terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Lavando a alma, farta colheita


             
Minhas visitas à terra natal têm rendido boas colheitas. As sementes que ali semeei germinaram e frutificaram, pois caíram em boa terra. Como dito na Bíblia, tendo sido boa a semeadura, a colheita será boa (Mt 13-3). Realmente foi e tem sido assim na terra das Lavras do Funil, desde o ano de 1750, quando meu penta-avô, Manoel da Costa Vale, imigrante português, ali chegou e criou sua prole que se multiplicou com diferentes sobrenomes: Costa (de Firmino Costa), Pádua (de Misseno, Saturnino e João Oscar de Pádua) e Sales (de Francisco Sales) . Ali, na terra dos ipês e das escolas a seara foi mais que fértil, reproduzindo matrizes que se multiplicaram dezenas, centenas e milhares de vezes. Seus filhos e alunos de toda parte receberam os ensinamentos da semente- mãe, os mestres. Alguns desses alunos seguiram a trilha dos mestres, tornando-se também professores e assim a semeadura se multiplicou exponencialmente. Foi assim com o menino das Lavras, pois exemplos e incentivos não lhe faltaram para a carreira do magistério e, agora, voltando à cidade ainda que por curto período de visita, revisitando esse passado cheio de ensinamentos, colhemos os frutos então semeados e pudemos voltar para casa com a alma confortada, transbordando, renovada pela força do amor e do carinho ali recebidos.

            Mesmo depois de muito tempo ausente da cidade, por quase 50 anos, revisitando-a, andando pelas ruas e restaurantes, reencontramos velhos amigos que nos surpreendiam, lembrando-nos com imensa alegria, com largo e amoroso sorriso, fatos que nós mesmos sequer nos lembrávamos. Convidavam-nos a adentrar sua casa, ir direto para a cozinha, com cheiro de cafezinho e pão de queijo. A tradição mineira de bem receber vem desde os tempos dos desbravamentos desse imenso e rico território. Não fossemos colonizados pelos portugueses teríamos sido bem diferentes, com outros costumes na arte de bem receber. O modelo de exploração de territórios desconhecidos, como era o nosso caso, ainda nos séculos XVII e XVIII, foi muito diferente entre os colonizadores espanhóis e lusos. Os primeiros valorizavam as cidades. Começavam a explorar o território construindo uma cidade e partir dela faziam pequenas incursões. Os portugueses, ao contrário, partiam para longas jornadas às quais chamavam de Entradas e Bandeiras. Iniciavam a caminhada pela manhã, logo ao raiar do sol e paravam ao meio dia, montando o acampamento para seu descanso e da tropa de burros de carga. Em cada lugar que paravam a cada três a seis léguas ou um pouco mais, deixavam uma pequena plantação de milho e mandioca, pois houve época em que os reis de Portugal baixaram determinação nesse sentido, obrigando os bandeirantes e tropeiros a deixarem plantios para sustento dos próximos viajantes. Foi assim em Minas, especialmente nas regiões auríferas. É só dar uma olhadinha nos mapas de hoje e notar que as cidades, ainda hoje pequenas, não distam mais que 15 ou 20 km entre si. Estas eram as distâncias das caminhadas diárias pelas tropas com suas cargas, por entre córregos, rios e montanhas.

            A tradição de mais de 300 anos dos bandeirantes e tropeiros dos tempos do Brasil colônia, especialmente nas “Minas Geraes”, de encontrar um acampamento para pouso e comida, de graça, e quase sempre novos moradores que os acolhiam, influenciou a maneira de ser da nossa gente. Receber um visitante era motivo de alegria, que quebrava a monotonia e o isolamento do povoado distante do litoral, onde as vilas eram mais numerosas. Assim, no acolhimento do viajante, a comida era mais que bem vinda, além da prosa, notícias da corte e as novidades comerciais trazidas pelos mascates para o hostil sertão. Ainda guardo na memória as lembranças do final dos anos de 1940 e início dos 50, quando era comum os viajantes, à cavalo, pararem em nossa fazenda e pedir “um pouso”. Havia um anexo a casa, chamado de quarto de visitas, próprio para esses casos. Era isolado da casa grande, sem nenhum risco para os moradores. Naqueles tempos ainda era comum os viajantes, a cavalo, andarem armados para sua própria defesa pessoal nos isolados caminhos. Eles próprios entregavam ao fazendeiro suas armas e as recebiam de volta quando partiam. Ao visitante era oferecido o jantar e café da manhã. Seus animais eram desarreados e colocados no pastinho com água corrente, logo ao lado, não sem antes receberem algumas espigas de milho.  Nunca era cobrado nada pelos préstimos. Sempre foi cortesia dos fazendeiros e o faziam com orgulho e satisfação.  Os meninos curiosos gostavam de se aproximar dos viajantes e na despedida sempre ganhavam um mimo, sob o olhar dos pais. Assim é a tradição no sul de Minas, de origem exclusivamente portuguesa, receber bem, de preferencia na cozinha com cafezinho moca e gostosas quitandas (quitandas são os confeitos artesanais, broas, pamonhas, biscoitos de polvilho, pães de queijo, etc. Ao contrário, em Belo Horizonte e outras partes do Brasil, “quitanda” é um pequeno comercio de frutas, verduras e alimentos).

            Ainda hoje perdura em Lavras essa tradição de bem receber e, como a nos confirmar a sabedoria bíblica, que nos ensina que se semearmos a boa semente em férteis terras, a colheita será sempre farta. Sou grato a Deus por ter-me concedido tantas oportunidades de semear a boa semente, nessa terra que me viu nascer, educou-me para a vida e certamente, um dia, acolherá minhas cinzas, embora habite há bastante tempo em outro distante lugar.

            Com esse longo preâmbulo, que por si já se constituiria uma crônica, vamos falar de três recentes “colheitas” que encheram nossa alma de alegria e satisfação, quando de nossas andanças pela terra natal. A primeira, de um colega, professor de Solos, da UFLA, Geraldo de Aquino Guedes e sua esposa, Gracinha Guedes, que nos abordaram em um restaurante com largo sorriso e fortes abraços. Relembraram-nos um fato ocorrido em 1979 quando a mudança do casal para os E.UA ainda era apenas um projeto. Surpreso, pois sequer nos lembrávamos do fato, ouvimos seus relatos contando a saga que enfrentaram para concretizar o sonho de cursar doutorado em Solos, nos E.UA. Ele, segundo disse, ainda não tinha contrato com a Esal/ Ufla e por isso, precisava de um contrato como professor e bolsa de estudos para ser aceito em definitivo na pós-graduação da Universidade da Flórida/EUA. Viajou ao MEC, relatou-nos seu projeto e diante da exibição da carta de pré-aceitação no curso de doutorado na área de solos, na Universidade da Flórida, em Gainesville, aprovamos seu pleito e comunicamos ao então diretor, Jair Vieira, para preparar o contrato e sua liberação para a viagem ao exterior. Em vinte dias apenas, desde o nosso encontro em Brasília, disse ele, pode seguir viagem com sua família.  Concluiu o mestrado e o doutorado em 1982 e desde então integrou o Departamento de Solos da ESAL, onde foi dos primeiros a atuar na implantação de cursos de pós-graduação, sob a coordenação do emérito Prof. Alfredo Scheid Lopes. Durante a estada no exterior, sua esposa Gracinha aproveitou para também obter o mestrado em Educação, na Florida State University e quando retornou a Lavras fundou a Escola Fisk de ensino do idioma inglês. Encontrar o casal depois tantos anos e saber do sucesso e obras que deixaram em Lavras, e ainda receber o carinho de ambos e seus familiares foi um bálsamo para alma. A boa semente produziu frutos. Parabéns ao casal e toda família que, aliás, segue sua obra na Escola Fisk.

            O segundo encontro, ao lado do historiador e repórter fotográfico, Renato Libeck, foi com a amiga Heloisa da Costa Rolim, que veio ao nosso encontro e foi logo dizendo ao Renato que precisava me agradecer. Sem que me lembrasse de qualquer ato que merecesse a atenção, fui logo indagando de que se tratava. Relatou que seu filho havia se formado em engenharia mecânica, foi aprovado no mestrado na UNIFEI-Itajubá, mas não mais existiam bolsas disponíveis naquela universidade. Por telefone ela nos contatou e assim, por meio de nossa diretoria, no MEC, conseguimos que uma bolsa extra fosse consignada à universidade e ele pôde ser aceito no curso de mestrado. Concluiu o curso e hoje é especialista auditor e consultor em sua área profissional, arrematou com orgulho mais que justo. Renato e eu a cumprimentamos e desejamos sorte para o filho. Mais uma vez a alma se regozijou com a boa semente plantada e que deu frutos.  

            Assim foi o caminhar pelas ruas de Lavras, a Terra dos Ipês e das Escolas, lugar fértil para a educação e a cultura. Outro evento marcante nessa última estada foi a visita à universidade, a UFLA. Convidado pelo Departamento de Engenharia - DEG, onde atuamos até o ano de 1975, quando fui cedido para prestar serviços no MEC em Brasília, lá comparecemos para proferir palestra aos coordenadores dos diversos cursos de engenharia ali ministrados. Anfitrionado pelo coordenador do setor de Áreas Básicas de Ingresso, ABI, Prof. Carlos Eduardo Volpato, pudemos rememorar a saga daquele Departamento. Da sua criação em 1966, entrando logo em seguida na construção do novo campus inaugurado em 1970, à criação dos cursos de Engenharia Agrícola, logo em 1975, a passagem pelo Programa de Desenvolvimento de Ciências Agrárias do MEC- PRODECA que desencadeou verdadeira aceleração na expansão do Departamento. Logo em seguida surgiram os programas de pós-graduação e mais tarde a criação de diferentes cursos de engenharia, sob o patrocínio de outro programa do Ministério da Educação, o REUNI – Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, também sob nossa coordenação até o ano de 2008. Destacamos o vertiginoso desenvolvimento do DEG, com inúmeros prédios, amplos laboratórios de ultima geração, alunado sempre crescente, tanto na graduação como na pós-graduação, como também o elevado índice de qualificação e dedicação de seus professores. Também relembramos a criação do DEG, seguindo-se a construção do novo campus, começando pela abertura da avenida que liga o Campus Histórico ao novo, o atual campus, a criação do curso de engenharia agrícola (o terceiro do país), a introdução da Aviação Agrícola, os novos cursos e a adoção do currículo básico comum (ABI), destacando-se a intensa e cooperativa dedicação dos professores. Rememorar o embate que enfrentamos em 1974 no MEC, como representante da velha ESAL e ainda na qualidade de pró-reitor de pós-graduação, para conseguir autorização para a criação de cursos de graduação de engenharia agrícola e posteriormente outros de pós-graduação, não foi tarefa fácil. Enfrentamos a oposição de uma escola congênere que colocou em dúvida a capacidade da pequena ESAL. Porém, aquela escola não contava que a Diretoria de Ensino Agrícola Superior, sob nossa direção no MEC, viesse responder com relatório de desempenho das Instituições Federais de Ensino Superior, contrariando as afirmações daquela que dominava o então incipiente ensino de pós-graduação de ciências agrárias. A ESAL de então, hoje Ufla, ostentava o primeiro lugar no ranking nacional da área com quase 80% de seus professores titulados com mestrado e doutorado, quando a média nacional beirava apenas 30%, menos da metade do elevado desempenho da ESAL. Ponto final na querela daqueles que dominavam o mercado e ao que tudo indica, queriam, à época, exclusividade na oferta de cursos de pós-graduação na área agrícola. Mais uma vez a dedicação e a competência de nossos professores sobressaíram nos relatórios do MEC, tal qual ainda hoje nos rankings da Capes/MEC. Dedicação e qualificação são as marcas registradas da Ufla, desde os tempos da velha Esal. E tudo começou com o ousado Plano Diretor, de 1969, elaborado e executado por Alysson Paulinelli, um dos maiores dirigentes de todos os tempos da velha Esal/Ufla.

            Encheu-nos de alegria retornar ao campus da Ufla. Foi muito prazeroso rever o antigo DEG, as avenidas e prédios que, literalmente, construímos no período de 1967 a 75 e depois apoiamos, até o ano de 2008, quando ainda dirigíamos no MEC a expansão física e acadêmica das universidades federais. Melhor ainda, foi constatar e sentir o quanto o espírito acadêmico ali prevalece. A dedicação e qualificação de seus docentes são notórias e todos os relatórios oficiais da educação superior no Brasil e no exterior apontam isso. Não bastasse tudo isso a engrandecer-nos, o Prof. Volpato ainda relembrou nossa participação na reestruturação das engenharias, começando pela Engenharia em Ciclos que implantamos na Universidade do ABC, ainda em 2006/2008. Na Ufla, participamos, a partir de 2012, do grupo de trabalho misto, UFLA/UFABC/Unicamp, para a reestruturação dos cursos de engenharia com tronco comum na Ufla, originando-se o sistema ABI (áreas básicas de ingresso), atualmente em vigor e com pleno sucesso acadêmico. Assim, receber os diplomas de honra ao mérito por ocasião dos 50 anos de aniversário de criação do DEG e ainda pelos 40 anos do início da pós-graduação e do primeiro mestrado, de Fitotecnia, foi uma grande honraria, ímpar na vida de professor e gestor da Educação Superior.

Visitar Lavras é sempre motivo de orgulho. Mais que isso, é se fartar na colheita, encher a alma, lavando-a com o carinho e amor dos lavrenses, pois diz o ditado que a gente só oferece aquilo que tem e os lavrenses têm muito amor no coração e sabem receber os amigos, como manda a tradição de 300 anos. Sou grato a Deus por ter tido a oportunidade de retribuir um pouquinho daquilo que sempre recebi da Terra dos Ipês e das Escolas. Os poetas têm razão quando dizem: “Quando eu tiver asas e puder voar, voltarei a minha terra natal e todos aqueles que sempre chamei de amigo serão amigos... serão meus irmãos”. Ser degredista é assumir uma volta ao passado da terra natal e fazer que todos saibam disso, disse outro poeta. Afinal, só se compreende a vida mediante um retorno ao passado para melhor viver o presente. É como se restaurássemos nosso sistema operacional e assim funciona melhor.

Ah... ainda tem muitos outros encontros para contar, como a recente visita a outra casa de ensino muito especial, o UNI-LAVRAS. Mas, este e outros ficam para a próxima vez. Sim, com o é bom pisar o solo natal. A alma agradece especialmente aos que aqui foram citados, cidadãos que muito contribuíram para o desenvolvimento da comunidade e nos enchem de orgulho.
Que o Ano Novo continue assim, como os anteriores e este que se finda, generoso para aqueles que têm a boa semente no coração e continuam a semeá-la.

Brasília, 31 de dezembro de 2019

Paulo das Lavras


Lavras – 300 anos de História. Os portugueses aqui chegaram por volta de 1720. Trinta anos depois nosso pentavô, Manoel da Costa Vale aqui aportou, dando origem às famílias Costa, Pádua e Sales. Quatro anos após sua chegada inaugurou-se a antiga Igreja Matriz do Arraial de Santana das Lavas do Funil, hoje Igreja do Rosário, plantada na praça central da cidade
Foto: acervo de Renato Libeck 



Prof. Geraldo Guedes e esposa, Gracinha, comemorando os 40 anos de chegada à Gainesville-Flórida. Nascidos na Zona da Mata mineira se radicaram em Lavras há mais de 40 anos, onde ambos se dedicaram ao bem servir à comunidade na área do ensino e criando sua família.  O espírito mineiro, de origem portuguesa, de bem receber os amigos e trabalhar em prol a comunidade encontrou terra fértil em Lavras e hoje se orgulham de suas escolhas e desfrutam do que aqui plantaram.
Foto: acervo de Geraldo Guedes - 2018



Heloisa Costa Rolim e os filhos, Luciano e Ana Flavia, engenheiro mecânico em Minas e ela arquiteta de restauros de patrimônio históricos em São Paulo. Filhos de Lavras que engrandecem a terra.
Foto: acervo Helô Costa- 2019


Prof Carlos Eduardo Volpato, chefe do Departamento de Engenharia
da Ufla, juntamente com a Vice- reitora, Édila Von Pinho, na entrega de homenagem
 pelos 50 anos de criaçãodo Departamento.
Foto- Ascom/Ufla, dezembro 2015



Prof. Alysson Paolinelli, em inauguração do Campestre Clube/Lavras.
Responsável pela federalização e expansão da ESAL, mais tarde transformada
em Universidade Federal.  Grande benfeitor, semente boa que geminou
e frutificou na Terra dos Ipês e das Escolas.
Foto- acervo de Renato Libeck


Celebrando os 50 anos do Departamento de Engenharia, com
Carlos Volpato/Chefe do Departamento e o fundador,
Alysson Paolinelli
Foto: acervo do autor - dezembro de 2015



Os programas especiais de melhoria e expansão da educação superior,
 que administramos no MEC, proporcionaram inúmeras contratações e treinamento de docentes na velha Esal/UFLA. Encontrar-se, na celebração dos 40 anos do mestrado de Fitotecnia, com três ex-alunos que mais tarde se tornaram professores, Maria das Graças Carvalho, Milton Moreira de Carvalho e Pedro Milanêz, e deles receber o carinho, foi um bálsamo para alma..., farta colheita, boas sementes, até porque a professora da foto se tornou especialista em qualidade de Sementes para a agricultura.
Foto: acervo do autor - novembro de 2015


Andar pelo Campus da Ufla é apreciar os frutos da boa semeadura. Aí está, defronte ao Departamento de Engenharia, o avião agrícola Ipanema, fruto da cooperação da ESAL com o MEC, quando a introduzimos no seleto grupo do ensino da Aviação Agrícola, em convênio com o MEC, EMBRAER e M.Agricultura. .
Foto: acervo do autor - 2015


Nas andanças pela cidade natal, também fotografamos ruas e monumentos como a Igreja Matriz de Santana. Prazer renovado, rever os locais por onde passamos a infância e juventude.
Foto: acervo do autor - 2019



A mesma Igreja do Rosário, de quase 300 anos e que funcionou como
igreja matriz de Lavras até o inicio do século 20.
Foto: acervo do autor - 2019


Mesmo em outras  andanças pelo Brasil, proferindo palestras sobre planejamento e
avaliação da educação superior, às vezes somos surpreendidos com inusitados reencontros.
 Alysson Paolinelli e Eudes de Souza Leão, dois grandes benfeitores da Esal/Ufla, no Congresso Brasileiro de Educação Agrícola Superior, em Recife. O Prof. Eudes foi quem evitou o fechamento da Esal em 1963, contrariando ordens do então ministro da Educação.
Foto: acervo do autor – Recife, outubro 2007

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Novembro da negritude – começou a igualdade


Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor
de sua pele, por sua origem ou ainda por sua
religião. Para odiar, as pessoas precisam
 aprender  e, se podem aprender a odiar,
 elas podem ser ensinadas a amar.

            Novembro chegou... e com ele as reminiscências de uma das questões mais tristes da história da humanidade e principalmente em nosso país, a escravidão. Mas, uma luz no fim do túnel se acendeu, pois em recente pesquisa, divulgada em maio do corrente ano, realizada pela Andifes- Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, indicou que 51,2% (cinquenta e um vírgula dois por cento) dos estudantes matriculados em universidades públicas são negros. Não é tudo o que desejávamos, pois no mercado de trabalho ainda são minoria, mas, já é um grande ganho, um passo gigantesco no sentido de alcançarmos a igualdade racial. Tudo começa com a educação, com a qualificação da mão de obra. Dias melhores virão!

Mas, por que só em novembro se abrem as discussões se o negro enfrenta problemas de discriminação todos os dias? Por que então falar agora em “não discriminar”, discriminando-se, criando-se um dia especial, o Dia da Consciência Negra? Simples, pois, é verdade que todos os dias devem ser considerados igualmente respeitosos ao negro, mas, não é assim na prática. Ainda hoje há muito desrespeito, racismo mesmo, para ser simples e direto com as palavras. A data, portanto, é simbólica e serve de alerta à sociedade.

Foi em 1970 que um grupo de quilombolas gaúcho decidiu eleger o mês de novembro como o mês da Consciência Negra. O patrono escolhido foi Zumbi, líder do Quilombola dos Palmares, que se tornou o símbolo da luta de resistência contra a escravidão. Tombou em 20 de novembro de 1695, no campo de batalha contra as tropas coloniais, na Serra da Barriga, Alagoas.

A História do Brasil retrata escravidão como pacífica, com o negro, escravo, conformado, pacífico e que hoje desfrutamos de uma democracia racial. Não foi e tampouco é assim! Houve e ainda há conflitos raciais. A escravidão por si própria já é cruel. Quem, de sã consciência, admite perder a sua própria liberdade? No final dos anos de 1970, vivi o medo dominante em certas regiões dos EUA. Na região de Detroit, onde trabalhei isso era constante. Mais recentemente, nos anos 90, no limiar do século XXI, assisti, ao vivo, in locco, numa colônia de um pais europeu, uma manifestação de negros nativos, clamando pela independência da colônia, bem ali fronteiriço ao Brasil. Aproveitaram a presença dos estrangeiros, numa recepção nos salões da prefeitura, quando do encerramento de um grande evento internacional.  Senti-me com a alma dolorida ao ouvir os protestos, ainda que em outro idioma. Eram negros clamando pela sua própria liberdade do jugo europeu.

Pois bem, os escravos negros que aportavam no Brasil, em navios negreiros, eram capturados à força e vendidos como mercadoria. Aqui chegaram desde os meados do século XVI, ou seja, logo após o descobrimento do Brasil. Vinham das colônias portuguesas da África, inicialmente para as lavouras de cana de açúcar no nordeste e mais tarde, já no século XVII, destinavam-se principalmente para a mineração de ouro em Minas e lavouras de café do vale do Paraíba e sul de Minas. Não foi pacífica a escravidão no Brasil, pois logo, ainda no século XVII, eclodiu a revolta dos Palmares na região nordeste produtora de cana de açúcar. Não foi diferente em Minas Gerais, onde se concentrava boa parte da população escrava em suas minas de ouro. Inúmeras foram as rebeliões nos Quilombos da região, como o de Campo Grande, com suas mais de 27 vilas, maior até mesmo que o dos Palmares (Trombucas e Calunga foram dois quilombos que integravam as vilas do Campo Grande, situado a em Nepomuceno. O Quilombo do Rei Ambrósio, foi o maior deles, situado em Cristais-MG, durou 20 anos e foi atacado pelas tropas do governo em 1746,), havendo inclusive participação de Lavras, na luta contra esses quilombolas a seu redor, até mesmo próximo à Ibituruna, conforme relatos do capitão Francisco Bueno da Fonseca, um dos fundadores da cidade de Lavras. Os comandantes das tropas eram, em sua maioria de Lavras, pois ali era ponto estratégico para a logística daquela guerra contra os negros. Ao final, Bartolomeu Bueno do Prado, um dos grandes vitoriosos, apresentou 3.900 pares de orelhas dos negros abatidos nos campos de batalha, segundo informa o historiador Nemeth-Torres (Németh-Torres, Geovani, 1986 – História Geral de Lavras, Volume I- Lavras, MG. 2018. 296p).

Os negros nunca tiveram a atenção e devido respeito, mesmo depois da abolição da escravatura, em 1888. Aliás, o desrespeito prevaleceu mesmo durante o ato de elaboração da Lei Áurea. Era intenção da Princesa Isabel, destinar em lei, um pedaço de terra para cada família de escravo liberto. Seria o seu meio, imediato, de subsistência, ao ser liberto ou expulso das fazendas, como de fato aconteceu. Alguns poucos conseguiram a benevolência dos antigos patrões e ali permaneceram a troco de comida e uma troca de roupa de algodão grosseiro. Mas, a grande maioria correu para a cidade e então deu-se inicio a formação das favelas nas periferias das cidades. Em todas elas, em todos os municípios a miséria dos negros era vista nas favelas. Não importava o tamanho da cidade, Minha própria cidade natal, Lavras, tinha em cada uma das estradas de saída para as fazendas, um a fieira de miseráveis casinhas de adobe ou pau a pique. Visitei muitas delas, em 1967, em trabalhos de pesquisa estudantil, de sociologia rural do curso de agronomia. Foi assim nos casebres das saídas para ponte do Funil, da Rua do Capim próximo à igreja de N.S Aparecida, da ruela à esquerda do túnel em direção ao antigo Batalhão de Infantaria (hoje Rua Donato Bauth), a viela na saída para a Ponte Alta, enfim em todas as direções onde havia uma estrada que ligasse a cidade à zona rural, lá estavam as fileiras de casebres, onde se abrigavam os antigos escravos libertos e seus descendentes diretos. Ali permaneciam ainda nas décadas de 1950 e 60, paupérrimos, sem teto digno e passando privações de toda a ordem, da comida à saúde e a falta de escolaridade. Triste cena, triste sina a dos ex-escravos e seus descendentes diretos, na minha terra por onde andei e percorri as vielas, em situações não diferentes em todo o Brasil.

Não vamos aqui desfiar estatísticas sobre a fome, desemprego, criminalidade e mortes, em números muito maiores no segmento da raça negra em nosso país (75.6% das vítimas de homicídio em 2017). São por demais conhecidas. Queremos sim buscar corrigir as injustiças atávicas e para isso, enfatizamos as palavras do grande líder sul-africano, Nelson Mandela e aqui colocadas em epígrafe logo após o título desta crônica.  Precisamos ensinar nossa pátria a amar aqueles que um dia foram prejudicados pelo maior erro da humanidade, a escravidão. Precisamos batalhar para mudar o olhar da sociedade sobre a questão do preconceito racial em relação aos negros. Tenho orgulho de ter trabalhado e contribuído, aqui no Ministério da Educação, para a aprovação das cotas raciais em universidades, pois nossa dívida social para com os negros é impagável e tudo que fizermos para mitigar os efeitos dessa injustiça social ainda será pouco. Bem vinda Lei das Cotas (Lei 12.711/12). Graças a ela, temos hoje um empate técnico entre o percentual de população e de estudantes universitário nas universidades públicas. Aí está o primeiro grande passo para a igualdade e equidade racial, com imparcialidade e justiça, pois afinal todos nós, independentemente de raça, cor, religião ou outro critério social, ajudamos a construir a nossa Nação.

Que nesse mês de Novembro, quando se comemora a Consciência Negra, tenhamos de fato consciência da nossa responsabilidade social e possamos contribuir para educação de nosso povo, com amor e não o ódio, como bem nos ensinou o Sr. Mandela. Que em breve, possamos falar dos negros iniciando-se pelos seus grandes feitos, suas contribuições em todos os ramos da ciência e da tecnologia em prol de nosso povo e não tenhamos que deles falar iniciando-se pela escravatura e seus efeitos maléficos sobre a humanidade. Tenho certeza que em breve teremos muitos expoentes, negros, em todos os campos do saber. Longe se vai o meu tempo de estudante. Entramos 250 meninos na primeira série do ginásio (atual Ensino Fundamental, anos finais), com apenas uns dez coleguinhas negros. Destes, apenas dois chegaram ao 3º científico (atual Ensino Médio). Ambos não puderam pagar cursinhos pré-vestibulares e até tiveram que interromper os estudos para trabalhar e ajudar no sustento da família. Só ingressaram na universidade dois e cinco anos depois. Um deles foi meu aluno no último ano do curso de Agronomia. Longe se vai, também, meu tempo de menino convivendo com idosos filhos de ex-escravos e os netinhos nossos companheiros de brincadeiras, cavalgadas, caçadas e natação nos córregos e ribeirões das fazendas. Nenhum desses amiguinhos conseguiu concluir sequer o curso primário. Há alguns anos visitei um deles, numa humilde casa na periferia da cidade, sobrevivendo com pequena aposentadoria do antigo Funrural. Doeu a alma, doeu o coração com tanta injustiça social, até mesmo cravada em leis e regulamentos que proibiam atividades ou a participação de negros na sociedade. No futebol (lembram-se do apelido de um time carioca? Pó-de-arroz, porque passavam esse pó nos jogadores mulatos para encobrir a negritude e parecer que eram da raça branca..., pode isso?), ou então nas artes, como a proibição, até os anos de 1930, de qualquer referencia cultural como o samba e a capoeira. Bem vinda a lei das Cotas Raciais nas universidades publicas. E pensar que ainda há quem proteste contra essa mais que justa reparação. Será que também protestaram contra a lei que proibia sambas e capoeiras ou ainda a presença de jogadores negros no futebol?

Dias melhores virão, pois a Educação é a principal ferramenta para combater a discriminação entre nossos irmãos que, tanto quanto nossos pais trabalharam para a construção de nossa Nação. Afinal, quase 70% dos brasileiros são miscigenados.

Brasília, 01 de novembro de 2019

Paulo das Lavras





 
Neste mês da Consciência Negra, homenageio, com alegria, um dos colegas engenheiros, negro com muito orgulho,
ali, no mais alto foro de representação dessa classe profissional, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, onde atuei por 12 anos.











sábado, 12 de outubro de 2019

A Vida dá Muitas Voltas – Infância Feliz, “pagando os franguinhos”


Infância feliz! “Guardo as memórias que me trazem riso,
 as pessoas que tocaram a minha alma e
 que, de alguma forma, me mudaram para melhor.
 Guardo também a infância toda tingida de giz.
Tinha jeito de arco-íris a minha”.


  
A vida dá muitas voltas, diz a primeira frase do título acima e é de uma profundidade imensa. Ela abre a crônica do Dr Howard Kelly, que recebi de minha filha. Uma linda história. Respondi a ela lembrando um fato semelhante que acontecera comigo. Ainda hoje, passados muitos anos eu relembro o ocorrido, contando-o aos meus filhos e enfatizando o prazer, a alegria de se ter a oportunidade de se corrigir um erro cometido, ou simplesmente retribuir um mimo, uma graça recebida de outrem. O Dr Howard Kelly, protagonista da crônica em questão, não cometera nenhum ato que merecesse reparo, mas, guarda muita semelhança com aquilo que se passou com este menino travesso, que gozava de plena liberdade em sua chácara a 300 metros de uma das principais ruas da cidade. Ao contrário do menino travesso, o Dr Kelly ganhou um copo de leite, quando ainda menino e faminto, foi bater à porta de uma senhora para lhe vender algo. Veja sua história:

         “... O maior erro do ser humano é tentar tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...". Assim começa a crônica, descrevendo a vida de um rapaz pobre chamado Howard Kelly que vendia mercadorias de porta em porta para pagar seus estudos. Um dia, viu que só lhe restava uma simples moeda de dez centavos e tinha fome. Decidiu que pediria comida na próxima casa.  Porém, seus nervos o traíram quando uma encantadora mulher jovem lhe abriu a porta. Em vez de comida, pediu um copo de água. Ela pensou que o jovem parecia faminto e assim lhe deu um grande copo de leite. 
        Ele bebeu devagar e depois lhe perguntou: Quanto  lhe devo? 
        - Não me deves nada - respondeu ela. E continuou - Minha mãe sempre nos ensinou a nunca aceitar pagamento por uma oferta caridosa. 
        Ele disse: - Pois te agradeço de todo coração. 
        Quando Howard Kelly saiu daquela casa, não só se sentiu mais forte fisicamente, mas também sua fé em Deus e nos homens ficou mais forte.  Ele já estava resignado a se render e deixar tudo. 

        Anos depois, aquela mulher ficou gravemente doente. Os médicos locais estavam confusos. Finalmente a enviaram à cidade grande, onde chamaram um  especialista para estudar sua rara enfermidade.  Chamaram o Dr. Howard Kelly. Quando escutou o nome  do povoado de onde ela viera, uma estranha luz encheu  seus olhos.  Imediatamente, vestido com a sua bata de doutor, foi ver a paciente. Reconheceu imediatamente aquela mulher.   Determinou-se a fazer o melhor para salvar aquela vida. Passou a dedicar atenção especial aquela paciente.   Depois de uma demorada luta pela vida da enferma, ganhou a batalha.

        O Dr. Kelly pediu a administração do hospital que lhe enviasse a fatura total dos gastos para aprová-la.  Ele a conferiu e depois escreveu algo e mandou entrega-la no quarto da paciente. Ela tinha medo de abri-la, porque sabia que levaria o resto da sua vida para pagar todos os gastos. Mas finalmente quando abriu a fatura algo lhe chamou a atenção, pois estava escrito o seguinte:

  Totalmente pago há muitos anos com um copo de leite  (assinado). Dr.Howard Kelly. 

        Lágrimas de alegria correram de seus olhos e seu  coração feliz rezou assim: Graças meu Deus porque teu amor se manifestou nas mãos e nos corações humanos. 
        "Na vida nada acontece por acaso."

Com esse adágio o cronista encerrou a história vivida pelo Dr Kelly. E é verdade, concordo inteiramente que nada acontece por acaso em nossas vidas.  Eu próprio tive uma experiência  em tudo semelhante à relatada acima. Morava numa grande chácara com mais de 20 hectares  (mais de 20 campos de futebol ou 200.000 m²), com enorme casarão de seis quartos, casa de empregado, plantações diversas, um grande pomar, córrego, mata nativa, vacas, cavalos, etc., etc., situada praticamente dentro da cidade e hoje se transformou em Vila Cruzeiro do Sul. Era muito freqüentada pelos amigos de infância que ali se sentiam no paraíso, pois, desfrutavam de tudo, futebol, cavalgadas, touradas (com bezerros, lógico) adestramentos de animais, pescaria, natação, caçadas nas matinhas e melhor de tudo, da fartura das frutas do variado pomar que tinha pêssegos, marmelos, cana de açúcar, bananas de diversas variedades, ameixas, goiabas, laranjas, jabuticabas e muitas outras, de modo que se podia saboreá-las em todas as estações do ano. Um paraíso para crianças de dez anos que querem liberdade para inventar suas próprias brincadeiras.

 Certa vez, esses amiguinhos, incluindo também meu irmão mais novo (ele também se lembra do ocorrido e não economiza gargalhadas quando rememoramos o caso), inventaram de praticar estilingadas em todos os pintinhos de uma galinha que ciscava por perto. A galinha não era nossa e também não sabíamos a quem pertencia e, por isso, concordei e ainda participei da matança, embora não tenha acertado nenhuma estilingada. Além de ruim de bola (era dono da bola e do campo de futebol) era também péssimo no estilingue, talvez pela deficiência visual, pois havia perdido a visão direita em acidente aos cinco anos de idade. Mas, foi uma diversão e tanto e parecíamos um bando de malvados, avalio hoje, pois a cada alvo abatido em plena correria e vôos desesperados das vítimas, comemorávamos a vitória daquela “tropa” de elite que, ao final, abatera todos os inimigos – os indefesos pintinhos - que eram em número superior a 10 ou 12.

    Mais tarde, naquele mesmo dia,  uma pobre viúva andou procurando os pintinhos, já que a galinha chegara à casa sozinha, sem eles. Minha mãe, que era muito caridosa (sempre tinha um velhinho ou criança amadrinhados para ajudar ou criar), foi procura-los no nosso enorme quintal. E, nada! Os malfeitores, muito ladinos, já haviam dado sumiço nos pintainhos mortos a estilingadas. Não me lembro exatamente se os enterramos ou jogamos na matinha que existia ao lado do curral, onde a galinha estava ciscando os restos de ração caídos no chão e alimentando a sua prole.

    Ao lado de minha mãe e da dona dos pintinhos, “ajudei” a procurá-los, caladinho, desconfiado que só, com medo da surra certa se descoberta fosse a arte do menino custoso.... Procuramos no curral, na matinha, no paiol, no galinheiro, pomar e..., obviamente, nada encontramos...! Enquanto procurávamos, a pobre ex-dona contava que aqueles pintinhos se destinariam, no futuro, à venda dos frangos e as frangas  seriam reservadas para produção de ovos. Quanto mais ela falava mais eu me sentia culpado, com um remorso condoído de saber que aqueles pintinhos se tornariam sustento para seus filhos. Tive vontade de confessar para minha mãe, ali mesmo na presença da viúva, com a esperança de que, talvez,  ela a recompensasse em dinheiro ou com outros franguinhos. Mas, o medo, natural de crianças travessas, foi mais forte. A pisa certeira com a vara de marmelo era mais temida que o suposto assombração, que aparecia na mata nas sextas feiras da quaresma. Era aterrador e portanto, compreensível que tivesse faltado coragem para a confissão. Ficou  apenas o remorso de ver a tristeza daquela pobre mãe que estava cuidando de encontrar o que era seu e que, inexplicavelmente, desaparecera. Ficou apenas o mistério, pois galinha alguma abandonaria sua prole de mais de dez pintinhos e voltaria sozinha para a casa.

    Carreguei esse  pesado remorso em segredo, sem contar a ninguém, até que um dia, passados  mais de 10 anos, uma das filhas daquela viúva bateu à porta de nossa casa para pedir algum dinheiro emprestado para pagar o médico e os remédios necessários para a sua mãe. Ao chegar a casa após o trabalho tomei conhecimento do pedido e exultei de alegria. Pensei comigo mesmo, chegou a hora de retirar aquele pesadelo de minha consciência. Pedi à minha irmã que avisasse à viúva que eu iria providenciar o dinheiro no dia seguinte.

              Quando a garota voltou, na hora aprazada, para buscar o dinheiro, fiz questão de fitar bem o seu semblante humilde e até mesmo acanhado e dizer-lhe: Diga à sua mãe que o dinheiro não é emprestado, pois, estou pagando a ela aqueles 10 ou 12 pintinhos que há muito tempo desapareceram aqui no nosso quintal. Diga, ainda, que eu e os amiguinhos, todos nós muito travessos, havíamos dado cabo a todos eles, praticando a pontaria com estilingue. Peça-lhe também que me perdoe por não ter confessado isto a ninguém, nem mesmo à minha mãe que  falecera, prematuramente, pouco tempo depois do ocorrido. Diga-lhe, finalmente, que o valor daqueles pintinhos, que agora está sendo resgatado, está multiplicado por muitas vezes, mas, ainda assim acho que está aquém do peso do remorso que carreguei por todo esse tempo. Portanto, leve o dinheiro suficiente para pagar a consulta médica e os remédios necessários e que ela se restabeleça logo.

            Ao tomar conhecimento da história do  Dr Howard  Kelly,  veio-me à memória esse caso semelhante que se passou comigo. Para ele foi uma enorme satisfação ter tido a chance de retribuir, com valor financeiro infinitamente maior, um ato, um simples copo de leite recebido, que foi um gesto de amor daquela senhora, havia muito tempo. Para mim também foi uma chance de ouro poder corrigir a estripulia de garoto, que me pesava na consciência por longo tempo e, melhor ainda, ter podido retribuir na hora certa e com valor  muito acima do prejuízo material causado. O meu alívio foi multiplicado pela sensação de ter feito uma ação caridosa, no momento certo, socorrendo a quem muito necessitava.

 Acho mesmo, como disseram ao final daquela mensagem, que "na vida nada acontece por acaso". Deus faz com que as pessoas “apliquem” algum tipo de capital na hora certa, pode ser um copo de leite ou os franguinhos supostamente perdidos ou, quem sabe, apenas uma palavra de conforto a uma pessoa necessitada e, algum tempo depois, elas o recebem de volta, em dobro ou multiplicado muitas vezes. Sim, mas quando receberemos de volta a boa ação que viermos a praticar? Isso não importa. Pratique-a sempre! Basta lembrar o velho adágio: Os filhos colherão os frutos que seus pais plantarem, ou seja, mesmo que a recompensa não seja percebida por você, seus filhos estarão sempre colhendo o reconhecimento, a gratidão daqueles que conhecem ou conheceram as boas ações de seus pais. Mais, ainda, os próprios filhos reproduzirão aquele modo de vida que sempre vivenciaram..., o amor ao próximo, numa vida sadia e emocionalmente equilibrada, de bem consigo mesmo e com a vida ao redor. Mas, por que assim? O cronista que escreveu a história do Dr Howard também tem a resposta: “... O maior erro do ser humano é tentar tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...”.

Ora, vejam a frase do poeta e pensador Caio Fernando de Abreu, acima destacada em epígrafe: Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha”. E ainda acrescento: A vida foi justa comigo, pois o que é plantado no coração jamais sairá. Permanece ali para sempre. As fotos de minha a infância, que ilustram o texto, são em preto e branco, mas as lembranças são coloridas e plagiando o citado poeta, também têm as cores dos arco-íris, bem coloridas. Paguei os franguinhos com amor no coração, em dobro e grato a Deus por ter tido uma infância feliz e ter-me concedido à oportunidade de retribuir a alguém que necessitava de ajuda. Tudo na hora certa. Assim é a vida de quem tem a boa semente plantada no coração, ainda que às vezes erremos, mas sempre haverá a chance de se corrigir e este ato nos redime a alma.

E Salve o dia de hoje, o Dia da Criança!

Brasília, setembro de 2002/ outubro de 2019

Paulo das Lavras  


O menino, em 1948, quando deixou a fazenda aos três anos de idade e mudou-se para a cidade. 
A escola já esperava as irmãs mais velhas. Ali foi morar numa enorme chácara, verdadeira fazendinha,
 seu paraíso, onde recebia os amiguinhos e faziam muitas travessuras.


A casa da chácara, na cidade de Lavras, emoldurada pela belíssima Serra da Bocaina e pelos
 ipês amarelos. O menino deixou a fazenda, mas apenas mudou de endereço,
pois ali também era uma fazendinha. Doce infância em meio à natureza e vários
 amiguinhos que  ali frequentavam e também desfrutavam das delicias daquele paraíso.




 
Na primeira comunhão, aos dez anos. Nos anos da década de 1950 os meninos usavam
 terno completo, com gravata e sapato de verniz, impecáveis, para toda e qualquer
solenidade, até mesmo para as missas de domingo. Adorávamos usar
calça comprida,  imitando os adultos, pois durante a semana inteira
predominavam as calças curtas.



 
Vinte anos depois, os filhos também adoravam os fins de semana na chácara,
onde  inventavam os próprios brinquedos.


As crianças de hoje são mais conscientes no trato com os animais e a natureza em geral


Mesmo mais grandinhos, ainda brincam com os franguinhos, mas com cuidado,

devolvendo-os ao seu ambiente


Brincar com os netos é reviver a felicidade, a alegria da infância.
Tirar os sapatos, sentar no chão é como se nos tornássemos crianças novamente.
O poeta e filósofo Rubem Alves tem razão, pois “os velhos se tornam
crianças e sabem que a vida é alegria”