuem para  o aperto no coração e tristeza geral por ver o ente querido partir. Na foto, um cruzeiro para turistas deixa o porto de Santos. Parentes e amigos alugam pequenos barcos que acompanham a saída do navio até a barra do porto para um ultimo adeus, um aceno de despedida. 
Foto: internet

 

 O menino experimentou, aos 12 anos, no distante seminário, as dores da despedida e da saudade de casa 
Foto: arquivos do Seminário e Colégio N.S. de Fátima- Itaúna-MG- 1958


 Nos anos 80 levei as filhinhas para um passeio de trem, na mesma Maria-Fumaça que um dia levou-me para o distante Seminário, praticamente com a mesma idade que elas então tinham. Embarquei-as  em S.J.Del Rei e fui de carro espera-las em Tiradentes.  Não pude evitar aquele mesmo sentimento de aperto no peito, quando o trem apitou várias vezes e partiu levando-as, mesmo sabendo  que dali a meia hora seriam resgatadas  na estação seguinte. 
Foto do autor, Tiradentes-MG, anos 80


 
Bem mais tarde o menino pôde se vingar das dores da despedida e saudades que a vida lhe pregou na viagem para o Seminário. Agora “viajou” de São Lourenço para Soledade, num trem turístico, mas não sem antes ir à cabine do maquinista (olha a alegria, na foto) e combinar com ele: ... “quero ouvir apitos, longos e estridentes a cada curva da estrada”. E assim foi feito para alegria do menino sessentão que, a cada apito sorria e dizia para si... “pode apitar a vontade, pois agora quem dá adeus a quem fica sou eu”. E acenei para cada casinha, cada pedestre que via no caminho. Pura alegria... e o poeta Caio Fernando estava certo, tal qual aparece no inicio desta crônica: era mesmo a minha infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha. 
Foto do autor, São Lourenço-MG,  2014

... e a saudade existe até mesmo das coisas que não mais existem, como esses dois prédios gêmeos 
explodidos por terroristas, em 2001 
Foto do autor, N.Y - 1978

 




 
Lindas, as palavras do autor da foto assinada....(Luiz Felício): 
 “Sabe-se que diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio...” 
Assim também se expressou o cantor Barros de Alencar, com sua bela versão de uma canção francesa:  “Diante do mar”   (1969 - La plage aux romantiques - Pascal Danel), que pode ser ouvida no link abaixo:



terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Carroças em Brasília, Lavras, a Confraria e o Coronavirus

 

Um presidente disse, em passado não muito distante, que os carros nacionais eram verdadeiras carroças. Por isso abriu as importações e os primeiros a chegarem ao país foram os carros populares russos, como o Lada, ruim que só. De lá para cá a indústria automobilística nacional melhorou um pouco a qualidade dos carros, produzindo, logo de início, os automóveis com câmbio automático. Resisti um pouco, mas logo no início da década de 90 comprei o meu primeiro carro com esse câmbio diferente que, supostamente exigiria maior manutenção e gastos com combustível. Nada disso..., puro conforto e nunca mais voltei para o câmbio de marchas manuais. O carro de câmbio automático é infinitamente mais prático e confortável, pois tem perfeita sincronia das marchas, no tempo certo, sem barbeiragens.

 Mas, antes dos carros de câmbio mecânico (antigos) ou hidramáticos (como dizíamos dos carros importados, com câmbio automático, como aquele bonito Cadillac Chevrolet 1950, vermelho, do Ciro Arbex), eram comuns as carroças e charretes nas pequenas cidades. As primeiras para transporte de cargas como as do Sinésio e Tatá Carroceiro, cujo lema era: “Tatá carroceiro, cuidadoso e caprichoso, carrega guarda- roupas e cristaleiras...”. E tome prurú...uuuuh... tatá...tá, sua voz de comando para as parelhas de fortes mulas a vencerem os morros e ruas de paralelepípedos da cidade nos anos de 1950/60. Havia ainda outras enormes carroças, do Sr Pedro Joana e do Tião Carreiro, ambos pelos lados da Ponte Alta, de onde carreavam areia, pedras e tijolos para as construções na cidade. Por serem cargas muito pesadas e havia subidas íngremes nas estradas de acesso à cidade, especialmente nas ruas da Chapada e do Charquinho, seus carroções eram puxados por duas juntas de bois, às vezes mais.

Mais antigo que esses quatro famosos e disputados carroceiros de Lavras era o Sr Guarino, italiano que fazia ponto na estação de trem da EFOM e de lá transportava as cargas chegadas do Rio e São Paulo para as lojas do Haical Haddad, Ticle, Máquinas Libeck e outros comerciantes da cidade. Certa vez o Sr Guarino queria aumentar o preço do frete e para justificar ao Sr Haical, disse que era obrigado a fazer isso, pois até mesmo a assinatura de seu jornal italiano, “Fanfulla” (antiga Gazzetta Del Popolo) havia encarecido muito e que ele não poderia ficar sem aquele jornal com notícias da italianada no Brasil e da distante pátria que um dia deixou para trás. Comovido, mas mais ladino ainda, o Sr Haical respondeu de bate pronto: Não me pegas nessa, “Sior Guarino”, pois os jornais de Beirute, minha terra mais distante que a sua, continuavam a chegar a Lavras pelo mesmo preço... Não tem aumento nenhum ...! Diante da negativa, saiu-se com a desculpa de que subir o morro da Estação era muito trabalhoso na época de chuva, pois as carroças encalhavam até o eixo nos atoleiros e cavas ao lado da linha do bonde e tinha que arregimentar ajudantes para ajudar a retira-la. Emendou, ainda, que além de tudo, o aluguel dos pastos do Sr Nicolau Romanielo está muito caro. E veja Sr Haical, disse o carroceiro, quanto pasto verde há ali, pois a imensa pastagem se iniciava no cruzamento das ruas Álvaro Botelho com Misseno de Pádua e chegava até o túnel. O Sr Guarino tinha razão, a pastagem era enorme, começando ali no buracão dos fundos da atual Agencia do INSS, descia pelo córrego até a antiga sede da CLE- Companhia Lavrense de Eletricidade que, o próprio Haical era sócio e a construiu nos anos 50.  Dali, dos fundos da CLE, alcançava os trilhos da RMV, englobado toda a área da atual Avenida JK, na vertente. Dali, rumava, com cerca de arame farpado, margeando a Rua Otacílio Negrão em toda a sua extensão até encontrar-se novamente com a Misseno de Pádua. Aliás, essa grande pastagem era privilegiada e ali se “hospedavam” os cavalos de viajantes que pernoitavam nos hotéis da cidade (a área foi loteada, desenhada pelo Dr Agenor Alves Guimarães, ainda nos anos 50, informa-nos o Paulo dos Pianos). Um tanto indignado, o Sr Guarino prosseguiu com seus argumentos para aumentar o valor de seu frete da Estação para a loja “A Glória Lavrense”. Imagine, Sr Haical, ai.., ai do signore, una lastima, se não fosse minha carroça pois os chaufers de caminhão de praça não colocam nunca seus autos ali, pois deslizam , atolam e nem as grossas correntes nos pneus resolvem, só mesmo o trattore da schola agrícola para desatola-los... Foi isso que vi ainda há poucos dias com o caminhão International da SOTECO, do signore Dr Agenor Guimarães. Não se sabe se depois disso, o Sr. Haical concordou com o aumento do valor de frete da estação até a loja em frente à matriz da cidade, contou-me o mano Anízio Pereira da Silva, profundo conhecedor do folclore lavrense e outras notícias de bastidores.

Por falar em notícias orais, não se pode esquecer da Confraria da Praça. Aliás, a Confraria da Praça, do jardim de Lavras, é um grupo que merece história à parte. Faz-nos lembrar da chamada “Boca Maldita”, do calçadão de Curitiba, cidade pioneira em criar ruas fechadas ao tráfego de veículos e destinadas somente a pedestres. Londrina, no norte do Paraná, também tem a sua “Boca Maldita”, localizando-se também num calçadão, ao lado de um bar-café na antiga Galeria do Cine Augustus, no centro da cidade. Assim nos relatou um ex-frequentador da Confraria da Praça de Lavras, o primo Rui Rezende, quando residiu na cidade por bom tempo. Essas confrarias são grupos especializados em contar casos e causos do arco da velha. Muitos até impublicáveis. Porém, na maioria das vezes, são fatos verídicos que compõem e perpassam a vida, o tecido social de uma comunidade e por isso, como dito, aquela confraria merece uma história à parte. Mas, de qualquer forma, lá como cá, seja em Curitiba, Londrina ou Lavras, a Confraria é composta principalmente por respeitáveis senhores, aposentados. Em Lavras reúnem-se diariamente, exceto aos domingos, de 10:00 às 11:00 horas, ali no banco do jardim, defronte a Igreja do Rosário e ao Clube de Lavras. O cumprimento do horário é rigoroso, pois não podem se atrasar para o almoço em casa, sob pena de serem proibidos de frequentar o lugar. A debandada geral das 11 horas ganhou também o apelido de Leão das Onze, plagiando o Leão das Nove (21 horas), quando nos anos 60/70 aquela mesma praça se esvaziava totalmente, pois as meninas tinham que se recolher naquele horário. Não havia namorado, noivo ou quer o que fosse, para “segurar” as meninas quando batiam as nove horas da noite. A praça virava um deserto. O mesmo acontece com os quatro bancos enfileirados e cativos da Confraria..., vazios, vazios, às 11h01min.

  O presidente da confraria era o Alfredão, professor aposentado da Esal/Ufla que às vezes dividia a turma em dois bancos ou mais (eram quatro bancos lado a lado), tantos quantos fossem os frequentadores. O presidente era mesmo o carro chefe das conversas, inteligente, capaz, perspicaz, verdadeira enciclopédia ambulante da memória de casos e causos da cidade. Para início de conversa foi ele, o Alfredão, que me indicou para o primeiro emprego em Belo Horizonte, numa importante empresa de planejamento agropecuário e paisagismo, que cuidava dos jardins da cidade, do gramado do Mineirão e do belíssimo paisagismo da Refinaria Gabriel Passos.  Na praça, ou jardim,  se assentavam  de um lado os nativos tradicionais, Abílio Ticle- relator do caso do carroceiro Guarino, Anizinho, meu mano, Fernando Avelar, Jorge e Toninho Chalfun, Olímpio Andrade, Chico Rodarte, Marcio Andrade, Chiquitão, Caio, e outros de saudosa memória. Nos outros bancos ao lado se concentravam os que tinham raízes na Esal/Ufla, como o Lazinho, Afonso, Dalto, Evandro, Marcelão, Jander e também os visitantes, ávidos por notícias “fresquinhas” da cidade. Recentemente, um de nossos colegas, o Dico, que veio de Sorocaba, sentiu-se mal, ali mesmo, no banco do jardim e ao lado dos amigos. Foi socorrido e levado ao hospital, mas infelizmente não resistiu, causando-nos a todos os presentes e à comunidade lavrense verdadeira comoção, grande pesar.  Mas, além dos visitantes de outros estados e regiões, havia também, ali na confraria, a turma de visitantes de Brasília, o Zé Marcio-Tenório, seu irmão Cláudio, Sebastião Jander, Paulinho V.O., Silvani, Ednaldo Mesquita e outros, além deste menino das Lavras, mesmo que raramente, mas, ainda assim, quando ali passava por uns dez ou vinte minutos, tomava conhecimento de todas as “novidades” da cidade. Muitas delas já foram aqui contadas, mas a maioria já está cadastrada para publicação em crônicas. Havia ainda, outro personagem, protagonista daquela confraria, hors concur, o saudoso Renato Libeck, fotógrafo profissional que tudo registrava com a maior alegria e também ouvia os causos dos mestres das narrativas, Alfredão, Ticle e outros que se sobressaíam na arte de contar casos engraçados dos Campos do Arraial de Sant´Anna das Lavras do Funil. Dali, um pouco à frente a quase tricentenária Igreja do Rosário, inaugurada em 1754, tudo ouvia e via. Suas paredes foram e ainda são testemunhas e o sonho de todo historiador ou simples escriba de crônicas narrativas é que elas, a que tudo assistiram e ouviram, pudessem nos contar um pouquinho do passado, pelo menos as histórias mais suaves, sem deixar constrangida a Senhora de Sant´Anna.

Mas, voltando às carroças, havia ainda, naquela primeira metade do século passado, as charretes para transporte de passageiros. Eram mais macias, com pneus de borracha e dotadas de pequenas carrocerias que serviam para o transporte de cargas leves. Eram muito utilizadas pelos leiteiros que vinham das fazendas mais próximas e abasteciam a cidade com seus latões de 50 litros. O leite era vendido de litro em litro, medido à vista do freguês, ou então colocado em garrafas de segunda mão ou pequenos vasilhames de cozinha que eram deixados, de espera, no portão ou na janela das casas. Dentre os leiteiros mais tradicionais da parte alta da cidade havia o Sr Joel que coletava o leite nas fazendas da região do ribeirão Santa Cruz e antigo campo de aviação, distribuindo-o do Batalhão até as ruas do túnel, Otacílio Negrão e Melo Viana, na atual Praça do Trabalhador. Dali para baixo, até a matriz, era a zona comercial do Sr Juquinha Leiteiro, que com sua charrete puxada por um burro baio, coletava o leite na região do Gato Preto.  Havia ainda outro, o Sr Messias leiteiro, que servia apenas aos bairros São Vicente e Jardim Glória que, até os anos 70/80 era esparsamente povoado e onde só existia uma estrada carroçável, passando ao lado da imensa chácara do Cel. Juventino Dias, onde hoje é a avenida de mesmo nome.

Mas, tudo isso foi até os anos 60/70, pois a partir de então entraram os veículos motorizados já fabricados no país. Com a expansão da indústria automobilística, iniciada por Jk no final dos anos 50, as carroças e charretes foram perdendo espaço para os fuscas/VW, caminhonetes e caminhõezinhos ¾, principalmente das marcas Chevrolet e Ford. Então as charretes e carroças de tração animal desapareceram a partir dos anos de 1970? Não, pois recentemente parei o meu SUV, saltei e fiz essa linda foto de dona Severina, catadora de lixo reciclável, em pleno centro de Brasília, a capital modernista traçada para ser transitada por veículos automotores em velocidade.

 
A singeleza de dona Severina, com sua carroça em pleno centro da capital federal, catando lixo reciclável. Confesso que me emocionei ao lembra-me das carroças e charretes de entregadores de mercadoria na minha cidade natal, onde passei a infância e a juventude. 
Foto do autor, 2012

E por que estamos falando de carroças e charretes, 60 ou 70 anos depois? É que hoje, em pleno fevereiro de 2021, as redes sociais publicaram uma foto inusitada, de um senhor de 90 anos de idade, tomando a vacina contra o coronavirus, tendo dirigido sua própria charrete até o drive-thru da prefeitura da cidade de Piracanjuba/GO. O Sr. Juarez Barbosa, tal qual o Tatá, Sinésio, Guarino, Joel, Messias e Juquinha do Gato Preto e ainda a dona Severina, de Brasília, passou a vida toda ao lado de seus cavalos, carroças e charretes. Assim, é natural que ele ainda hoje, em avançada idade, sinta prazer em usufruir de seu próprio meio de transporte com um cavalo mais que adestrado.

 O Sr Juarez Barbosa, de 90 anos, adestrador de cavalos e agora aposentado, arreou seu alazão na charrete e foi tomar a vacina contra o coronavirus, no drive-thru, na pequena cidade de Piracanjuba/GO
Foto: Prefeitura de Piracanjuba- 12/02/2021

Não sei por que, mas, a foto estampada recentemente nas redes sociais, com o nonagenário Sr Juarez, usando chapéu de vaqueiro, esbanjando saúde e disposição para pilotar sua charrete até um drive-thru, fez-me lembrar dos tempos das carroças e charretes de minha cidade natal, naqueles idos de 1950/60.  Foi como um gatilho que destravou o subconsciente e dali brotaram as lembranças, as imagens do lendário Tatá carroceiro que fazia frete na cidade inteira. Andava com sua carroça tracionada por dois ou três vigorosos burros por toda parte, especialmente pelos lados do matadouro. A quantidade dos animais dependia do peso da carga e do itinerário, com poucas ou muitas ladeiras fortes ou mais suaves. Ali, com certeza para descer até os fundos do córrego do matadouro e depois voltar com carga pesada, era preciso ajoujar os três burrões de tiro, como dizem os franceses (tirer = puxar). Mas, ao passar pelos lados da igreja do Rosário, em direção à Rua Firmino Sales e Chacrinha, deixava as crianças, três ou quatro meninas que residiam ali nas redondezas da igreja, se aboletar de qualquer jeito na carroça. Os pais das meninas ficavam desesperados, com medo da perigosa carroça que descia rua abaixo. Agora, vendo a foto do Tatá tocando uma flauta, em pura encenação para o amigo Paulo dos Pianos, lembra-nos as cenas da história do flautista de Hamelim que, também tocando uma flauta, encantou as crianças e as levou, enfeitiçando-as e aprisionando-as numa caverna... Mas nada disso, Tatá gostava das crianças e quando nos via soltava o seu característico “pruru-uuuhhh... tatá” e estalava o chicote para comandar os burros que tracionavam a carroça. Dava um sorriso matreiro, de poucos dentes, só para nos agradar e retribuíamos com pedidos de novos pruru-uuuh. Só não gostava quando ouvia alguém provoca-lo com aquele maldoso versinho de pura cacofonia: "fui na casa do Tatá, mas o Tatá num tava lá; a mulher do Tatá tava e é mesmo que o Tatá tá.". Se ele ouvisse, ficava bravo e era hora da meninada correr, tal qual corríamos do Sr Juvenal depois de provocá-lo com o chiste: “Segura Sr Juvenal... Tá seguro dona Zica”.... Essa era a cidade, o paraíso do Menino das Lavras que até no pseudônimo carrega a alegria da infância.

Em outubro de 2019 , depois de lançar um desafio para postagem de fotos desse grande e folclórico personagem, o Tatá carroceiro. De imediato recebemos duas fotos do personagem, visitando, com sua esposa, o stand da loja Paulo dos Pianos, na Exposição Agropecuária de Lavras dos anos 70. Também recebemos do saudoso colecionador Renato Libeck, que nos deixou enlutados há poucos dias, algumas fotos do carroceiro Sinésio. Ambos, Tatá e Sinésio, marcaram gerações nas ruas da cidade. Eram conhecidos de todos, sempre prestativos, deixando indeléveis memórias em nossas almas. E hoje, ao aparecer na mídia a foto da charrete no drive- thru, com o simpático idoso de 90 anos tomando vacina contra o coronavirus, nos lembramos com saudade das figuras que povoaram a nossa infância, nos tempos em que ainda predominavam o transporte nesses veículos de tração animal. Surpreendente, sessenta, quase setenta anos depois, ainda nos depararmos com cenas tão marcantes de nosso passado. A alma agradece, respeitosamente, aqueles que um dia nos alegraram e a outros que ainda hoje são capazes de usar esses veículos que eles mesmos constroem e treinam os animais para traciona-los, e com maestria, a despeito da longeva idade.  Saúde para o senhor Juarez que já tomou sua primeira dose da coronavac. 

Brasília, 16 de fevereiro de 2021

                     Paulo das Lavras


 Tatá, o famoso carroceiro, fazendo pose ao piano no stand da loja Paulo dos Pianos, na Exposição Agropecuária de Lavras dos anos 70. 
Foto: arquivos de Marcelo Marinho Alves


 Tatá  e sua esposa, violino e flauta, na Expoagro de Lavras dos anos 70 
Foto: arquivos de Marcelo Marinho Alves

 

 Sinésio de Souza e seu filho, nos tempos de sua antiga carroça com roda de madeira e aro de ferro, esperando carga na Estação da Oeste, em Lavras 
 Foto: arquivos de Renato Libeck – a data gravada na foto não corresponde à da tomada (sic)  


 Sinésio, com carroça mais moderna para uso em ruas calçadas. Pneus de borracha e molas mais reforçadas, transitando em frete ao muro do cemitério paroquial de Lavras 
Foto: arquivos de Renato Libeck – a data gravada na foto não corresponde à da tomada (sic) 




 
Os “enormes” caminhões da marca International- ano 1946, pertencentes à construtora SOTECO. Caminhões como esses não enfrentavam os atoleiros do morro da Estação. Coisa somente para carroças puxadas por fortes parelhas de burros e ainda assim atolavam na cava, ao lado da linha do bonde. 
Foto: Paulo Oliveira Alves. Primórdios do Automobilismo - 2ª edição, 2005- pg 55


 Os quatro bancos da praça,  privativos da Confraria, ficam do lado de cá da rua, de costas para o imponente Clube de Lavras e o ponto de taxi. Segundo o historiador Renato Libeck, que há tempos me presenteou com esta foto, o carro preto em primeiro plano é o luxuoso Ford Mercury,  ano 1951, que pertenceu a meu avô, Anízio Alves de Abreu (Anízio Gaspar) que o vendeu a um taxista, amigo de Renato. Era o nosso carro preferido, até o ano de 1959, quando foi vendido e se tornou “carro de praça”. 
Foto: cortesia de Renato Libeck

 

 
A facha principal da tricentenária Igreja do Rosário é a vista principal dos bancos da Confraria da Praça. Estão localizados logo à esquerda, do lado de cá da rua.
Foto  do autor - 2019


 Os quatro bancos cativos da Confraria da Praça, o jardim de Lavras.
Foto: arquivos de Renato Libeck


 O presidente da Confraria da Praça, do jardim de Lavras, Alfredão, contando as “novidades” para Dan Gammon e o Menino das Lavras, sobre o Sesquicentenário do Instituto Gmmon 
Foto do autor - Lavras, IPG agosto 2019


 
Renato Libeck, grande historiador e amigo que nos deixou recentemente. A seu lado os amigos Fernando Octávio de Avellar (lançando seu livro sobre a Olímpica), Marcus Paulus e Giovane Nemeth-Torres. Time de primeira linha de historiadores de Lavras. A cidade perdeu um dos maiores expoentes da história e cultura da comunidade. 
Foto: Renato Libeck- Casa da Cultura, Lavras 01/02/2017 


 Membros da da Confraria da Praça, do jardim de Lavras, Anizinho, Toninho, Ronaldo e Maurício, confabulando assuntos do arco da velha, na sede da Confraria. 
Foto: Coleção Renato Libeck- Lavras 13/02/2017 


 
Prof. Bernad Bartels, da Esal, no banco da praça de Lavras. Trazia suas próprias noticias, no jornal e certamente as repassava ao jovem elegantemente trajado, conforme mandava o costume de então. Havia uma lei municipal, de 1919, obrigando o uso de paletó para se frequentar a praça, o jardim da cidade. 
Foto: arquivos de Renato Libeck 


 Fanfulla, o jornal da colônia italiana no Brasil, comprado pelo carroceiro Guarino, de Lavras. Valeu-se de seu elevado preço para justificar aumento do frete de cargas em sua carroça. Vale lembrar que Fanfulla era o nome do Vapor que transportava os imigrantes italianos, do porto de Gênova para o porto de Santos, durante muitos anos. Assim, o nome do jornal seria uma saudosa refencia à distante pátria mãe. 
Foto: internet



 







 






 






 





 



 







terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

O bullying do Zizi é boy e as armadilhas dos idiomas

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Estudar idiomas nos anos 50 do século passado não era fácil. Não existia internet e tampouco outras facilidades menos tecnológicas como um vídeo-cassete para auxiliar o aprendizado. Bem verdade que o enorme e possante rádio RCA-Victor, existente em minha casa, podia sintonizar a Rádio BBC de Londres, Rádio France Internationale, Deutsche Welle (Alemanha), Rádio Canadá, Rádio Moscou e até mesmo a Rádio Pequim e a Belgrano de Buenos Aires. Menino curioso ouvia a todas elas, à noite, em ondas curtas de 25 a 33 metros e era fascinante aprender sobre aqueles países, sua cultura, gente, escolas, riquezas naturais, tudo enfim. Melhor ainda, falado em português, dirigido especialmente aos brasileiros, exceção apenas para a Radio Belgrano, que sintonizávamos diretamente em sua programação em espanhol, de forte sotaque portenho. Mas, a preferida mesmo era outra e não mencionada ainda, a rádio The Voice of America – V.O. A - A Voz da América, que transmitia diretamente de Washington-DC, com locutores brasileiros, muito simpáticos e que sempre recebiam em seus estúdios os brasileiros que por lá passavam. Certa vez ouvi a calorosa recepção a duas brasileiras, da minha cidade natal, as Irmãs Marcelina e outra colega do Colégio de Lourdes, nossas conhecidas. Melhor ainda foi ouvir a saudação da Irmã Marcelina a seus alunos do colégio e também para o “Paulinho, estudioso do idioma inglês”, pois sabia que eu era assíduo ouvinte da “Vi, Ou, Ei” (V.O. A), desde o instante inicial das vinhetas:” This is the Voice of America. The news come to you from United States of America... Now come the news…”. Foi uma surpresa e tanto e dias depois fui ao colégio para falar com a freira e agradecer a distinção recebida.

Essas rádios internacionais que produziam programas de meia hora, em português para os brasileiros, funcionavam como agências propagadoras d8 um curso de aprendizado de inglês básico, em áudio e material escrito, que era enviado gratuitamente. Era o curso John and Mary. Terminada a transmissão em português e o curso de inglês, passava-se à programação normal da radio emissora em seu idioma original, hora em que então, podíamos testar para valer se entendíamos, ou não, as notícias em inglês. A Voz da América e também a BBC de Londres foram os meus professores da prática oral do inglês. Mais tarde, surgiu na minha cidade um missionário do Peace Corps, Bob, de apenas 19 anos. Sua primeira missão foi ensinar inglês a quem quisesse e gratuitamente, à noite, em salas do Colégio Kemper, sob o patrocínio do Instituto Presbiteriano Gammon. Assim pude praticar o inglês durante anos com estrangeiros, além das aulas normais do colégio, com seis anos de inglês e sete de francês e apenas um ano de Espanhol. As aulas de francês já se iniciavam na primeira série do ginásio e o inglês somente a partir do segundo ano. Durante os quatro anos do ginásio ainda estudamos Latim, língua mater do português.

Pois bem, inciamos os estudos de inglês na segunda série do curso ginasial, no Seminário de Itaúna, dirigido por padres holandeses. Os holandeses, nossos professores, falavam o inglês britânico, cuja pronuncia se diferencia bastante dos americanos. Ali fiquei apenas um ano, mas o suficiente para “pegar” o sotaque britânico na pronuncia das palavras. Chegando à Lavras, voltei para o Colégio Aparecida, de padres alemães. O sotaque gutural alemão influenciava a pronúncia do inglês, levando-a para o também gutural norte americano, de sotaque mais metálico, menos fluido que o fleumático som dos britânicos. Estava formada a confusão mental para o menino aprendiz do idioma de Shakespeare. Nosso professor de inglês, Canísio Ignácio Lunkes, de origem alemã, falava o inglês com sotaque metálico, tal qual os americanos. Assim, a frase “This is a boy and that is a girl”… era pronunciada como “tis is ê boy and det is a girl…”, diferentemente do que o menino havia aprendido com os professores holandeses. Não demorou e o menino foi chamado a repetir aquela frase. Bastou dizer à maneira britânica: “ziz is é boy and zet. is é guerl...” e a sala veio abaixo com gargalhadas sem fim, até mesmo do professor ao qual não restou alternativa senão também entrar na brincadeira. Naquele instante ficou consolidado o apelido do menino: zizi-é-boy! Caramba, carreguei esse apelido por todo o tempo de estudante naquele colégio. E pior, o maior propagador do apelido foi um amigo, colega, vizinho de rua que, bem mais tarde foi meu aluno no quarto ano de agronomia (teve que atrasar os estudos para trabalhar) e no primeiro dia de aula espalhou o apelido do “Zizi é boy...”.

Aprendi a lição com esse baita “mico”, mas também serviu para aumentar a minha acuidade, a capacidade de percepção de diferentes sotaques, até mesmo ouvindo as rádios BBC e Voz da América. Predominou a pronúncia americana que, mais tarde foi aperfeiçoada quando lá trabalhei e certa vez quem gargalhou bastante fui eu, pois um americano, professor da universidade onde também trabalhava, em Michigan, perguntou-me se eu era texano, pois falava o inglês bem nasalado, com sotaque daquele estado. Gargalhando respondi-lhe, “No Sir”, tenho sinusite e por isso falo nasalado, mas de qualquer forma obrigado pelo elogio. Assim, de um choque de culturas diferentes, britânica e americana, e ainda com o pesado bullying (naquele tempo nem existia essa expressão/conotação, pois sabíamos nos defender das gozações próprias da infância) o menino pôde desenvolver um senso crítico no aprendizado do idioma inglês. Mas e hoje? Ah..., hoje, não se tem mais as dificuldades de antigamente. Como saber a pronúncia exata ou significado de uma expressão idiomática? Não havia com quem se praticar e muito menos o meios eletrônicos hoje disponíveis.  Com a facilidade da internet, com redes sociais no mundo inteiro, chamadas de vídeo e ainda os cursos à distância, vejo meus netos, de 11 e 12 anos, falarem inglês fluentemente e fazendo exames oficiais de Cambridge, testando a proficiência para então lá se matricularem. É mesmo de se invejar. Acho até que vou aprender o mandarim ou russo...

Viva a tecnologia aplicada ao ensino. Não tenho saudade nenhuma dos chiados do enorme rádio receptor, de ondas curtas, dos anos de 1950 e 60, com antena especial instalada bem alta e fora da casa, em dois mastros e direcionadas para norte. Hoje basta um tablet, ou, melhor ainda um telefone celular com som e imagem instantâneos conectados pela Internet a qualquer parte do mundo.

 

Brasília, 09 de fevereiro de 2021

Paulo das Lavras 


 
O Menino das Lavras, apelidado no colégio de “Zizi é boy”, pegou logo o sotaque “americano” dos professores, padres alemães de Lavras e também dos missionários do Peace Corps que ali atuavam. Nos EUA , quando lá trabalhou na Michigan State University, era confundido com texano, pois como os piracicabanos e moradores da região de Americana/Campinas (região de influência dos imigrantes americanos do sul dos EUA, os mesmos que imigraram para Lavras e ali fundaram o Instituto Gammon), puxava o R e nasalava a pronúncia. 
Foto do autor: 1976 - Staten Island– NY (ao fundo as Torres Gêmeas, explodidas criminosamente em 2001)


  


Colorizada by Rogério Salgado