terça-feira, 24 de junho de 2014

O fogão a lenha de Dona Edna..., histórias da vida



Saudade é um negócio que desperta na gente uma vontade de encontrar não sei o que... não sei onde... para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem sei onde perdi... Assim escreveu, com muita sensibilidade Clarice Lispector. E sensibilidade é coisa inata em alguns poucos privilegiados. Tenho um amigo mestre em fazer a gente sentir saudades. O amigo, Chico do Vale, esse é seu nome, é um fotógrafo profissional que ensina a arte a quem quiser, sem nada receber a não ser o puro prazer de repassar o saber. Tem a capacidade e sensibilidade de captar detalhes e assim provocar os mais variados sentimentos de saudade e amor pela natureza, coisas vividas e pessoas com as quais convivemos. Suas fotos, ao contrário dos dizeres da escritora, provocam saudades bem definidas, sejam da infância na roça ou dos tempos de faculdade e das atividades profissionais. Às vezes nos rememoram locais pelo nosso imenso país ou no exterior, principalmente Estados Unidos e França, paises que tanto ele como eu  frequentávamos por ofício. Essas fotos de lugares e pessoas nos levam ao mais profundo e gostoso sentimento de saudade e amor aos bons momentos da vida. 

Foi bem assim quando fui a uma exposição de fotos promovida pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia – Confea. Lá estavam as fotos de Chico do Vale. Foi o primeiro contato com o artista e ex-aluno. Sim, embora eu não goste de dizer e espalhar isso  para não denotar tanto (nem sou tão velho assim...rsrs), ele foi meu aluno no curso de agronomia da antiga Esal/Ufla, quando ali ministrava a disciplina de construções e saneamento rural. Durante a exposição contei-lhe que havia adorado a foto da Maria Fumaça na estação de Tiradentes - MG e que a mesma fazia-me recordar as longas viagens que fiz, a partir da Estação Costa Pinto, em Lavras, à Itauna onde estudei num seminário. Eram dezesseis horas de viagem percorrendo 510 km serpenteando as serras, rios e o cerrado do sul e oeste de Minas. Para minha surpresa ganhei-a, ao final da exposição, com uma carinhosa dedicatória. A partir de então tenho apreciado várias outras fotos postadas em sua página nas redes sociais. Sempre as copio e guardo com pura nostalgia de lembranças que nos enlevam a alma. 

Mas hoje vamos falar de sua mais recente “provocação saudosa”, o fogão de lenha. Mas, antes de discorrer sobre o fogão propriamente dito cabe dirimir uma dúvida semântica.  Seria fogão a lenha ou fogão de lenha? Tanto faz, pois o uso consagrou ambas as formas e modernamente ainda criou-se outro termo, embora glamorizado para fins comerciais, fogão caipira. E eis que nosso amigo publicou a foto de Dona Edna, sua querida mãe, sentada ao lado de um belo e decorado fogão de lenha, em sua casa na cidade de Itumirim, vizinha à minha terra natal, Lavras. Na ocasião postei o seguinte comentário: “Meu caro amigo, aquela baciinha que aparece tampada com um prato, em cima do fogão, fez-me lembrar o meu prato de comida que era assim acondicionado. Explico. O costume na roça era almoçar 10:30h ou no mais tardar 11:00h , o qual foi trazido para a cidade. Como eu só retornava da escola quase ao meio dia, não alcançava mais o almoço servido à mesa. Naquele tempo não havia o forno de micro-ondas e a solução era fazer o prato, cobri-lo com outro e deixar sobre o fogão, do jeitinho que Dona Edna colocou aquela bacia que aparece na bela foto. Assim o prato permanecia sempre quente, qualquer que fosse a hora, pois o fogo nunca se apagava e melhor, nunca ressecava  a comida, como acontece hoje no micro-ondas, pois ficava coberto com outro prato”.  Não bastasse aquela foto o artista nos brinda, mais recentemente, com outra do mesmo fogão de lenha. Desta vez com a presença de Maria do Carmo a cozinheira “de mão cheia”, como dizíamos em Lavras. E então pedi licença para usar as fotos nesta crônica inteiramente inspirada no fogão de Dona Edna.

Quer coisa melhor que sentar-se à beira de um fogão de lenha e aquecer nossos corações com recordações, viajar no tempo retornando à infância, ouvir o barulhinho do moinho de café afixado no batente da porta da copa para a cozinha da casa da fazenda? E o  cheirinho gostoso e quente do “cafezin” coado as 5:30h da matina, pouco antes de nossos pais iniciarem a jornada com a ordenha das vacas? Ah... que saudade daquilo que um dia pudemos desfrutar e nem nos demos conta de quão gostoso era. Dizem que a saudade que sentimos nem seria das coisas passadas, mas da infância, da juventude que um dia tivemos. Não importa. Doces tempos. Quaisquer que sejam as lembranças elas se tornam  mais doces com as delícias das coisas que nos serviram à época e hoje, portanto, maior é o prazer em recordá-las.  Clarice Lispector tinha razão quando disse em seu poema: “sinto saudades de tudo que marcou minha vida. Quando vejo retratos, quando sinto cheiros, quando escuto uma voz, quando me lembro do passado, eu sinto saudades... Sinto saudades de amigos que nunca mais vi, de pessoas com quem não mais falei ou cruzei... Sinto saudades das coisas que vivi e deixei passar sem curtir na totalidade”. 

Ao ver as fotos postadas pelo amigo parei no tempo. Como seria possível não recordar tudo que vivemos e convivemos ao redor do fogão de lenha? São histórias e histórias. Impossível não relembrá-las, a começar pela figura de uma doce mãe e das marias do carmo que também passaram por nossa vida. E o café coado naquele imenso coador de pano de saco alvejado, suportado por um jirau de madeira, feito ali mesmo na fazenda e que chamávamos de estandarte? E o bule de alumínio ou latão pintado invariavelmente de verde ou quando não, de branco, esfolado e todo enfumaçado sobre o fogão sempre fumegando? E o café da manhã ao lado do fogão ou assentado numa banquinha estrategicamente colocada em sua enorme plataforma posterior que servia de apoio para as lenhas que crepitavam sob  a trempe? E até me lembrei do nome impresso na trempe de ferro fundido: “Usina Queiroz Junior” e que um dia, à caminho de Belo Horizonte para Ouro Preto, não acreditei no que vi: a tal fábrica, Usina Queiroz Junior. Pedi ao motorista para parar no acostamento. Desci e soletrei gostosamente aquele nome, tal qual fazia aprendendo a leitura naquelas letras gravadas em relevo na chapa de 5 bocas do enorme fogão de lenha da Fazenda Retiro dos Ipês. Como não me lembrar do café da manhã, ali defronte àquela trempe, com gostosas broas de fubá assadas no forninho do próprio fogão de lenha, muitas pamonhas, biscoitos de polvilho ou, na falta dessas quitandas caseiras, uma deliciosa farofa de farinha de milho com muitos ovos, mais parecendo uma omelete? Sim, o café era farto, saboroso e nutritivo, pois além das quitandas havia queijo, requeijão, frutas e leite à vontade, fresquinho, recém chegado do curral. 

Mas, para que houvesse o café da manhã, prontinho ali à mesa à beira do fogão, havia antes um detalhe muito importante que os meninos jamais poderiam se esquecer. E como não se lembrar disso ao ver um fogão de lenha crepitando e fumegando? Os meninos tinham a “obrigação”, na tarde anterior, de ajuntar gravetos ou sabugos e palha de milho para que na madrugada seguinte nosso pai pudesse acender o fogo. E ai de quem se esquecesse. Imagine o pai saindo pelo terreiro, no escuro da madrugada (não havia energia elétrica, ainda) e à vezes com chuva, para procurar gravetos e palhas... Sem chances de escapar de um severo castigo dos tempos em que não havia a lei da palmada...rsrs. Mas, continuando com o café da manhã, se quiséssemos engordar ainda  mais a farofa/omelete bastava pegar uma linguiça defumada no varal, vergado pelo peso logo acima do fogão. A fumaça se encarregava de conservar o produto por meses. Isso era muito importante, pois não existiam geladeiras e menos ainda o freezer para congelar as carnes de porco, tão comuns naquela época. As linguiças bastavam ser penduradas acima do fogão e as carnes bem fritas e apuradas eram colocadas em latas de 18 litros, onde se despejava a banha derretida que esfriada se consolidava e conservava por meses. Ah... essas carnes que os cariocas chamam de “carne de lata” e a produzem para venda em todo o país, ainda hoje é servida em Brasília em alguns  restaurantes, uma delicia, sabor de infância. Essas carnes assim armazenadas na despensa da casa grande serviam também para  traquinagens da meninada. Juntos com os amiguinhos visitantes, passávamos na despensa para surrupiar um baita pedaço daquela carne e come-la ainda lambuzada pela branquíssima gordura de porco. Tudo isso longe e escondido dos adultos... Doce farra infantil... Bem, mas essas carnes e a banha de porco eram também preparadas em enormes fogões de lenha, em tachos de cobre de quase 100 litros de volume. Havia toda uma técnica para não se queimar com os “espirros” da gordura escaldante. Coisas que só os adultos podiam fazer, pois aos meninos cabia apenas olhar de longe e cobiçar o dia do “assalto” à despensa na busca de lombo, costelinha, suã e tudo mais que fosse possível pescar em meio à banha branquinha. Esses fogões maiores, para os tachos, serviam também para se fazer as deliciosas goiabadas, bananadas, doces de cidra, de leite, figo e marmeladas. Nesta tarefa os meninos eram apenas intrusos caroneiros por sobre os arreamentos e jacás ou cestos atrelados às cangalhas dos cavalos, que seguiam em fila, conduzindo as goiabas colhidas nos pés nativos das pastagens.

E assim vão surgindo, brotando em gostoso deleite as reminiscências da infância ao lado do fogão de lenha que servia também para nos aquecer nos dias  friorentos do inverno do sul de Minas. Nas altitudes de 800 a 1.000 metros as temperaturas beiravam o zero grau com constantes geadas. Aliás, por falar em aquecer, as serpentinas embutidas no fogão de lenha aqueciam a água 24 horas ao dia. Tomar banho, lavar as louças ou simplesmente escovar os dentes nas friorentas manhãs eram atividades bem mais agradáveis com aquela água quentinha. Ah, ainda me lembro daquele conforto quase indispensável nos frios invernos serranos. Acho mesmo que quem não tem saudade não viveu ou já morreu por dentro, o que é pior. É bem assim mesmo e busco apoio para essa afirmação no poeta Bastos Tigre, que escreveu:  
  Infeliz de quem vive sem saudade,
              Do agridoce pungir alheio às penas,
              Sem lembranças de amor e de amizade,
              Hoje vivendo o dia de hoje, apenas.

         Feliz você, amigo Chico que, além de registrar com fotos, pode ainda usufruir desses doces prazeres. E mais doce que tudo é o amor que Dona Edna pode lhe dar  e por cima, o carinho da irmã de coração, Maria do Carmo. Imagino, com sincera admiração que ambas aquecem mais o seu coração do que as chamas daquele tradicional fogão de lenha que também nos aqueceu por tanto tempo. Obrigado por  nos  proporcionar essa oportunidade de relembrar os doces tempos da infância, como bem cantaram e prosearam o escritor Marcel Proust em sua obra “Em busca do tempo perdido” e o poeta Mário Quintana. O primeiro, Proust, disse que "os verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o poeta Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha casa em que nasceu". Certamente foi por isso que construí inteiramente uma chácara na zona rural de Brasília, com montanhas ao redor, coisa rara no planalto central, mas que faz parte da alma e do sentimento dos mineiros das alterosas. Construída e enfeitada com bonitos jardins, lagos, água corrente e até carro de boi e arado de aiveca trazidos do torrão natal. Não faltou nem o moinho de brinquedo movido pela bica d´água. O café mereceu destaque especial com vários pés em franca produção, maquinário de pequeno porte para beneficiamento dos grãos, torrefação e moagem. Há também um antigo torrador manual usado em fogão de lenha, tal qual aquele fumegante de sua foto artística. Tem ainda a máquina manual para moagem da cana e produção do caldo tão apreciado pelas crianças após uma pescaria nos lagos cheios de lambaris e piabinhas.

Aqui deixo o meu abraço ao eminente amigo que com suas belas fotos tem produzido o mesmo efeito que Proust narra em sua obra acima citada. Nela o autor come um bolinho “madeleine” molhado no chá e este faz sua consciência mergulhar no passado e esquecer a dura circunstância de que o tempo, com suas horas e dias passam inexoravelmente. Não tem como fugir do ontem e do amanhã... Porém, o bolinho madeleine lhe dera força para sentir-se  “acima do tempo”, com uma pderosa alegria que o arrebata e o faz reconstituir toda sua vida, desde a remota infância até a maturidade.  Assim como o elixir madeleine transportou e fixou Proust na infância e na adolescência, tenho agora as fotos do amigo Chico que me levam à essas mesmas reminiscências dos tempos que não voltam mais. Sim, não voltam, mas a gente os reconstrói a cada momento com a velha casa em que nascemos e que carregamos para sempre, onde quer que estejamos, em Viçosa, Itumirim, Lavras ou Brasília.

Também abraço Dona Edna e a madrinha da culinária no fogão de lenha, Maria do Carmo que por mais de 50 anos integra sua família. Encerro com a frase que abre esse texto e que fora quebrada várias vezes com as fotos feitas pelo amigo Chico do Vale que tem nos mostrado o contrário, como a dizer:  bem sei o que lhe faz recordar coisas e pessoas com as quais vivemos, envelhecemos e muitas delas desapareceram sob nossos olhos tomando outros rumos.

Saudade, repito, é um negócio que desperta na gente uma vontade de encontrar não sei o que... não sei onde... para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem sei onde perdi... Por isso, Mário Quintana recomenda que nada melhor do que carregar na memória a velha casa onde nascemos... e o fogão lenha vem junto!

Brasília, 24 de junho de 2014

Paulo das Lavras


D. Edna, mãe do amigo  Chico do Vale  e seu fogão à lenha.
“...ôh, Chico, aquela baciinha que aparece tampada
 com um prato me fez lembrar da infância...”, disse o
    Menino das Lavras.




Chico Do Vale escreveu:Obrigado aos amigos, pelos comentários, o carinho pela Maria do Carmo. Paulo Roberto, a  Maria do Carmo é uma exímia cozinheira, amiga da nossa família, que sempre está conosco nos melhores momentos que passamos em Itumirim. Quando nos reunimos sempre é ela que é chamada para fazer uma comida deliciosa para nós. Tem sido assim há muitos anos. A Maria do Carmo nos acompanha há mais de 50 anos, desde quando eu era menino. São ótimas lembranças e por ela temos o maior carinho e amizade...”. 
 



O aroma do café coado naquele enorme coador de saco alvejado tomava conta de
toda a casa e nos despertava, ainda que muito cedo, como era o costume nas fazendas.
(Foto de Chico do Vale)
 



                                  O torrador de café, manual, chiava e fumegava exalando um aroma inigualável
do “cafezin” do sul de Minas. Prática que o meninopara Brasília.  (Foto: Chico do Vale)




Grande Chico do Vale – recebendo a Medalha de Ouro 2013
 Confea - Mérito por Serviços Relevantes prestados à Nação.

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O café arábia,variedade “Rubi de Lavras”, produzindo
em Brasília, para não “perder o costume” mineiro. 


                Foto da Maria Fumaça, com dedicatória de Chico do Vale. À direita, na tela do computador, a
                      Estação Costa Pinto, onde o menino embarcava para a longa viagem até o Seminário 
           





O menino no Seminário no dia em que o Brasil foi campeão na Suécia. É o terceiro em pé na escadaria à esquerda. Na foto à direita, é o primeiro à esquerda, de costas, com o braço levantado. Camisa xadrez, blazer de brim cáqui e corte de   cabelo à Príncipe Danilo, moda nos anos 1950/60. Praticamente ficavam só os cabelos da parte de cima da cabeça, com as laterais totalmente cortadas à máquina. Hoje, 56 anos depois, alguns jogadores da Seleção Brasileira estão usando o mesmo corte, entre eles, Oscar e Thiago Silva.  Os padres holandeses eram os maiores incentivadores da prática de esportes. Futebol à frente. Padre Luiz Turckenburg, de batina branca, era nosso goleiro.





A casa da fazenda Retiro dos Ipês, em Lavras,  lembranças da garupa do cavalo com os jacás de
goiabas, o café com quitandas, os doces, carne na lata e linguiças penduradas no fogão





               Doces de goiaba e de...                                       



...figos, feitos no fogão de lenha





carona no cavalo com os jacás de goiabas,




         As carnes mergulhadas na gordura de porco solidificada                



Carne na lata, comercial



        Forninho e serpentina, com o cilindro de água quente ao alto.          
Água quente no banho e na pia, 24 horas



Varal de linguiça à defumar



O bule sobre a trempe, café quente o dia todo