sábado, 29 de abril de 2023

PORQUE GOSTO DE SÃO PAULO

Crônica de um menino mineiro, das Lavras do Funil, dependente        atávico da cultura, ciência e tecnologia da pauliceia. Escrita a bordo o Boeing 737-300 PP-VOX   (VARIG),  decolando  de  Guarulhos rumo a  Brasília  em  06/12/96.  Neste ano São Paulo comemorou 442 anos. Parabéns   para   os  paulistas   em  especial  para  duas         paulistinhas, gêmeas,   minhas   filhas,    que   hoje    moram   no planalto 



Minas Gerais e sua gente estão ligadas a São Paulo não apenas pela extensa linha de fronteira ou pela rodovia BR-381, que une as duas capitais, mas sobretudo pela herança cultural e econômica. Foram os bandeirantes Fernão Dias Paes Leme, Diogo de Fonseca, Borba Gato e outros tantos pioneiros que iniciaram a verdadeira colonização dos sertões das Gerais. Embrenhando por rios e florestas, vencendo as íngremes montanhas, em busca do metal reluzente e outras pedras preciosas, plantaram a cada 20 ou 30 km um novo povoado. Essa era a distância máxima que se conseguia vencer em um dia, a pé e com a tropa de carga de víveres, armas, sementes e ferramentas. Foi assim que surgiu a progressista cidade de Lavras, hoje verdadeiro polo educacional. O vilarejo nasceu como “Arraial dos Campos de Sant´Anna das Lavras do Funil”, no início do século XVIII (1712/20), rico em veios e lavras de ouro, quase às margens do Rio Grande, a 380 km do Planalto de Piratininga, berço dos bandeirantes. Foi ali, em Lavras, que meu penta avô, Manoel da Costa Vale, imigrante português, nascido na região da cidade do Porto, se estabeleceu  em 1750, vindo de Guaratinguetá-SP, aonde chegou por volta de 1720. Passado o ciclo do ouro, iniciou-se, no século XIX, o ciclo do café. Mais uma vez a presença dos paulistas foi marcante na cultura e na economia das Gerais. Os coronéis e os barões do café do Vale do Paraíba imigraram para Minas e lá plantaram raízes culturais e do café que lhe garantiram prosperidade. 


Nas Lavras, fundada e colonizada pelos paulistas, nasceu o menino que foi criado à sombra dos cafezais, cavalgando mangalargas marchadores pelas fazendas de café e leite, tradição herdada dos desbravadores e indutores do desenvolvimento daquelas região do sul de Minas. O menino cresceu ouvindo “causos” e estórias sobre a cidade grande de São Paulo, para onde se dirigiam os parentes fazendeiros para vender café, queijo, manteiga e comprar “novidades”, principalmente automóveis (Buick, Mercury) e caminhonetes (GMC, Chevrolet, Ford) e até mesmo as primeiras televisões no final da década de 1950, quando foram lançadas.

 

            Terminado o ciclo do café, os paulistas invadiram o sul de Minas com suas possantes rádios emissoras que, nas décadas de 1950 e 60, faziam muito sucesso com os programas de música caipira (hoje, sofisticadamente chamadas de “Country Music”) das rádios Bandeirantes, Tupi e Record (esta se situava na Rua das Palmeiras, no centro da cidade, conforme anúncio para atrair o público para seu auditório). E tome lavagem cerebral. Os paulistas vendiam de tudo pelo rádio, como as pílulas De Lussen, Passa-já, Emulsão de Scott, cursos à distância do Instituto Universal Brasileiro e, naturalmente, os encantos da cidade grande, a Eldorado, o sonho de toda a gente interiorana.

 

            Em seguida surgiu a TV, e quem chegou primeiro? Em Lavras, foi a TV Tupi-canal 4, de São Paulo, em 1959. Havia uma única tevê, instalada na loja do Sr. Haical Haddad, em frente à majestosa igreja Matriz. Depois veio a TV Record com a Jovem Guarda de Erasmo e Roberto Carlos, Wanderléa, Roni Von, Roni Cord, que onda! Que festa de arromba para as cabecinhas feitas nas ondas do iê iê iê que vinham em preto e branco nas tardes de domingo diretamente dos auditórios paulistanos.

 

            Não havia como fugir da influência e fascínio de São Paulo. Se na infância os adultos povoavam as cabecinhas com os “causos” e estórias da metrópole, logo em seguida chegaram as rádios com seus programas interioranos e, por último, na adolescência do menino das Lavras, os “tremendões” da TV Record. No way... não tinha jeito...., São Paulo dominava completamente. Sua pujança econômica, com a Av. Paulista (a nossa Wall Street) sediando as grandes corporações empresariais, bancárias e industriais, o comércio, o MASP e o domínio cultural com suas apresentações de espetáculos. No way... Não tinha jeito, mesmo!

 

            Minha primeira visita a São Paulo foi no início da década de 1960, em trânsito para Londrina-PR. Aproveitei o pouco tempo da “escala técnica” aventurando um passeio, a pé, até o Vale do Anhangabaú, Viaduto do Chá,  Av. São João e só, mais não ousei. Gostei e prometi voltar. Depois, em 1963, por indicação de um respeitado líder religioso de Lavras, Pe. Miguel Moretti, passei uma semana num cursilho da C. J. C. - Comunidade de Jovens Cristãos, no Convento dos Freis Dominicanos, da Rua Cayubi, bairro das Perdizes. Nesse endereço, poucos anos depois, mais precisamente em novembro de 1969, os órgãos de repressão metralharam o guerrilheiro Carlos Marighela, um dos principais organizadores da resistência contra o regime militar. A hospedagem do menino, em sua segunda viagem, foi no CRUSP- Centro Residencial da USP, recém-inaugurado no Campus do Butantã, às margens do Tietê. Embora tenha apreciado e aprendido bastante nesse estágio de uma semana, a visita mais marcante foi quando o menino foi premiado por ter sido o melhor aluno da disciplina de Solos e Adubação, do curso de Agronomia da ESAL/UFLA. A premiação foi muito proveitosa, uma bolsa-estágio na Companhia Paulista de Adubos-COPAS, a maior e mais importante produtora de insumos agrícolas. Foram 30 dias de visitas à unidade industrial de fertilizantes e propriedades rurais de produção hortifrutigranjeira no cinturão verde da capital em Mogi das Cruzes, Suzano, Osasco, Taboão da Serra, e outros. Chamou a atenção do então jovem acadêmico, a diversidade de cultivos em reduzidas áreas de terras e o alto grau de tecnologia utilizada pelos paulistas, geralmente descendentes de japoneses. Para um mineiro acostumado às monoculturas de café, milho ou gado de leite em grandes fazendas, era um “espanto” se conseguir tanto, em tão pequenas áreas, o suficiente bastante para permitir a aquisição de carrões e mais, viagens de toda a família para visitar os parentes na longínqua terra do sol nascente a 20.000 km.

 

            Ainda nesse estágio visitamos também grandes fazendas de café, milho, cana e citros na região de Ribeirão Preto, Bebedouro e Colina, sempre acompanhados por técnicos experientes.  Assim o menino enriqueceu seus conhecimentos e habilidades técnicas, pois nunca vira antes tal escala de produção, quer na indústria ou na agricultura propriamente dita. Bem, mas nem só as técnicas agronômicas encantaram o menino. Levou de volta para a casa a paixão gostosa de uma meiga e jovem adolescente que, ainda hoje, a tem em boa reminiscência, pois morava no bairro de Santo Amaro, próximo ao autódromo de Interlagos onde se hospedara. Fabíola, era seu nome, mas o destino quis que ela partisse para sempre, prematuramente.

 

            No período de faculdade, nas Lavras do Funil, houve excursões técnicas pelo estado de São Paulo, no Instituto Butantã, onde se produziam vacinas, passando pelo Instituto Agronômico de Campinas-IAC, ESALQ-USP-Piracicaba, Ibec Research Institute - IRI/Matão com pesquisas de gado de corte e Fazenda Canchim/São Carlos. Tomar contato com os expoentes da pesquisa científica e os avanços da tecnologia agrícola naquelas instituições foi, sem dúvida alguma, um acréscimo considerável à sua bagagem técnico-científica. Embora o curso superior de Agronomia se localizasse em Minas, num centro de excelência, recebia, ainda, muita influência paulista, quer no treinamento pós-graduado dos professores ou mesmo através da bibliografia técnica, quase toda produzida pela ESALQ-USP e IAC-Campinas. Mas, ainda na faculdade, o garoto voltou a São Paulo para, em nome da turma de formandos, contratar uma orquestra para abrilhantar o baile de formatura. O chique naquela época, em Minas, era buscar orquestras famosas em São Paulo. Lá se foi o menino, “o jovem empresário de eventos”, a serviço dos colegas de faculdade. Contratamos uma boa orquestra, o conjunto Super Som T.A. que agradou bastante no baile de formatura da ESAL/UFLA, naquele ano de 1967. E assim se fechou o ciclo. Anos e anos de aculturação paulista através dos ancestrais, da família, rádio, TV e finalmente da academia com os estágios técnicos. Daí, a nota em epígrafe, referindo-se ao autor. Mas, ainda não é tudo.

 

            Recém-formado, onde trabalhar? Tendo sido selecionado por uma grande corporação multinacional do ramo de fertilizantes, com sede no cruzamento das Avenidas Ipiranga e São João, para trabalhar em marketing/vendas/extensão rural, recebeu, também, convite e indicação para trabalhar no ramo de planejamento agroflorestal e paisagismo, em outro local, na capital mineira, optou, por questão de perfil profissional, para as atividades de planejamento. Mas, mesmo nesse emprego nas Gerais, não tardou muito e, logo em seguida, aterrizava em Congonhas a bordo do Super Viscount da VASP, de prefixo PP-SRD, para executar sua primeira tarefa profissional na capital paulista. Inenarrável foi a emoção daquele menino dos rincões das alterosas contemplando, do alto, toda a grandiosidade e majestade da metrópole paulista. Ao retornar, no dia seguinte, e contemplando novamente da janela do avião aquele cenário grandioso do Tietê serpenteando o vale e o aglomerado de arranha-céus, sentiu uma ponta de orgulho profissional e pessoal, por ter obtido sucesso na missão que ali acabara de desempenhar. Tudo que fez, viveu e aprendeu tinha muito a ver com isso e agora, deixara ali o primeiro resultado, o primeiro produto de anos e anos de sonhos e dedicação aos estudos. Sentiu-se realizado. Mas, a vida profissional do menino que se tornara engenheiro estava apenas começando. Se por um lado era imensamente grato a seus pais que lhe propiciaram os estudos e aos mestres que lhe ensinaram, não podia deixar de ser grato aquela metrópole, aos paulistas, pelos laços atávicos e pela cultura técnico-científica ali adquirida ao longo de toda sua vida. E tudo isso passou-lhe pela cabeça ao sobrevoar a cidade numa doce e grata despedida.

 

            Na década de 1970, já como professor da Universidade Federal de Lavras, o menino-engenheiro empreendeu muitas viagens a São Paulo para equipar laboratórios, bibliotecas ou mesmo para visitas de intercâmbio na USP. Mais tarde frequentou o curso de pós-graduação de Engenharia Hidráulica e Saneamento, na Escola de Engenharia de São Carlos, da USP, com várias incursões nas estações de tratamento de águas e efluentes da cidade de São Paulo, no bairro de Pinheiros. De São Carlos trouxe, de volta à Minas, além do diploma de pós-graduação da USP, duas filhas que nasceram no mesmo dia, de um frio inverno que teve a noite mais longa do ano, segundo a manchete do jornal Folha de São Paulo, recortada e guardada como lembrança do maior presente que São Paulo lhe dera.

 

            Os laços com São Paulo não são apenas atávicos, culturais e científicos. Há sempre um enorme prazer em ali chegar, seja num voo panorâmico de helicóptero ou nos mais de 300 pousos e decolagens nos aeroportos de Guarulhos e de Congonhas para missões oficiais nas áreas da educação superior, pelo MEC e também na supervisão do exercício da profissão da Engenharia, Arquitetura e Agronomia, como Conselheiro Federal do CONFEA A passeio o prazer é igual e para quem pense o contrário, São Paulo é dos melhores lugares para uma semana de férias, pois ali estão os maiores museus culturais, casas de espetáculos, shoppings e exposições nacionais e internacionais. Em qualquer época do ano sempre haverá atrações para todos os gostos. No trabalho, pelas atávicas raízes culturais, o menino sente um gosto diferente, nunca uma obrigação, sempre um prazer renovado estar no meio da gente laboriosa, progressista e pioneira de quase 450 anos de história.

 

 São Paulo/Brasília, 06 de dezembro de 1996

     

Paulo das Lavras

                                    (publicada em 29/04/2023)



 São Paulo, Parque do Ibirapuera,  visto da janela do avião pousando em Congonhas 
Foto do autor – abril 2023


 Naquela gelada madrugada da mais longa noite de inverno, de 21 de junho de 1972, chegaram minhas lindas gêmeas. A manchete daquele dia, do jornal Folha de São Paulo, aí está, mas nem percebi o frio, tal o grau de aquecimento da alma. Meus laços com São Paulo aumentaram, tornando-se indeléveis.


 De São Paulo para Lavras com duas lindas gêmeas que lá nasceram. 
Foto do autor- Lavras 1974

 









 Terra-mãe de minhas filhas gêmeas. Sempre que ali vou, busco as tradições portuguesas 
Foto do autor- abril 2023


 Museu do Ipiranga – São Paulo 
Foto: Internet

 




 

 











 










                                                                                                                       

                                                                       

                                                                                                                                                                                                                   

                                                                   


sábado, 15 de abril de 2023

Um desastre no aeroporto de Confins

As notícias sobre acidentes aéreos provocam calafrios naqueles que têm o avião como meio de transporte e dele fazem uso constante. Mas, na noite de 20 de julho de 1989, assistindo ao noticiário de TV, não pude evitar o calafrio e grande estupefação ao ver as cenas do grave desastre com um DC-10/10 da United Airlines, em Sioux/Iowa, pois havia se passado apenas dois anos que eu sofrera o terceiro acidente aéreo, ocorrido no aeroporto de Confins em Belo Horizonte, no qual poderiam ter morrido todos os passageiros, caso tivesse havido explosão ao cair no solo. Os dois acidentes anteriores com o jovem executivo internacional aconteceram ali mesmo nos EUA. Nesse desastre de Sioux, que acabara de assistir, havia 296 pessoas a bordo, sendo 285 passageiros e 11 tripulantes. Destes, 111 morreram, 285 sobreviveram, dos quais 172 tiveram ferimentos e 113 saíram ilesas entre os escombros em chamas. Problemas hidráulicos causaram o desastre, tornando o avião incontrolável, sem flaps ailerons, profundores, leme de direção e freios auxiliares do trem de pouso. Diante da TV, com aquelas cenas chocantes, um filme tenebroso passou pela minha mente, relembrando os desastres aéreos pelos quais passei, especialmente um deles com as mesmas panes hidráulicas na aeronave, assim que decolou de Washington-DC. O outro acidente, que sofri nos EUA, foi em Las Vegas/Nevada. Neste, em voo de Chicago para São Francisco e quando já estávamos na metade da rota, de quatro horas de voo, houve incêndio a bordo, com pânico total entre tripulantes e passageiros das primeiras poltronas. Curvou à esquerda e em voo de quase ponta cabeça alternou para o aeroporto mais próximo, Las Vegas, onde uma tripulante ficou internada, com ferimento nos olhos e intoxicada por inalação de fumaça. Durante esse acidente ainda estava um pouco traumatizado com o anterior, de Washington, ocorrido apenas 10 dias antes, no voo para Cleveland/Ohio. Partimos do aeroporto Nacional de Washington-DC, com escala programada para Cleveland e destino a Lansing, a capital de Michigan, onde tínhamos o escritório central de nosso projeto nos EUA, na Michigan State University.  O voo, num Boeing 727-200, com bem mais de 100 passageiros, prometia ser tranquilo, tempo bom, num final de tarde do dia 14 de novembro de 1977, uma segunda feira.  Logo após a decolagem de Washington-DC,  cerca de 15 minutos de voo, a viagem foi abortada e alijou-se o combustível sobre o mar. Foi desviada a rota para o Dulles International Airport, no estado da Virgínia, terra de Samuel Rhea Gammon o fundador da Universidade Federal de Lavras, minha terra natal e onde eu ainda era professor. A aeronave perdeu totalmente o sistema hidráulico, ficando sem nenhum controle de direção horizontal e vertical, tal qual aquele DC-10 de Sioux. Mas conseguiu pousar numa pista maior, com espuma anti-fogo e redes de aço no final da pista, já com dezenas de carros de bombeiros e ambulâncias a postos. Felizmente ninguém se  feriu. A tragédia de Sioux foi evidentemente maior e traumatizante, com inúmeras perdas de vidas. Ao contrário, e felizmente, nosso avião conseguiu pousar no eixo da pista e parou com o bico na rede metálica que havia sido montada no final da pista, no aeroporto de Dulles/Virgínia. Em vez de ambulâncias, usamos ônibus para chegar à estação de passageiros, sãos e salvos e em seguida conduzidos a um hotel, em  Reston-VA, onde passamos a noite nos recuperando do susto.

             Mas, voltemos a Confins. Naquela noite de 13 de dezembro de 1987 embarcamos com muita animação, em Brasília, com destino a Belo Horizonte, onde participaríamos de uma reunião do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – CONFEA na sede do CREA-MG. A animação incluía a escolha do voo. Havia dois voos com diferença de apenas cinco minutos naquele horário de partida, por volta das 19:00 horas. Nos tempos da chamada Ponte Aérea, as passagens eram vendidas em sistema “code share” e podia-se escolher voos em qualquer companhia aérea, a Varig, Vasp e TransBrasil, únicas operadoras da Ponte Aérea.  O voo da Varig, saiu antes, mas preferi o TransBrasil, pois estava praticamente estreando os novos Boeings recém lançados no mercado, o 737-300. Havia lido na imprensa que esses novos Boeings eram motorizados com turbinas GE, super silenciosas e mais possantes que as antigas Rolls-Royce que equipavam os 737-200, barulhentos. Tanto assim que, logo em seguida aviões com essas barulhentas turbinas, como o Sucatão da Presidência da República, um velho Boeing 707, com quatro dessas turbinas, foram proibidos de pousar em Nova York e principais aeroportos dos EUA.

            Avião novinho em folha, estofamento impecável com cores neutras, som estereofônico disponível em cada poltrona, um luxo e tinha apenas 300 horas de voo, informou-me o comandante a quem visitei na cabine, antes da decolagem. Uma hora de voo e a aproximação e descida foram feitas com bastante turbulência ao romper algumas nuvens cúmulos-nimbus, os temíveis CB, nuvens negras, espessas, pura água condensada, quase uma rocha de gelo. Uma forte tempestade assolava o aeroporto de Confins. Ainda assim, ao contrário do voo da Varig, que decolara cinco minutos antes do nosso e que desistira do pouso, arremetendo a proa para o Rio de Janeiro, o nosso garboso e novíssimo 737-300 de prefixo PT-TEA, comandado por um destemido piloto, aventurou-se a pousar em meio à forte tempestade de chuva e ventos. Desalinhou do eixo da pista e simplesmente caiu sob forte rajada de chuva e vento. Despencou de uma altura de uns dez metros, atirado que foi pela violência da tempestade. Partiu a asa esquerda, que bateu primeiramente no solo. Também o trem de pouso e a turbina ficaram para trás, aos pedaços e a aeronave adernou para esquerda.

Um barulhão aterrorizante, tanto pela queda brusca ao solo como pelos impactos da asa esquerda e turbina arrancada ainda na pista, aumentando assustadoramente o barulho da lataria e metais arrastados pelo asfalto afora, gramado e lama, numa velocidade inicial de 400 km/h. Nada resistiu ao impacto e tudo foi se arrastando pelo chão, parte atolando no gramado e outra pelo asfalto soltando fagulhas. Pedaços do avião, fuselagem, turbinas se desprenderam e, no interior da aeronave, além do pânico e gritaria, objetos “voavam” sobre nossas cabeças, as maletas, mochilas, tudo, tudo mesmo que estava no bagageiro superior veio abaixo, ferindo levemente alguns passageiros. E o pior foi que assim que bateu no chão, apagaram-se as luzes da cabina. Escuridão total. Verdadeiro terror, portas e janelas de emergência que não se abriam, gritaria geral e pânico total entre os mais de cem passageiros. Diante da iminência de desfecho fatal, o subconsciente em pânico logo disparou a imagem das filhas pequenas e da esposa que ficariam sem o arrimo e... a exclamação em surdo brado “Oh meu Deus”, apelando a Ele pela vida.  Havia muitas crianças, pois era período de férias e a gritaria ficou maior ainda com o choro dos pequenos e das mães ou acompanhantes. Passou-se uma “eternidade”, sob pânico total  e nada das portas se abrirem. As aeromoças pareciam estar em desespero, para não dizer pânico, diante do emperramento da porta dianteira esquerda da aeronave retorcida. Depois de alguns segundos no escuro, que pareceram uma eternidade, as luzes da cabine se acenderam. Respirei aliviado, imaginei que haveria tempo suficiente para a fuga dos escombros. A presença de luzes era sinal que não havia incêndio e o piloto religou a A.P.U. (APU,  Auxiliary Power Unit, pequena turbina embutida na cauda do avião e que fornece energia para os sistemas de comunicação/iluminação e refrigeração). Ainda não..., pensei eu, não há fogo, mas a explosão do combustível derramado dos tanques situados nas asas, que estavam despedaçadas.... “Perna para que te quero”. Mas, como sair daquele charuto, fechado, que poderia explodir? Para piorar, havia fumaça na asa direita, justamente do meu lado e embora a janela de emergência situada sobre a asa já tivesse sido aberta pelos passageiros, ninguém se aventurou a sair por ali, até porque a fumaça começou a invadir o interior da aeronave, causando tremendo pavor nos passageiros ainda abalados com o choque brusco do avião no solo. Felizmente, vimos depois, que não se tratava de fumaça de incêndio, mas apenas vapor d’água de chuva sobre os restos das turbinas fumegantes. Mesmo assim, a única coisa que vinha à mente de todos era o iminente e temido incêndio, precedido de explosão, tal qual se vê nos filmes. Crescia o pânico entre as mais de 100 pessoas que ali estavam confinadas. Da sexta fileira de assentos (6C), no corredor já apinhado de gente apavorada, e sem condição de me mover, gritei para dois homens, jovens e fortes, para ajudarem as aeromoças a forçar a porta dianteira, que estava emperrada. Por sorte, uns três homens conseguiram abri-la, mesmo depois de tentarem forçá-la para fora, quando o certo seria puxá-las para o interior da cabina. Aberta a porta, as comissárias, então, acionaram imediatamente a rampa inflável, o tobogã, para alívio do sufoco coletivo.

Por incrível que pareça, após a abertura daquela porta da salvação, aumentou-se a confusão. Uma mulher, jovem ainda, entrou em pânico, com descontrole total. Estava nas últimas poltronas e ao ouvir a gritaria quando da abertura da porta dianteira, e sem ter como se locomover pelo apinhado corredor, simplesmente subiu nos espaldares das poltronas e em desabalada carreira passou por cima da cabeça de todos, e com olhos arregalados e grande estupor, gritava: “meu noivo é piloto e sei que o avião vai explodir“. Vazou pela porta de saída, aos gritos e atropelando a todos que se abaixavam para proteger a cabeça de sua tresloucada caminhada por cima de todos. Iniciada a fuga, de nada adiantaram os apelos das aeromoças para que todos se livrassem de pequenas bagagens de mão, sapatos, objetos cortantes, pontiagudos ou simples metais e plásticos rígidos que porventura estivessem portando nas roupas. Atropelo geral e no “salve-se quem puder”, nem as crianças tiveram prioridade, embora chorassem muito e as mães aos gritos para alcançar em primeiro lugar a porta com a rampa inflada. Logo chegou minha vez, pois a massa de passageiros comprimidos era tal que não foi possível dar prioridade a ninguém. Só mesmo em situações com cheiro de morte para as pessoas se sentirem possuídas do verdadeiro instinto animal de sobrevivência a qualquer custo, incontrolável. Passar por cima dos outros, empurrar e gritar eram atitudes perfeitamente “normal” para todos em pânico.  Antes dessa confusão infernal eu havia tirado os sapatos, caneta e chaves do bolso do paletó, retirando também a gravata, tal qual mandam os manuais de segurança aeronáutica. E lá fui rampa abaixo, empurrado pela multidão apressada. A descida foi rápida pelo improvisado tobogã, mas...,  a surpresa maior foi cair sentado sobre uma verdadeira piscina de mais de 10 mil litros de querosene, o combustível de aviação altamente inflamável e que ainda escorria dos tanques sob as asas quebradas. Mal senti o terrível e temível cheiro do combustível, que prenunciava incêndio iminente, tive o ímpeto de me levantar rapidamente e correr para longe.  Correr?... Ah..., antes mesmo de levantar-me, levei uma estocada lancinante nas costas, de quebrar as costelas. Uma mulher, de físico avantajado, não retirou os sapatos de salto alto. Este, muito comprido e de ponta bem fina e, como um petardo, de peso multiplicado por 10, em razão da velocidade e força G, causou-me um impacto de quase uma tonelada nas costas. Fui atirado novamente ao chão, quase afogado no alagado de água e querosene e, pior, com o salto do sapato cravado nas costas, me lambuzei ainda mais e quase me afoguei de vez. Ah..., não! Pensei, o que é isso? Já me afoguei aos três anos num grande reservatório de água e agora em meio à lama de água e querosene e ainda com risco de ser incendiado como um homem tocha?

Encerrava-se assim a primeira fase da pavorosa fuga. Mergulhado, pisoteado e quase afogado no mar de querosene sufocante sob o peso de vários passageiros que caiam velozmente da rampa, enquanto alguns até nos ajudaram a sair daquela perigosa situação. Perigosa e engraçada, pois havia uma mulher presa, pelo pé, nas minhas costas. Éramos todos candidatos a virar uma tocha sem salvação caso eclodisse um incêndio.  Ainda assim, lembro-me que achei graça naquela inusitada cena, uma  mulher com as pernas para cima, em “V”, mostrando toda a sua anatomia, dentro da poça de lama, gritando e esperneando,  iluminada pelas lanternas dos comissários. Mas, não havia tempo nem clima para apreciar a inusitada cena daquela senhora, com pernas para o ar, pois o combustível da aeronave, com a asa estraçalhada e barriga enterrada, continuava jorrando ali sobre todos nós. Em outra circunstância até daria para ficar ali a contemplar o esquisito e intrigante cenário de uma mulher deitada de costas na lama  e o pé agarrado nas minhas costelas perfuradas. Mais aterrorizante foi passar ao lado dos escombros da turbina, com superfície em brasa, fervilhante, fumegando, fazendo barulho de fritura e soltando fumaça sob a chuva que caía. Parecia espargir fagulhas, porém debeladas pela própria chuva torrencial. Paradoxalmente, descobri depois, que a própria chuva evitou a explosão do avião que deslizava de barriga e arrancava fagulhas no asfalto que eram apagadas pela enxurrada de mais de um palmo de altura. Não fosse isso, as fagulhas entrariam em contato com o combustível derramado (que flutua sobre a água) e  nem estaríamos aqui para contar a história. Mas, na hora ninguém se lembra disso e prevalece o pânico e, na iminência do pior, quando você sabe que não há mais jeito, eis que os pensamentos adquirem força e afloram, de novo, as imagens da família, das  filhas pequenas e da esposa que ficariam desamparadas. “Oh, my God”, o que será delas? Cuide para que eu não falte. E graças a Esse bom Deus... o avião (os restos) não explodiu e todos se salvaram.

             Alguns, no entanto, tiveram  ferimentos leves, provocados por objetos que “voaram” dos bagageiros superiores ou quando pularam direto para o chão, sem a rampa inflável. Uma mulher grávida, quase no fim da gestação, foi empurrada pela porta traseira, que finalmente conseguiram abrir, porém desprovida de rampa inflável. A gestante caiu na lama e rompeu a bolsa amniótica. Foi a primeira a ser socorrida pelos bombeiros que chegaram cinco minutos após a queda da aeronave. Novamente, pernas em ação e agora em pânico incontrolado. Mesmo atolado num mar de querosene, descalço, saí em desabalada carreira, em meio à escuridão da noite, iluminada apenas pelo lusco-fusco das luzes do distante terminal de passageiros e os faróis e roto-lights das ambulâncias e bombeiros que se aproximavam em velocidade e ao mesmo tempo evitavam atropelar os passageiros em desabalada fuga para longe dos destroços. Em segundos ganhei a pista de pouso lateral, ainda que com dores lancinantes da estocada nas costas. Corri até atingir local supostamente seguro. Ao longe pude visualizar as luzes do terminal de passageiros, que me pareceram situar-se a quilômetros de distância, tal o desespero da fuga diante de iminente explosão da aeronave em pedaços. Muitos carros e ambulâncias do Corpo de Bombeiros chegaram em socorro, com seus faróis iluminando a escuridão daquela trágica noite de tempestade. Recolhido, resgatado e levado em ambulância para o terminal de passageiros, onde fui  medicado e, ainda na sala de atendimento médico, pedi para fazer uma ligação interurbana, pois ainda não existia o aparelho celular e se existisse estaria perdido, danificado pois estávamos mergulhados e encharcados de querosene e lama.

            Agora, quando descrevo esses fatos, muitos anos depois, minha esposa lembrou-me que estranhou as minhas palavras naquele telefonema. “Você verá pelo noticiário da TV que o avião em que eu viajava caiu, aqui em Confins, mas eu estou bem, só levei uma estocada nas costas, de sapato de salto alto, de uma mulherona...rsrs”. Nada mais comentei, despedi-me, dizendo que iria para o hotel tomar um bom banho e antes pedir à companhia aérea que fornecesse roupas ou recuperasse minha bagagem deixada na cabine do avião.

Dois dias depois cheguei em casa, de roupa nova, completa, terno, gravata e sapatos, comprados na loja Delano, esquina de Afonso Pena com Espírito Santo, ali mesmo em BH, pois cheguei ao hotel enlameado, sem os sapatos que havia perdido na louca correria, , roupa danificada, cheiro terrível de querosene, pronta para descarte. Coincidência, no voo de volta a aeronave também era um Boeing 737-300, novo, de prefixo PT-TEB, irmão gêmeo do acidentado, cujo prefixo, matrícula, se diferenciava por uma única letra sequenciada. Fiz boa parte da rota na cabine de comando, pois naqueles tempos ainda eram permitidas visitas, e ali conversei com o comandante sobre o acidente anterior e normas de segurança de voo. Depois, no silêncio de minha poltrona, contemplando o infinito céu azul, a dez mil metros de altitude e na tranquilidade da alma relaxada em comunhão com Deus, agradeci pela Vida, por mais aquele livramento e cheguei à conclusão que nenhum trauma ficaria, ou seria capaz de fazer-me abandonar a paixão de voar. É verdade que, em acontecendo, o desastre desestabiliza o emocional, mas tudo tem seu valor, por pior que seja o acontecimento. Na viagem de volta, o silêncio da alma falou mais alto. Na descrição sobre o silêncio da alma, tão bem colocada por Rubem Alves, encontrei a explicação do porquê quando estou nas alturas, voando a quase mil por hora, encontro inspiração para meditar e colocar a alma no lugar certo, mesmo com as apavorantes lembranças dos dois acidentes aéreos sofridos anteriormente nos Estados Unidos e este, de Confins, mais grave ainda.

Pode parecer paradoxal, mas como continuar apaixonado por aviões depois desse acidente? Outros já haviam acontecido nos EUA e como, então, depois de tantos apuros ainda conservar o fascínio pelos voos? Simples..., acalento o "Sonho de Ícaro",  o sonho e a paixão por voar, voar... subir, subir... asas de ilusão... sonho audaz de balão ... como expressou o cantor e compositor Biafra. Ali, nas alturas, no silêncio da aeronave e a contemplar as nuvens e a imensidão do espaço, é praticamente o único lugar onde consigo relaxar e soltar completamente a alma. Ali, literalmente nas nuvens, não tem o stress urbano, com noticiário escabroso da TV mostrando tragédias, assaltos e tudo quanto é desgraça humana e ambiental. Somente as nuvens, o infinito e a terra lá embaixo, distante e com diminutas formas visíveis. Em minhas reflexões cheguei à conclusão que já derrotei a Dona Morte várias vezes. Cinco ao todo, três acidentes aéreos, dos quais não carrego traumas. Ao contrário disso, os traumas que tenho são com os outros dois acidentes/incidentes acontecidos na infância. O primeiro, uma grave cirurgia aos dois anos de idade e o segundo, um afogamento aos quatro anos. Desses dois, ainda hoje, carrego sequelas físicas e psicológicas. Mas, também tenho de um deles a gostosa lembrança de passar inteiramente outros nove meses, 24 horas ao dia, no colo dos pais, irmãs e amigos da família,  com suas doces canções de ninar e causos de bichos na floresta, que ainda tenho registrados na memória. Relembro-os com carinho e doçura na alma. Nunca os esqueci, como também a cena de choro de todos ao redor do menino, ainda com três anos apenas,  reanimado do afogamento, enrolado em toalhas e expelindo golfadas de água com as massagens e respiração boca a boca feitas pela mãe que desesperada clamava a Deus pela vida do filho.  Assim, diante de tamanhas e reiteradas sortes, estou vencendo aquela Velha de capa preta e foice na mão, por 5 x 0. Mas, sabemos também que se ela, a dona Morte, vencer uma única partida neste jogo da vida, de nada adiantará o novo placar de 5 x1, pois prevalecerá a única vitória dela.

Não penso nisso! Melhor é ter, sempre, um projeto de vida, qualquer que seja a sua faixa etária. Ter um projeto de vida é encontrar coisas que se goste de fazer, aprender a dizer ‘não’, dar muita risada, enfrentar o medo e buscar felicidade, o sucesso junto à família e amigos, que são as dádivas que Deus colocou no mundo para tomar conta de nós. Amém!

                                                                                                       

Brasília, 12 de janeiro de 2016

 

Paulo das Lavras


 PT- TEA  737-300 TransBrasil- avião novinho em folha, com apenas 300 horas de voo. Asa e turbina esquerdas quebradas, deixando  pedaços na pista e arrancando fagulhas que se apagavam sob a enxurrada de um palmo de altura... 
Foto: Airspeed – Planespotters.net



 
Jornal O Globo 15/12/19 


 Jornal F. de S. Paulo 15/12/1987
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