sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Diante do mar – a partida e a saudade que fica

 

 

Guardo as memórias que me trazem riso,

 as pessoas que tocaram a minha alma e

 que, de alguma forma, me mudaram para melhor.

 Guardo também a infância toda tingida de giz.

Tinha jeito de arco-íris a minha”

Caio Fernando de Abreu


Por que quando toca o sino de uma igreja ou o apito de um trem, de um navio, ou ainda a decolagem de um avião, os sons e as cenas nos remetem às lembranças de despedidas? Por que muitas das vezes choramos diante de cenas assim, mesmo depois de tanto tempo do acontecido? Lembro-me que não consegui conter as lágrimas ao ouvir os apitos de um navio zarpando do porto de Nova York, com a bandeira brasileira tremulando ao vento. Pedi ao motorista que parasse o carro e sozinho fiquei a contemplar, extasiado, a cena como se fosse a oitava maravilha do mundo. E isso foi quando já era adulto, um jovem “yuppie” que por lá trabalhava periodicamente. Tudo bem, aí teria a explicação do forte fator da saudade da pátria distante por tanto tempo. Puro ataque de banzo, nostalgia, que é a saudade dolorida da pátria. Compreensível, “rever” e imaginar ali, diante daquele símbolo nacional, a pátria amada, a família, os amigos, os lugares onde vivi em plena harmonia com a felicidade na alma. Por isso jamais me envergonharia daquelas lágrimas solitárias diante dos sonoros e tristes apitos do navio e principalmente o tremular do auriverde pendão que, tantas vezes, nos perfilamos diante dele e cantamos o Hino Nacional. Não à toa sempre mantive uma bandeirinha verde-amarela sobre a mesa de meu escritório, naquele país, contrastando com milhares de bandeiras norte-americanas espalhadas de porta em porta na Wall Street. E ali, naquela cidade, uma única bandeira auriverde valia mais em meu coração que milhares daquelas em vermelho e azul, hasteadas em várias avenidas daquela cosmopolita cidade.

 Por outro lado, em matéria de apito de despedida, vivenciei ainda criança, um duro episódio que deixou marcas indeléveis na alma: o apito do trem! A partida do menino de 12 anos que, por conta própria decidira ir para o seminário, o empolgava. Empolgava? Sim, até chegar o momento da despedida com os estridentes apitos da maria-fumaça que esbaforia seus vapores de água quente saindo das caldeiras, branquinhos, jogados para o lado sobre os trilhos e a fumaça negra para o alto, de sua chaminé fumegante. A longa viagem de 16 horas foi um misto de curiosidade pelo “novo”, contrastando com a angústia, ouvindo a noite inteira o contínuo tralalaco-traco das rodas de ferro sobre os trilhos, como a provocar-me doloridas lágrimas por ter deixado para trás os entes queridos. Só então caiu a ficha do menino que partiu e deixou tudo e todos. Ah..., se o menino soubesse a dor da despedida e a saudade incontida por um ano inteiro, em tão distante lugar, ele não teria se decidido a partir com tão pouca idade.

            Mais tarde, já na adolescência o menino gostava de ouvir musicas, e uma em especial, da qual tomei emprestado seu nome para título desta crônica e que pode ser ouvida no link indicado ao final. E essa música lembra a saudade, a dor da despedida. E essa dor dolorida de despedida é como aquela do protagonista de uma história de amor que, em desespero assistiu a desatracação do navio que zarpou levando a amada, deixando o porto com aqueles característicos apitos de sonidos tristes, de dolorido adeus. Lágrimas corriam, o coração apertava em estranha sensação de perda, parecendo que nunca mais voltaria a vê-la, conta-nos o escritor em seu romance. E assim segue a vida, cheia de adeus, repleta de saudades sem fim. Mas, afinal o que é a saudade? Sei, não! Só sei que muitos poetas tentaram defini-la, mas nunca se chegou a uma definição completa. Saudade é o amor que fica, dizem alguns, ou melhor, disse o médico oncologista, Dr. Rogério Brandão, de Pernambuco, depois de ouvir as doces palavras de despedida de uma menininha, um anjo, atacada pelo câncer e já em estado terminal. Saudade é o amor que fica..., disse ele, com lágrimas nos olhos ao relembrar aquele anjinho que partiu para sempre, segurando suas mãos, ali no leito. E é mesmo! Saudade é o amor que fica!

 Outros acham que é infeliz quem vive sem saudade, sem lembranças de amor, de amizade e também das coisas que fez ou deixou de fazer. Clarice Lispector romantizou a saudade e creio ter sido a que mais completamente a descreveu. A saudade é assim nas palavras da poetiza e romancista:

“... Sinto saudades de tudo que marcou a minha vida. Quando vejo retratos, quando sinto cheiros, quando escuto uma voz, quando me lembro do passado, eu sinto saudades... Sinto saudades dos amigos que nunca mais vi, de pessoas com quem não mais falei ou cruzei...

 ... Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito! Daqueles que não tiveram como me dizer adeus;

... Sinto saudades das coisas que vivi e das que deixei passar, sem curtir na totalidade. Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o que... não sei onde... para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem onde perdi...”

Mas, o que é saudade em outros idiomas? Simplesmente não existe tradução dessa palavra mágica para nenhuma outra língua. No inglês se diz: I miss you, sinto sua falta. No francês Vous me manquez, você me faz falta. Só mesmo no nosso idioma existe essa expressão que sintetiza todo o sentimento da alma, da falta que sentimos das coisas e das pessoas queridas, com aquele aperto no peito. Sentir saudades é sinal de que estamos vivos. Viva a saudade, boa, gostosa, que nos faz viver, reviver! Sinto saudades da minha infância, do meu primeiro amor, do segundo, do terceiro, do penúltimo e daqueles que ainda vou ter, disse outro poeta. E prossegue na lista saudosa: Sinto saudades de quem me deixou e de quem eu deixei! De quem disse que viria e nem apareceu... De quem apareceu correndo, sem me conhecer direito... De quem nunca vou ter a oportunidade de conhecer. Sinto saudades dos que se foram e de quem não me despedi direito! ...De gente que passou na calçada contrária da minha vida e que só enxerguei de vislumbre! Bem verdade, os poetas são verdadeiros artistas em trabalhar as palavras para expressarem sentimentos. Mas, posso ainda acrescentar que sinto saudades até dos livros que li e que me fizeram viajar pelo mundo inteiro, da terra dos Faraós, às mais distantes, da Babilônia, Grécia, das Arábias e “da... Zoropa”! Sinto saudades das musicas da Jovem Guarda e dos Embalos de Sábado à Noite que vivenciei na terra do Tio Sam e que me fizeram sonhar e ainda hoje as lembro.  E de todas essas saudades a mais dolorida é aquela das coisas que deixei passar..., sem curtir, sem marcar, sem apreciar como deveria. Ah..., por que não estudei música, idiomas como o alemão, o italiano? Por que não assisti a todos os concertos, recitais, corais e desfiles de fanfarras colegiais de minha cidade, com suas lindas balizas de roupas coloridas e enfeitadas, como as acrobáticas cheerleaders que via nos Estados Unidos anos depois? Ah..., ia me esquecendo, sinto uma saudade danada do trabalho, daquele compromisso diário, de terno e gravata e constantes viagens pelo país e exterior. Trabalho?  Sim do trabalho, mas..., é a chamada “saudade aliviada”, aquela em que você sente saudades apenas do ambiente, das pessoas, mas fica aliviado da “carga” de responsabilidade. Assim é a “saudade aliviada”.

Mas, os poetas existem e aí estão para cantar o amor, as boas coisas da vida. E a saudade o que é senão o amor que fica?  E sabe de uma coisa mais que certa? É a afirmação do poeta Rubem Alves, que é um pouco lavrense (sua mãe nasceu em Lavras, onde ele morou por algum tempo). Ele define o poeta como um “apaixonado pela vida”. Você já viu algum poeta deixar de cantar e exaltar a vida? Costumo dizer que o bom poeta, escritor, contista ou seja lá que gênero literário tenha, ele não representa, não inventa. Ele VIVE a história, o poema, o conto ou a crônica. Qualquer assunto é transformado, por palavras, em uma trama ou enredo agradável... Por quê? Porque ele está falando de sua paixão, a VIDA e quer compartilhar essa maravilha com seus leitores. Os poetas desejam voltar às suas origens. É lá que mora a verdade que os adultos esqueceram. Fogem da loucura da vida adulta. Buscam reencontrar a simplicidade da infância. Para se curar da adultite é preciso tomar chá de infância, virar criança de novo..., completa o poeta e filósofo Rubem Alves.

 E esses mesmos sábios poetas que exaltam a vida dizem, também, que a nossa saudade é maior do que em todo o mundo, porque é expressa em português, sem tradução para outros idiomas. Segundo esses especialistas, costuma-se usar sempre a língua pátria, espontaneamente..., quando estamos desesperados, seja para contar dinheiro, fazer amor e declarar sentimentos fortes dentre outras situações de emergência. E isso, expressar as fortes emoções no idioma pátrio, é muito comum e não importa em que lugar do mundo estejamos. Sei muito bem, já passei por constrangimentos de se exclamar em português quando deveria falar no idioma local, do interlocutor. Por isso e muito mais é que cheguei à conclusão que tenho muitas saudades e o consolo de que sentir saudades é sinal de que estamos vivos. Viva a saudade boa, gostosa, que nos faz viver, sonhar. E enquanto houver sonhos, haverá Vida! E para encerrar, os versos do poeta Bastos Tigre:

Ter saudade é viver passadas vidas,

Percorrendo paragens preferidas,

Ouvindo vozes que se têm de cor.

Sonha-se… E em sonho, como por encanto,

A dor que nos doeu já não dói tanto,

Gozo que foi é gozo inda maior.

Têm razão os poetas, pois a saudade é mesmo a herança dos que abriram o coração para amar... No entanto, outros dizem que saudade mata. Não sei se mata, mas que dói, dói..., e muito, mas é uma dor gostosa de viver. Dizem os especialistas que a saudade em vez de matar, pode trazer a cura, fazendo a vida valer a pena. A saudade pode se transformar em fonte de cura que faz a vida valer a pena! E, vale!

 

Brasília, 19/02/2021

                             (mês da pandemia recrudescida, fazendo aumentar a saudade dos entes queridos)

  Paulo das Lavras


 
Ouvir o apito do navio e assistir à sua partida é uma das mais dolorosas despedidas. O som dos apitos, longos e lúgubres, a imensidão do mar, são fatores que contribuem para  o aperto no coração e tristeza geral por ver o ente querido partir. Na foto, um cruzeiro para turistas deixa o porto de Santos. Parentes e amigos alugam pequenos barcos que acompanham a saída do navio até a barra do porto para um ultimo adeus, um aceno de despedida. 
Foto: internet

 

 O menino experimentou, aos 12 anos, no distante seminário, as dores da despedida e da saudade de casa 
Foto: arquivos do Seminário e Colégio N.S. de Fátima- Itaúna-MG- 1958


 Nos anos 80 levei as filhinhas para um passeio de trem, na mesma Maria-Fumaça que um dia levou-me para o distante Seminário, praticamente com a mesma idade que elas então tinham. Embarquei-as  em S.J.Del Rei e fui de carro espera-las em Tiradentes.  Não pude evitar aquele mesmo sentimento de aperto no peito, quando o trem apitou várias vezes e partiu levando-as, mesmo sabendo  que dali a meia hora seriam resgatadas  na estação seguinte. 
Foto do autor, Tiradentes-MG, anos 80


 
Bem mais tarde o menino pôde se vingar das dores da despedida e saudades que a vida lhe pregou na viagem para o Seminário. Agora “viajou” de São Lourenço para Soledade, num trem turístico, mas não sem antes ir à cabine do maquinista (olha a alegria, na foto) e combinar com ele: ... “quero ouvir apitos, longos e estridentes a cada curva da estrada”. E assim foi feito para alegria do menino sessentão que, a cada apito sorria e dizia para si... “pode apitar a vontade, pois agora quem dá adeus a quem fica sou eu”. E acenei para cada casinha, cada pedestre que via no caminho. Pura alegria... e o poeta Caio Fernando estava certo, tal qual aparece no inicio desta crônica: era mesmo a minha infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha. 
Foto do autor, São Lourenço-MG,  2014

... e a saudade existe até mesmo das coisas que não mais existem, como esses dois prédios gêmeos 
explodidos por terroristas, em 2001 
Foto do autor, N.Y - 1978

 




 
Lindas, as palavras do autor da foto assinada....(Luiz Felício): 
 “Sabe-se que diante do mar, todos os caminhos levam ao silêncio...” 
Assim também se expressou o cantor Barros de Alencar, com sua bela versão de uma canção francesa:  “Diante do mar”   (1969 - La plage aux romantiques - Pascal Danel), que pode ser ouvida no link abaixo:



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