sexta-feira, 31 de julho de 2020

A viagem de trem para o distante Seminário




Parte III de: Um Seminário na década de 1950 
 (Veja Nota Explicativa ao final, com  a estrutura completa do livro e links de partes já publicadas)



O menino que embarcou em Lavras, no ano de1958, numa Maria-fumaça como esta, com destino ao longínquo Seminário de Itaúna,  reviveu sua história 60 anos depois, na mesma estação de Lavras, em uma locomotiva Baldwin, ali estacionada como patrimônio da cidade. A viagem teve um longo percurso e mais longo ainda,  o tempo já decorrido desde então, mas, as memórias, marcantes na vida do menino, não se esmaeceram com o tempo. Ao contrário, estão vivas, vivíssimas e têm as cores dos arco-íris, bem coloridas quando afloram na alma e alegram o coração.
Foto do autor – Lavras, 2018


Foi uma longa viagem, de dezesseis horas, no trem Maria-Fumaça cortando as montanhas, rios, pastagens e jazidas minerais do centro-oeste de Minas, partindo de Lavras com destino à cidade de Itaúna. Se a viagem foi longa, mais demorados ainda foram os preparativos para a viagem do menino que partia para o distante Seminário. Foram pelo menos dois meses, desde o dia em que o Pe José das Crianças esteve com a família, combinou a data da viagem e entregou a lista do enxoval que deveria ser providenciado. Todos se empenharam nos arranjos para a sonhada viagem do menino. Durante todo aquele tempo predominavam, entre todos, a alegria e o orgulho por se tratar da viagem do “futuro padre da família”. Aliás, naqueles bons tempos toda família almejava ter pelo menos uma das quatro profissões em casa: Médico, Engenheiro, Advogado ou Padre. Certamente a profissão de padre era a mais importante para as famílias católicas, pois cuidava do que há de mais caro, a religião e a fé em Deus. A tradição portuguesa, de grande religiosidade, era um costume de meus pais, ambos descendentes de imigrantes portugueses que chegaram a Lavras a partir de 1750, conforme registros genealógicos das famílias Salles/Pádua/ Costa e Abreu/Gaspar do ramo materno e Pereira/Abreu do lado paterno. Todos seguiam os costumes portugueses, da religiosidade da crença nos santos ao cultivo da terra, o gosto por certos alimentos, a criação de animais e até mesmo de ovelhas para produção de lã  com tecelagem de lindas colchas de variegadas cores e mosaicos, próprias para enfrentar o rigoroso frio das montanhas do sul de Minas.


   Naqueles idos da década de 1950 o comércio e a indústria em geral eram ainda muito incipientes. Assim, a maioria dos vestuários era feita por costureiras da própria família ou então contratadas por diária, em casa. Era comum se comprar peça inteira de tecidos para a confecção de todas as roupas pessoais da família e ainda as de cama e mesa. As peças inteiras de tecidos finos podiam ser compradas na loja atacadista Dessimoni ou varejistas como as Casas Pernambucanas e a Maracanã. Havia uma marca de cretone muito especial, que trazia um canário amarelo estampado na embalagem e era a preferida para as roupas de cama. Para o enxoval do seminarista não foi diferente. Os tecidos foram adquiridos nas principais lojas do ramo em Lavras. Além das já mencionadas, havia ainda a Casa Vasco, Casas Cherem (Sr. Tufi Cherem),  Tecidos Paulo Massimo e Casa Luiz Cherem, onde comprávamos os ternos de casemira inglesa. Sim, crianças usavam terno e gravata nos idos da década de 1950 e era assim que nos trajávamos aos domingos para ir à missa ou qualquer festa. As meninas sempre de vestidos rodados, sapatinhos de verniz, fechados e meias brancas. E aqui abro um 

 Casa Maracanã, especialista em tecidos.
Foto: anos de 1950 - arquivos de Renato Libeck                  


parêntesis para dizer que essa loja, a Casa Luiz, pertencia antes ao Sr Nicolau Cherém, pelo menos desde os anos de 1930, bem ali quase defronte à Distribuidora de energia dos bondes. Nessa casa comercial, nos fundos de seu quintal, o Sr Nicolau fazia a gentileza a meu pai e tios, que vinham à cavalo das fazendas, deixando  os animais “estacionados”, enquanto iam às compras. Cabe lembrar ainda, que esse sírio-libanês, imigrante que chegou à cidade no início de século XX e muito honrou à comunidade que sempre serviu, era o pai dos demais comerciantes, lojistas já citados, Tufi e Luiz, também era sogro de outro comerciante sírio-libanês, o Sr Antônio Curi. A loja deste, a famosa Casa Curi, situada bem em frente ao jardim central da cidade, era especializada em confecções, calçados e roupas para esportes. Aliás, o vestuário para esportes foi um dos mais importantes requisitos para o menino que foi, pessoalmente, à loja e ali escolheu as chuteiras, meias e camisas de futebol (sempre do time preferido, o Flamengo), que fizeram muito sucesso entre os meninos do internato. Não faltaram nem mesmo os Keds (alguém sabe o que é isso? Nos anos 50 ainda não existia o tênis, apenas este, o keds).

 
Casa Luiz, 1ª à direita, ternos de casemira inglesa
Foto: anos de 1950 - arquivos de Renato Libeck

                             

A cidade de Lavras era pródiga em lojas do ramo de confecções e calçados, pois dentre tantas que gozavam da preferência da família do menino, havia ainda a Casa Rafe Haddad e Casa Alberto Murad. Eram as principais lojas da cidade e apresentavam bons sortimentos e sempre atualizados. Um grande lançamento de calçados masculinos, ocorrido no ano anterior, foi a marca Vulcabrás, cuja propaganda afirmava que o solado de borracha vulcanizada não acabava nunca, macio, antiderrapante e impermeável. Durava o ano inteiro, mesmo com os meninos chutando pedras pelo caminho. Bem engraxado brilhava como nenhum outro, um luxo! Assim propagandeou o Sr Antônio Curi. Gostei, pois era a ultima “novidade” e escolhi um par, de cor preta. No Seminário só o usava aos domingos, dia de missa e com uniforme de gala dos seminaristas, calça branca, cinto preto e camisa social de manga comprida e também branca, chique no último, como se dizia à época. E quando, então, era escalado como coroinha para ajudar a missa solene de domingo, aí, sim, o sapato era exibido e reconhecido pelo solado inteiramente de borracha ranhurada (tratorada, se diz hoje),  algo incomum nos tempos em que se usava reparar os calçados com meia sola e salto Amazonas. Aquele belo solado, todo cheio de sulcos antiderrapantes, ficava inteiramente exposto pelo menino ajoelhado, de costas para a nave da capela onde os outros setenta seminaristas assistiam ao culto. Além de ser bonito, moderno e cobiçado, servia de alerta para os demais..., podia-se correr mais velozmente e ganhar qualquer pique-pega, contra os demais que usavam sapatos de solados de couro curtido, cilindrado, liso e escorregadio. No cascalho ou no piso de cimento que tivesse alguns grãozinhos de areia..., o tombo na corrida era certo para quem não tinha o “must” daqueles tempos, o Vulcabrás. Alheio às tendências e exaltação da moda que aliás, eram até muito comedidas à época, o menino somente via e sentia essas qualidades competitivas nas corridas. Pequenas coisas, mas num internato, onde a concorrência era grande, fazia diferença e dava mais confiança à criança de apenas 12 anos, sozinha, longe de casa, daqueles que sempre defendiam os menores.


 O famoso sapato Vulcabrás -Foto: Internet 


 

Além dos tecidos e acessórios para a confecção do vestuário, havia ainda que comprar os chamados aviamentos como linhas de variadas cores, botões e fechos diversos.  Também nisso a cidade era bem servida com o Bazar Tip-Top. As melhores galochas (alguém sabe o que é isso?) eram encontradas na Casa Alberto e também na Casa Curi. Por outro lado, havia também as costureiras para todo tipo de roupa, incluindo as íntimas, tanto masculina como feminina. Sim, naquele tempo as costureiras faziam roupas íntimas para toda a família, as famosas cuecas samba canção e também peças femininas como as combinações, camisolas e outras.  A confecção de camisas era comum em casa. Mãe e uma das irmãs, Mariinha, a mais velha, dominavam a arte do corte e costura tão valorizada quanto à arte culinária para as chamadas “meninas prendadas”. Saber e dominar essas artes eram pré-requisitos indispensáveis para as moçoilas, verdadeiros passaportes para um bom casamento, diziam as ciosas mães à época, pensando no futuro das filhas. Bem, assim nossa casa se transformou em verdadeiro ateliê de costura, contando até mesmo com uma costureira profissional especialmente contratada para a confecção de calças e blazers do uniforme do futuro seminarista. Dúzias de peças foram confeccionadas e lembro-me, especialmente, de uma linda camisa xadrez, de cores bem suaves e harmonizadas com listras vermelho goiaba, verde musgo, azul e branco. Foi sugerida por Dona Margarida, ex-professora do menino, mãe de outro seminarista, também em Itaúna havia um ano, Miguel Cesar Pedrotti Massimo. Era esposa do proprietário da loja Tecidos Paulo Massimo e ali foi comprada boa parte dos tecidos para confecção de camisas, pijamas e outras peças. Aquela camisa xadrez era linda, a preferida do menino e aparece em quase todas as fotos de então.


O menino, terceiro em pé na escadaria à esquerda da primeira foto e  de costas, na segunda foto (primeiro da esquerda, com braço levantado), comemora o 5º golo da Seleção Brasileira na Copa da Suécia. Campeão mundial de Futebol - 1958. Mês de frio, alguns trajavam uniforme comum, calça e blazer de brim caqui. O primeiro, de frente, à direita da primeira foto é seu coleguinha Miguel Massimo Foto: junho de 1958 - arquivos do Colégio Sant´Ana - Itaúna


   Ainda no rol das lembranças do enxoval, ganhei, com grata surpresa, 60 anos depois, uma das colchas de lã confeccionadas por minha mãe. Foi presente de minhas irmãs, uma delas, Mariinha, a costureira de então que confeccionou todas as camisas, pijamas e tudo mais e a outra, Dilma, foi quem me acompanhou na viagem para o Seminário. Guardaram-na  especialmente para mim, ali no quarto da fazenda onde nasci e por muito tempo, pois somente agora, recebi o presente. Que belo e sentimental presente, de valor afetivo incalculável, pois ainda conserva a etiqueta bordada com minhas iniciais de identificação, tal qual requerido pelas normas do internato do Seminário. Aquelas colchas de lã tinham o cheirinho da família e o menino ficava a se lembrar, nas frias noites do internato, de todo o processo de produção artesanal, cuja maior parte se passava em casa com sua participação e de toda a família. Assim, aquelas colchas de lã, com cheirinho e gosto de casa, aqueciam mais a alma do que o corpo


Tudo pronto, enxoval completo e conferido pela lista de encargos deixada pelo missionário holandês, roupas experimentadas inúmeras vezes, lavadas, passadas à ferro de brasa pela Nenzica, fiel empregada que nos acompanhava desde os tempos de criança, quando nos mudamos da fazenda para a cidade em busca de escolas para as irmãs mais velhas (1948). Tudo dobrado e acondicionado com carinho no enorme baú e na mala de mão. . Baú? Sim, também conhecido por “canastra”, semelhante aos baús que guardavam o enxoval das noivas e foi necessário um bem grande para acondicionar o enxoval completo, que incluía além das roupas pessoais, lençóis, fronhas, travesseiros, colchas, toalhas de banho e de rosto, cobertores shorts de banho, calçados e outros objetos, além do material esportivo que incluía chuteiras, tênis (keds) meias, sungas, joelheiras, tornozeleiras esportivas e tudo mais.  Esta, aliás, era uma atividade muito comum naqueles anos de 1950, preparar o enxoval para o filho que iria para o internato, pois poucas eram as cidades que ofereciam educação completa de nível médio. Lavras tinha os melhores educandários  da região, com grande número de alunos internos no Gammon, Lourdes Aparecida e Kemper, além da própria Esal, hoje Ufla. Portanto, era comum ver, na cidade o constante transporte desses baús com os enxovais da garotada que chegava e saía dos internatos dos colégios. Foi providenciado um baú, novo, com capacidade para 40 kg. Adquiriu-se, também uma mala de viagem, especialmente para o menino. O Sr Gil Leiteiro, vizinho e amigo da família e pai de Pedro Júlio de Souza, que já estava há mais tempo no Seminário, encarregou-se de fazer uma bonita etiqueta de couro curtido onde escreveu o nome do menino e o endereço do seminário. Tudo grafado com tinta nanquim e letra impecável. Lembro-me que ele, muito alegre, aproveitou o baú e nele colocou uns mimos para o filho que também estava no seminário e ainda perguntou se havia gostado da vistosa etiqueta de couro curtido, recortada na Selaria Guimarães, do Sr Oswaldo Guimarães,  ali mesmo, bem pertinho, na Rua Melo Viana. Afixou-a no baú, que já estava todo preparado, com o enxoval cuidadosamente acondicionado e ele mesmo, o Sr Gil Leiteiro, foi despacha-lo como carga desacompanhada, pela ferrovia RMV- Rede Mineira de Viação. Dia seguinte à chegada ao Seminário lá estava o baú. Pedro e Miguel foram supervisionar a arrumação das roupas no armário de alvenaria, ao lado da cama do imenso dormitório coletivo. Era uma “cama patente”, de molas, bem estreita e com minúsculo espaço entre elas.









O baú, ou canastra para o enxoval do seminarista. 40kg de carga despachado pela ferrovia. Dia seguinte já estava no destino, o Seminário de Itaúna que se encarregou de retirá-lo no depósito de carga da estação do trem da Rede Mineira de Viação – RMV.

A mala de viagem dos anos de 1950 era confeccionada em papelão encerado, resistente e protegida por cantoneiras. Ficava sobre o pequeno armário  de alvenaria, de 1,20m de altura por 0,60m de largura, que delimitava o espaço entre camas. Permaneciam fechadas, limpas e fiscalizadas periodicamente pelo padre encarregado. 

Foto: Internet

 

A partida e a longa viagem

Finalmente, chegou o dia da partida, naquele mês de fevereiro de 1958. Acabou a euforia do ateliê de costura e demais preparativos. Tínhamos todos que encarar a hora do adeus. Foi dura demais para a família, uma realidade que nunca tinha sido experimentada antes. Morávamos na ampla casa da chácara, de mais de 20 hectares, situada no segundo e último quarteirão da Rua Progresso (início do cruzamento com a Rua Sabino Lustosa, antiga 15 de Novembro) com belíssima vista para a majestosa Serra as Bocaina. Havia um extenso pomar, horta, animais domésticos, matinha nativa e nascente de fonte cristalina. Tudo isto situado a 200 metros da Rua Otacílio Negrão, principal artéria que ligava o quartel do Batalhão ao centro da cidade e bem próximo à Estação Costa Pinto, de onde partiria o trem. Éramos sete irmãos, os pais e mais duas empregadas agregadas à família desde muitos anos, antes mesmo de nos mudamos para a cidade, o que, aliás, ocorrera dez anos antes. No dia da partida todos estavam em casa além de tios e primos mais chegados. A plataforma da Estação ferroviária de Costa Pinto parecia menor naquele dia. O campinho de futebol, que era o pátio da Estação e onde o menino fazia as peladas com sua bola de capotão (raras naqueles tempos), ficaria um bom tempo sem a algazarra de todas as tardes, justamente naquele horário de partida do trem conhecido apenas por Noturno.


O trem a Maria Fumaça que fazia a linha de Cruzeiro-SP a Belo Horizonte partiadaquela cidade 

Casa da chácara, onde morou o menino e a Estação Costa Pinto- Lavras, na década de 1950. Ao fundo da estação o túnel.   Foto: arquivos de Renato Libeck


de origem, diariamente às 10:00 horas e passava pela estação Costa Pinto  por volta das 17:30 horas. Chegou no horário naquele dia 10 de fevereiro de 1958, uma segunda feira. O bichão, era assim que os mineiros costumavam chamar o trem de ferro (a palavra “trem” servia para nominar qualquer coisa, menos o próprio...), chegou rugindo, esbaforindo fumaça preta pela chaminé e vapor branco da caldeira aquecida pela fornalha abastecida com lenha. As toras de madeira, não muito grosas e que eram atiradas diretamente na fornalha, ficavam acondicionadas no carro reboque, preto, de metal e que integrava o conjunto da Baldwin Machine, a famosa locomotiva importada da Filadélfia, estado da Pensilvânia/EUA. Muitos anos mais tarde, em suas constantes viagens de executivo internacional da área educacional na Michigan State University, o menino ao sobrevoar as cidades industriais da Pensilvânia, Scranton, Pittsburgh e Filadélfia, nas rotas Detroit/Washington e Detroit/Nova York, ficava a observar aqueles lugares cujos nomes tantas vezes via e lia, com acentuada curiosidade, nas etiquetas dos fabricantes de máquinas de uso na fazenda e principalmente daqueles “bichões” que soltavam fogo e fumaça, as locomotivas Baldwin, ali fabricadas. Ao avistar aquelas cidades, berço da indústria norte americana, um misto de satisfação e dolorida nostalgia abatia sobre o menino. Satisfação por ali estar trabalhando, sem nunca ter imaginado que um dia passaria pelos lugares que povoaram sua imaginação de criança. Mas, a presença daqueles nomes de cidades gravados nas máquinas e na sua memória, destravavam o gatilho das reminiscências da infância em doída nostalgia da alma. Ali, na solidão, à bordo de um avião, as lembranças do fundo de seu inconsciente faziam-no derramar lágrimas silenciosas de pura saudade da pátria, do berço e dos felizes dias da infância na fazenda ao lado daquelas máquinas, a Briggs & Stratton (motor estacionário que movimentava a enorme ensiladeira Libck) e a Baldwin Machine, a famosa barulhenta e esbaforida Maria-fumaça que passava próximo à sua casa na cidade e um dia o levou para o Seminário em inesquecível viagem.

       Mas, ali na Estação Costa Pinto, no dia da partida para o Seminário, passada a tensão daquele barulhão com vapores escapando da caldeira fervente, seguiu-se o corre-corre para pegar os melhores lugares da primeira classe com suas poltronas estofadas. Mais que ligeiro o menino subiu as escadas esquivando-se dos poucos e também apressados passageiros que ali desembarcavam. Acondicionadas as malas no bagageiro interno, descemos novamente para as despedidas finais com abraços apertados e muitas lágrimas daqueles que ficavam. No trem, à janela, num dos oito vagões de passageiros, o menino ouviu o apito final anunciando a partida e acenou pela última vez para os familiares que ficaram em prantos. Com o ombro para fora da janela e acenando ainda viu a mãe acenar-lhe e essa foi a última lembrança que o menino guardou daquele dia,   até que seu pai o puxasse para dentro, diante do iminente perigo do estreito túnel que se aproximava, a pouco mais de 200 metros após a estação. Passar naquele túnel, curto, mas escuro e muito estreito, foi uma experiência assustadora para o menino, pois a turbulência do choque do deslocamento de ar com concentração de fumaça e fuligem negra e ainda o ensurdecedor barulho, reverberando pelas paredes, faziam com o trem trepidasse parecendo, estar dentro de uma tempestade de trovões. Passada aquela surpreendente sensação, o menino caiu na real e chorou, pois até então não tinha se dado conta da iminente separação. O adeus à família, mãe, irmãs, tios, primos e principalmente o irmão mais novo, companheiro de peladas de futebol ali naquele campinho da estação. Quantas vezes os dois meninos tiveram que recolher a bola e correr das ameaças de grandões que teimavam em atrapalhar o jogo dos meninos e agora tudo ficaria para trás. Todo esse turbilhão de emoções abalou o menino.  Seu pai e uma das irmãs, que o acompanhavam na viagem, ficaram mudos, compungidos, mas logo trataram de consolar o menino, que antes estava alegre com a viagem, agora se encontrava ali, triste e com lágrimas nos olhos. Nunca mais olhou um trem sem que lhe viesse à mente aquela dolorosa despedida. Seus apitos noturnos, ouvidos pela janela do dormitório coletivo do Seminário, sempre lhe despertavam a triste lembrança da despedida e lágrimas silenciosas corriam na escuridão da noite solitária, embora rodeado de coleguinhas. Da mesma forma, ainda hoje, os longos e tristes apitos de navios que partem do porto os levam à profunda nostalgia, relembrando a despedida do menino que partia para um longo e demorado período, longe de tudo que conhecia e de todos que lhes eram caros. E esses "surtos" nostálgicos se manifestavam em maior intensidade nos portos do exterior, onde além dos apitos, via a bandeira brasileira tremular em seus mastros.  Marcas indeléveis na alma do menino, com lágrimas incontidas, toda vez que a cena se repetia, principalmente em Nova York, por onde sempre passava à serviço em longas temporadas. Ainda hoje, quando assiste  cenas semelhantes em filmes, o mesmo sentimento prevalece. Só mesmo Freud para explicar o quão forte foi aquela ruptura afetiva na criança de então.

 

 
  Aquela era a primeira vez que entrava naquele trem, do qual ouvia sempre os seus apitos de aproximação ou partida da Estação Costa Pinto e o contemplava, diariamente, da sacada de sua casa não muito distante dali. Às vezes deixava o jogo de futebol no campinho de chão batido da própria Estação para se aproximar da plataforma e espiar o movimento dos passageiros. Era, portanto, um velho conhecido aquele bichão que cuspia fogo e fumaça fuliginosa que até "queimavam" os meninos, quando dele nos aproximávamos, em movimento ofegante subindo a rampa para chegar à estação, naquele mais de um quilômetro da linha férrea que fazia divisa com nossa chácara. Por ficarmos muito próximos à ferrovia, o maquinista ainda dava fortes e estridentes apitos, como a nos dizer "saiam da frente". Não raras vezes sentíamos uma descarga de vapor quente, saída da caldeira, fazendo-nos instintivamente recuar dos trilhos, ainda a tempo de ver a cara de bravo do maquinista.  Era, sim, um velho conhecido aquele trem, mas nunca tivera o privilégio de nele viajar. Por isso a alegria e o elevado grau de excitação minimizaram o sentimento de tristeza naquela despedida com apertados abraços e soluços de todos. A mãe e a irmã mais velha, Mariinha, que participaram mais ativamente nos preparativos do enxoval do menino, ficaram inconsoláveis, aos prantos, até pelo menos na manhã do segundo dia, quando retornaram o pai e outra irmã que o acompanharam até o Seminário. A notícia trazida por eles de que o local, as instalações e os padres eram muito bons e até se encontraram como os outros dois amiguinhos, vizinhos da cidade natal do menino, tranquilizaram a família. No trem, o menino logo se interessou pelo trajeto da ferrovia e a viagem mais parecia um passeio, repleto de novidades, até porque estava acompanhado de seu pai e uma de suas irmãs, Dilma. Viajava também no mesmo vagão o tio Cícero de Castro. Iria para Campos Altos cuidar de sua fazenda de produção de café. Tudo conduzia e induzia o menino a pensar que estava num passeio e não em viagem de ida para um longo período de internato longe dali e de todos. Mal sabia ou imaginava o quão dolorida seria aquele exílio que ele próprio escolhera em nome de uma vocação religiosa.

        As duas cidades, Lavras e Itaúna ficavam muito distantes, mais de 500 km pela tortuosa ferrovia, mas  tudo era novidade para o menino que, obviamente, ainda não caíra na realidade do que o esperava. Passar sob o túnel enfumaçado logo após a partida, a vista da cidade por um ângulo diferente, por trás, no antigo leito da ferrovia que ligava a estação Costa Pinto à Estação de Lavras. Hoje esse antigo leito da ferrovia foi transformado em avenida, a Perimetral, onde se situa a Prefeitura Municipal e o parte do Bairro Centenário. A vista da cidade por aquele ângulo era totalmente nova, diferente, com  a imponente torre da Igreja Matriz, as belas e altas palmeiras imperiais da Praça Augusto Silva e do Colégio Kemper, tudo muito diferente, embalado pela velocidade, o barulho característico da maria-fumaça. Seguiam-se o Seminário Dehonista e o portão da velha ESAL que naquele exato ano de 1958 completaria seu cinquentenário de fundação. O menino que queria se tornar padre nem imaginava que seis anos depois ali estaria matriculado no curso de agronomia. Nunca pensou que, em vez de ser pastor de almas seria um semeador de sementes e cuidador de rebanhos, mas não rebanhos de almas e sim na pecuária, pois veio a se tornar um engenheiro agrônomo que produzia alimentos e professor que cuidava de ensinar essa arte aos estudantes – a agronomia. Nunca, jamais, naquele dia, imaginou o menino, que alguns anos depois, passaria milhares de vezes sob aquele portão da cinquentenária Escola Superior de Agricultura de Lavras - Esal.

 Na sequência, o trem foi esbaforindo fumaça e apitos morro abaixo, tendo à esquerda o estádio do Gammon, depois o campo de futebol da Associação Atlética Ferroviária e a primeira parada na Estação de Lavras. Um último olhar para a extensa rua da estação, que prosseguia até o alto da cidade e o trem apitou, partindo em direção a Ribeirão Vermelho. A maior sensação foi passar sobre a histórica ponte metálica do Rio Grande que estava muito cheio e os pilares e arcos que a sustentavam pareciam quase submergir nas corredeiras do rio. Ainda foi possível apreciar aquele bonito e belo cenário daquela longa tarde/noite de verão, embora o menino se assustasse com o barulhão de ferro muito pesado rodando sobre  os trilhos de ferro, suspensos e quase tocando as águas do caudaloso  rio. Em Perdões já era noite quando ali chegamos. O pai e a irmã do menino já estavam pensativos, mas ele continuava aceso, excitado com as novidades que desfilavam pelo caminho. Acompanhado pela irmã, deixou o vagão da primeira classe e visitou o vagão restaurante onde serviriam o jantar dali a pouco. Uma longa noite os esperava e o trem seguia contornado morros e rios passando em mais de duas dezenas de estações. À noite, quando o trem fazia uma curva mais fechada, era possível ver as chispas de fogo saindo da chaminé da Maria Fumaça, ouvir o vapor sibilante e os apitos de advertência nos cruzamentos de estradas e chegada às cidades. 


Entre um cochilo e outro o trem ia parando quase que de meia em meia hora. O traçado da Rede Mineira de Viação-RMV seguia para o oeste, em direção ao triangulo mineiro, paradoxalmente em rumo oposto à cidade de Itaúna. Assim, o percurso passava pela cidade de Formiga, atingia a estação de Garças de Minas, hoje Iguatama, onde muitos passageiros faziam a baldeação para Campos Altos e demais cidades do triângulo mineiro. O tio Cícero se despediu de todos e ali desembarcou para fazer a conexão ou baldeação como se dizia à época. Era 01:00 hora da madrugada, do dia 04 de fevereiro, como mostrava o relógio da estação. A partir dali, então, a ferrovia guinava para a direita, em rumo oposto, para o leste, alcançando Divinópolis e  depois a cidade de Itaúna. O percurso Lavras-Itaúna somava 513 km de distancia, com exatas 16 horas de duração de viagem à bordo da mesma Maria-Fumaça com seu característico barulho. Pelas estradas de hoje e inexistentes à época, faz-se a viagem com duas horas de duração, pela rodovia Fernão Dias, inaugurada dois anos depois daquela primeira viagem de trem.



E o trem maria-fumaça prosseguia noite adentro com seu barulhão dizendo no imaginário das crianças:  “vim-da-barra-tô-cansado..., vim-da-barra-tô-cansado”..., ou então como escreveu o poeta Manuel Bandeira: “café com pão, café com pão, café com pão...” e nós plagiávamos o poeta acrescentando: café com pão, manteiga não... café com pão manteiga não... Além das chispas de fogo que iluminavam a noite escura em verdadeiro espetáculo pirotécnico, lembrando as noites de São João, o bichão esbaforia e sibilava vapor pelas laterais quando encontrava uma subida mais forte. Produzia, ainda, um matraquear característico das rodas dos vagões sobre os trilhos da estrada de ferro. Era um infindável e ritmado tralalaco - traco..., noite inteira e que acabava por se transformar em canção de ninar e que induzia ao sono do menino já emocionalmente cansado, com o pensamento em casa, nos familiares que ficaram para trás.

  A noite terminara e o dia amanhecia com os primeiros albores da aurora. Já se podia distinguir as silhuetas das montanhas que começavam a se delinear no horizonte. O menino irrequieto colocava a cabeça pela janela e sentia o frescor da neblina, ou cerração como costumávamos dizer nas manhãs chuvosas de verão ou nos rigorosos invernos do sul de Minas, quando nem mesmo os aviões da Nacional conseguiam pousar em Lavras naquelas friorentas e úmidas manhãs. A partir das seis horas era servido o café da manhã e lá já estávamos, no vagão restaurante, saboreando um quentinho e gostoso café com leite e acompanhamento. Não gostava do pão. Era duro, cascudo e mais se parecia com um pão do dia anterior. Preferia os queijos, biscoitos  e frutas. Por volta das nove da manhã o trem, que parecia ofegante embora os passageiros estivessem ansiosos para a chegada, passou pela última estação, Santanense e finalmente chegou às 09:30 horas na Estação de Itaúna, o destino final daquela longa viagem de mais de  mais de dezesseis horas. Um périplo que ficou para sempre marcado na memória do menino, aquele constante tralalaco das rodas do trem sobre os trilhos de ferro, o traçado da ferrovia serpenteando rios, montanhas e pequenas matas ciliares margeando os córregos e nascentes e cruzando 17 cidades com paradas de vinte minutos e outras 38 pequenas estações de carga e descarga (nessas “paradas” de cargueiros os trens de passageiros não paravam).


Estação de Itaúna em estilo totalmente diferenciado daqueles do sul de Minas. Nesta foto de 2013 o menino ficou admirado com a beleza e estilo do prédio que, atualmente abriga um museu municipal - Foto do autor 


A viagem era uma verdadeira epopeia noturna, barulhenta, soturna, com pouquíssima e fraca iluminação nas cidades que, na década de 1950, tinham apenas iluminação própria de baixa potência e pouca amplitude, cuja energia era gerada em pequenas usinas hidrelétricas, como em Lavras, abastecida pela sua minúscula Usina do Cervo e  também pela geração própria da Fábrica Velha (Cia Fabril Mineira, mas, esta possuía energia elétrica apenas para a sua indústria de  tecelagem). A distância entre Itaúna e Lavras diminuiu de 500 para cerca de 200 km. Bem, mas nenhuma das duas mudou de lugar..., como diria Odorico Paraguaçu, ambas permanecem no mesmo local. Apenas os meios de transporte e as vias mudaram. Com a moderna rodovia Fernão Dias e a interligação desta com as respectivas cidades, faz-se o trajeto em apenas duas horas, de automóvel.


A chegada ao Seminário  e a dura realidade sem a família

Desembarcamos em Itaúna e o menino curioso  observava, o tempo todo, a cidade que iria acolhê-lo. Seguimos de taxi para o Grande Hotel, bem próximo à estação ferroviária e localizado no centro da cidade, em rua movimentada com casas comerciais. O hotel, um pouco antigo, se parecia com o da cidade de Varginha onde se hospedara oito anos antes para tratar de um grave acidente que lesou e cegou para sempre o olho direito do menino. As chaves do hotel eram presas a uma esfera de madeira, do tamanho de uma laranja. Curioso, o menino indagou ao pai a razão daquela bola de madeira atrelada à chave do apartamento. Calmamente explicou que aquela volumosa bola era para que ninguém a esquecesse no bolso e viajasse,  deixando assim o hotel sem a chave. Ao se ausentar do hotel a chave teria que ser  depositada no lugar adequado na recepção, onde havia no balcão um buraco redondo, semelhante a uma caçapa de mesa de bilhar, tarefa que o menino adorava fazer.  Este tipo de “cabo” para a chave parece estranho, muito estranho, para quem hoje está acostumado a cartões magnéticos ou senhas eletrônicas, digitais ou biométricas, para abrir a porta em hotéis. Pois bem, descansados, após o banho e almoço, dirigimo-nos para o Seminário, onde fomos recebidos pelo diretor geral, Padre Adriano Turckenburg. A acolhida foi calorosa, com direito a conhecer todas as instalações do seminário, de modo a deixar o menino e os pais mais tranquilos. 

Dura, muito dura mesmo, foi a despedida do pai e da irmã, que voltaram para casa no mesmo dia, depois de breve permanência nas dependências do seminário. Aquele enorme portão lateral, que aparece nas fotos, ficou na memória do menino para sempre. Foi por ali que seu pai e a irmã saíram e dele se despediram, de volta para a casa. Bem no meio da deserta rua, defronte ao portão, agarrado à mão do diretor, o menino “desabou” quando eles dobraram a esquina e lhe acenaram um último adeus, dolorido na alma. Sua vontade era largar a mão amiga e correr atrás do pai e da irmã e com eles voltar para a casa. Só Deus haveria de consolar aquele coraçãozinho angustiado pela despedida e o impacto do ambiente totalmente desconhecido e distante de sua casa. Cortar bruscamente os laços familiares do menino produziu um grande impacto emocional, mas, com certeza reforçou e moldou-lhe um caráter mais forte e maleável às adversidades da vida. Naquele resto de tarde os padres procuraram consolar o menino, levando-o para o salão de jogos, pois as aulas não tinham ainda começado e os seminaristas 

aproveitavam os últimos dias de férias antes do inicio do ano letivo. Sempre acompanhado pelo veterano destacado para dar-lhe assistência, o franzino menino Pedro Júlio de Souza, justamente o filho do Sr Gil Leiteiro, vizinho e amigo da família, que ajudou no despacho da bagagem, o baú abarrotado de roupas. Mesmo com tantas novidades e mais de 80 meninos ali presentes, a primeira noite no Seminário foi terrível. O menino não conseguia conciliar o sono, apesar do cansaço. Apagadas as luzes do dormitório, alguns minutos após o diretor geral, Pe. Adriano, o mesmo que havia nos recebido no início da tarde, aproximou-se da cabeceira da cama, perguntou se estava muito frio, ajeitou as pontas do virol e do cobertor, enfiando-as um pouquinho sob o colchão de modo que não caíssem ao chão durante a noite e mantivessem o menino abrigado. Assim é melhor, o cobertor não cai durante o sono, completou o padre. O menino engoliu o choro, ainda que silencioso e sem ser notado e até achou interessante manter as pontas laterais do virol e cobertor presas, com folga, sob o colchão, de modo que não escorregassem e caíssem no chão. A cama patente, de mola e que às vezes rangia e ainda formava um colo no meio dos seus míseros 70 cm de largura, como se fosse um rego escavado.



A primeira tarefa a executar, ali à chegada, foi arrumar as roupas no armário de alvenaria rente à cabeceira e que dividia o espaço entre camas. Ainda que tivesse a “assessoria” do veterano Pedro e também a presença de outro lavrense, Miguel, ambos já conhecidos e vizinhos na cidade natal, o menino esteve muito triste na chegada e nos primeiros dias subsequentes. Sua doída nostalgia só começou a diminuir com a chegada das aulas e as pesadas lições de Latim, Canto Orfeônico e Música, nas quais não teve formação escolar e assim teve que tomar aulas de reforço, principalmente de música, com leituras de partituras, que nunca havia aprendido. Agora, para um seminarista, era imprescindível seu completo domínio para interpretação de musica sacra e cânticos gregorianos. Tomou gosto por esse tipo de interpretação musical e assim, espaireceu um pouco a nostalgia de casa, logo nos primeiros dias de internato. As atividades recreativas com jogos de dama, xadrez, ping-pong (tênis de mesa) e ainda os esportes como a grande novidade do espirobol, times de futebol bem organizados e com treinadores especializados (padres holandeses) também muito contribuíram para “desviar” o banzo e entreter os meninos, especialmente quem trouxe uniformes novinhos comprados na Casa Curi, de Lavras. Da mesma forma as atividades religiosas e culturais como a participação no coral de setenta vozes, interpretando belíssimos cânticos gregorianos e musica sacras dos clássicos de Wagner, Bach, Haendel e outros, contribuíram para fixar a atenção e o interesse do menino que aos poucos foi se integrando à rotina do Seminário que, aliás, será tratada em outro capítulo.


A colcha de lã  -  uma história à parte

Ganhar, depois de 60 anos do evento, a mesma colcha de lã usada no Seminário e que permaneceu guardada no mesmo móvel que pertenceu à sua mãe e no mesmo quarto da fazenda onde o menino seminarista nasceu..., ah, foi emocionante demais. Valor afetivo incalculável, pois o menino sempre ajudara a mãe a preparar a lã para a sua confecção na tecelagem. E essa participação tinha início  desde o pastoreio das ovelhas no campo, juntamente com os camaradas da fazenda, tangendo-as para o curral da casa da Samanda, a avó paterna, portuguesa de origem, olhos azuis, penetrantes, meiga com os netinhos. Ajuntado o rebanho no imenso curral, era hora de apartar as ovelhas para o procedimento da tosquia, serviço delicado de modo a não ferir os animais com a tesoura e sempre supervisionado por nossa mãe. Às vezes ela própria o fazia e engambelava os irrequietos meninos deixando-os ficar afagando a cabeça e as enormes orelhas das dóceis ovelhas que, ao terminar a tosquia, levantavam-se meio desequilibradas como se estivessem pesando alguns quilos a menos na pele, pois efetivamente estavam menos volumosas. Às vezes preferíamos pegar um carneirinho no colo, pequenino, macio como uma bolinha de lã, ali ao lado da ovelha-mãe que estava sendo tosquiada. Ver os cordeirinhos, novinhos,  mamarem com sofreguidão nas tetas cheias das mães-ovelhas era ainda mais interessante e encantador para as crianças.

  Mas, o processo de preparação da lã seguia com a lavagem, secagem estendida no gramado, desfiação, passagem pela carda, tornando-a uma pluma levíssima que seguia direto para as mãos de nossa mãe, a única especialista em proceder a fiação na roda de fiartambém chamada de roca, tocada a pedal. Estando a bobina já cheia, os  fios eram enrolados em forma de meadas e daí seguiam para o processo de tingimento com fervura em enormes tachas de cobre. Muitas vezes as tintas eram artesanais preparadas com ervas do campo que nós, os meninos e os camaradas da fazenda, colhíamos especialmente para esse fim, ou então com as famosas tinturas Guarany compradas na loja do Jorge Záckia, na esquina das ruas Francisco Sales e Chagas Dória. Tingidas e secas, as meadas eram colocadas nas dobradeiras e dali passavam  à fase seguinte, a transformação em novelos multicoloridos. Encerrava-se assim o processo artesanal doméstico de preparação dos fios de lã e só então os novelos eram entregues aos teares, lá pelas bandas da Faisqueira, no caminho da vizinha cidade de Itumirim. Somente nessa última fase, de entrega às tecelãs, os meninos não tinham acesso. Nunca pudemos acompanhar os camaradas naquela “viagem” à cavalo e nem imaginávamos como seria um tear, que tecia as nossas colchas, de cujo processo de produção participávamos inteiramente até a entrega das linhas já tingidas que iam direto para o tear.



Ah..., aquelas colchas de lã que a mãe acondicionara no baú do menino, fizeram mais que aquece-lo nas geladas noites de inverno no Seminário de Itaúna. Eram lembranças que confortavam o coração do menino, pois elas tinham o “cheiro” de família, da saudosa mãe, da casa da vó, dos galopes a cavalo nos pastos para ajuntar e tanger o rebanho, os carneirinhos branquinhos, sedosos e macios no colo, a roda de fiar que, na ausência dos adultos a fazíamos girar a 1.000 km/h e às vezes até ferindo a própria mão, sem que adulto nenhum visse e passasse um sermão com castigo e tudo. Ah..., até mesmo as lembranças da alegria da mãe ao empacotar os novelos de lã, de várias cores, ensacá-los e entregar ao camarada que seguia para a tecelagem. Essa tarefa final era o maior prazer, o ponto culminante de toda aquela trabalheira que envolvia a todos e vários outros empregados da fazenda. Uma tradição milenar, desde os tempos bíblicos e que o menino conhecia muito bem cada fase do processo de produção daquela colcha, quentinha, ali na solidão e frio gelado do internato. E assim, o menino de 12 anos se desmanchava em lágrimas, de saudade de tudo e de todos e em pouco tempo passou a se perguntar, por que isso? Por que estou aqui a sofrer, tão longe do lar? Quão valiosa é a liberdade de se desfrutar do aconchego de sua casa, do lar, da família. Era uma alegria que só conhece quem possui o mundo. E ali, em casa, tínhamos o mundo, pois tudo era nosso e antes nem se apercebia disso. Era o nosso reinado! Mas, tudo que é feito com amor dura para sempre e aquelas colchas simbolizavam esse amor e união da família. Certamente essa colcha, hoje guardada como lembrança, mesmo depois de mais de sessenta anos daquelas noites frias no distante Seminário, ainda deve ter resquícios do DNA das lágrimas derramadas nas solitárias e longas noites do internato. Hoje, aquela colcha tem cheiro de infância feliz, em casa ou até mesmo no internato, onde aprendeu às duras penas valorizar o berço, a formação recebida dos pais e também dos mestres. Assim, como muito bem se expressou o poeta Caio Fernando de Abreu:

 “Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha”.

 

E ainda acrescento: o arco íris cantado em linda metáfora pelo poeta, também está bem presente nas vivas cores das colchas que um dia ajudei a confeccionar e depois me aqueceram no inverno naquele distante internato. Elas despertaram o amor em todas as lembranças das memórias do menino.  Hoje, mais de meio século depois, continuam a aquecer a minha alma com as doces lembranças da infância.


            No rol das lembranças da infância tingida de giz, o menino guarda ainda, duas lembranças afetivas dos tempos de Seminário. A primeira, um painel decorativo que enfeita seu escritório em casa, com belíssima foto presenteada pelo fotógrafo profissional e professor da Universidade Federal de Viçosa, Chico do Vale, representando a locomotiva Baldwin, esbaforindo fumaceira pela chaminé. A outra, um Moinho holandês, da terra natal dos padres do Seminário, confeccionado em madeira pelo próprio menino, nas horas recreativas do internato. Foram horas e horas de trabalho manual, lixar a madeira de compensado, riscar o molde com papel carbono azul, perfurar pequenos buracos nos desenhos das peças na madeira e ali enfiar a fina lâmina da serra tico-tico em arco, apertar firmemente o parafuso do arco (tarefa para a qual os adultos nos ajudavam, pois meninos não tinham força suficiente para pressionar o arco de serra, de modo a deixar a lâmina totalmente tensionada, como uma corda de violão afinado). Muitas vezes tivemos que repetir o trabalho de confecção das peças danificadas durante seus recortes. Mas, finalmente chegamos a ultima etapa do trabalho, após a montagem do moinho, pelos encaixes, os acabamentos em verniz em duas demãos. Verdadeira obra de arte que o menino fez para presentear sua querida e guerreira mãe. Surpreendentemente ela, o avô e a irmã mais velha, Mariinha, que confeccionara suas camisas, visitaram o menino depois de apenas dois meses ali no internato. Foi a maior surpresa para o saudoso menino. Era o dia de seu aniversário. Presente melhor não haveria! Levaram um estoque de queijos e goiabada, fresquinha, fabricada em casa, pouco antes, com as últimas goiabas da safra. Muitos coleguinhas se fartaram com tanto doce e queijos dos melhores laticínios de Minas, os de Lavras.

     Minha irmã contava que naquele mês de abril de 1958 a rodovia Fernão Dias ainda estava em construção e ficaram retidos, no luxuoso automóvel Ford Mercury, ali na serra de Itaguara, pois tiveram que esperar o bombardeio das rochas daquela serra para abrir espaço nas perigosas pirambeiras da região. Por isso, conta ela, a viagem se atrasou e perderam o almoço com o menino. Mas, fui compensado, pois naquele dia especial de aniversário e visita importante, fui liberado para ficar no hotel com a família e ali o menino também pernoitou feliz da vida. Não foi possível entregar o moinho holandês a ela naquele dia, pois ainda estava iniciando os trabalhos com os moldes. Mas, quando o baú de roupas e pertences foi “repatriado”, lá estava também o belo moinho holandês, bem empacotado, protegido e intacto, tal qual o guardava no pequeno armário da cabeceira de sua cama ali no dormitório coletivo do Seminário. Por isso, ainda hoje, a cada vez que contemplo aquele lindo moinho holandês, doces reminiscências afloram em minha mente. O maior legado que recebi dessa experiência num distante internato, foi sem dúvida reconhecer e valorizar o amor à família, o berço de sua formação.

 

A vida foi justa comigo, aquele tempo no Seminário foram dias de perseverança e muita solidão, mas tudo que é plantado no coração jamais se perderá. Permanece ali para sempre. As fotos de minha infância, em casa ou no Seminário, que ilustram este texto, são em preto e branco, e em algumas o menino até aparece com semblante triste, de saudade, mas, as lembranças são coloridas e plagiando o poeta, também têm as cores dos arco-íris, bem coloridas...., tais quais as colchas de cores multivariegadas que guardo em casa, como recordação do amor em família desde os tempos daquele menino de 12 anos que um dia pensou em ser pastor de ovelhas do Senhor. Não foi, mas pastoreou as ovelhas de lã, de sua mãe e mais tarde tornou-se agrônomo que em vez de alimentar almas alimenta o corpo. E a alegria da alma se manifestou até mesmo na visita ao Seminário, 55 anos depois. Neste dia, ao despedir-se do diretor do atual Colégio Sant´Ana, Prof. Marcinho, o menino não chorou como naquele dia de sua chegada em fevereiro de 1958. Ao contrário, ambos estavam muito alegres, o diretor por receber um ex-aluno que demonstrou carinho pela instituição e o menino por ter recordado os ensinamentos, o legado que dali ganhou e o carrega para sempre na alma.


 


Em tudo dai Graças ao Senhor! Amém.


Brasília, 31 de julho de 2020

Paulo das Lavras

Nota Explicativa: 

Esta crônica é parte do livro: “Um Seminário na década de 1950”.  A obra compreende os capítulos de I a IX  e aqueles já publicadas neste blog estão com os links indicados abaixo, conforme a estrutura editorial: 

 

Título geral: Um Seminário na década de 1950

Cap. I-   Uma viagem ao passado –publicadohttp://contosdaslavras.blogspot.com.br/2016/07/um-seminario-na-decada-de-1950-parte-i.html 

II- O despertar da vocação no menino

III- a viagem para o distante Seminário http://contosdaslavras.blogspot.com/2020/07/a-viagem-para-o-distante-seminario.html

IV- A vida no Seminário

4.1- a rotina diária de um internato

4.2- os seminaristas

4.3- os estudos do colégio 

4.4- A religiosidade               

4.5- o lazer e cultura

  4.6- Eventos marcantes

         4.6.1 - Fundições e Tecelagem Itaunense 

         4.6.2- Morro do Bonfim- a capela

        4.6.3- Copa do Mundo de 1958

         4.6.4- A morte chega ao Seminário  - já publicada:   http://contosdaslavras.blogspot.com/2017/07/a-morte-chega-ao-seminario.html

V – A viagem de volta - O fim

VI- O reencontro – 55 anos depois

VII- O legado 

VIII- Anexos: Curiosidades de 1958

IX- Pos-Scriptum:

 1- Brasília: O reencontro do seminarista foragido na Basílica Metropolitana - http://contosdaslavras.blogspot.com/2015/06/reencontro-do-seminarista-foragido.html   

     2-  29 de junho de 1958 – Sessenta anos da primeira Copa de Futebol - http://contosdaslavras.blogspot.com/2018/06/    

 

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P.S – Se o leitor tiver interesse em conhecer um pouco mais sobre o algodão e a criação de carneiros para produção de lã e fios, a arte milenar da tecelagem artesanal que foi levada para Lavras,  pelos colonizadores portugueses que fundaram a cidade em 1720, acesse o link: