sábado, 12 de outubro de 2019

A Vida dá Muitas Voltas – Infância Feliz, “pagando os franguinhos”


Infância feliz! “Guardo as memórias que me trazem riso,
 as pessoas que tocaram a minha alma e
 que, de alguma forma, me mudaram para melhor.
 Guardo também a infância toda tingida de giz.
Tinha jeito de arco-íris a minha”.


  
A vida dá muitas voltas, diz a primeira frase do título acima e é de uma profundidade imensa. Ela abre a crônica do Dr Howard Kelly, que recebi de minha filha. Uma linda história. Respondi a ela lembrando um fato semelhante que acontecera comigo. Ainda hoje, passados muitos anos eu relembro o ocorrido, contando-o aos meus filhos e enfatizando o prazer, a alegria de se ter a oportunidade de se corrigir um erro cometido, ou simplesmente retribuir um mimo, uma graça recebida de outrem. O Dr Howard Kelly, protagonista da crônica em questão, não cometera nenhum ato que merecesse reparo, mas, guarda muita semelhança com aquilo que se passou com este menino travesso, que gozava de plena liberdade em sua chácara a 300 metros de uma das principais ruas da cidade. Ao contrário do menino travesso, o Dr Kelly ganhou um copo de leite, quando ainda menino e faminto, foi bater à porta de uma senhora para lhe vender algo. Veja sua história:

         “... O maior erro do ser humano é tentar tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...". Assim começa a crônica, descrevendo a vida de um rapaz pobre chamado Howard Kelly que vendia mercadorias de porta em porta para pagar seus estudos. Um dia, viu que só lhe restava uma simples moeda de dez centavos e tinha fome. Decidiu que pediria comida na próxima casa.  Porém, seus nervos o traíram quando uma encantadora mulher jovem lhe abriu a porta. Em vez de comida, pediu um copo de água. Ela pensou que o jovem parecia faminto e assim lhe deu um grande copo de leite. 
        Ele bebeu devagar e depois lhe perguntou: Quanto  lhe devo? 
        - Não me deves nada - respondeu ela. E continuou - Minha mãe sempre nos ensinou a nunca aceitar pagamento por uma oferta caridosa. 
        Ele disse: - Pois te agradeço de todo coração. 
        Quando Howard Kelly saiu daquela casa, não só se sentiu mais forte fisicamente, mas também sua fé em Deus e nos homens ficou mais forte.  Ele já estava resignado a se render e deixar tudo. 

        Anos depois, aquela mulher ficou gravemente doente. Os médicos locais estavam confusos. Finalmente a enviaram à cidade grande, onde chamaram um  especialista para estudar sua rara enfermidade.  Chamaram o Dr. Howard Kelly. Quando escutou o nome  do povoado de onde ela viera, uma estranha luz encheu  seus olhos.  Imediatamente, vestido com a sua bata de doutor, foi ver a paciente. Reconheceu imediatamente aquela mulher.   Determinou-se a fazer o melhor para salvar aquela vida. Passou a dedicar atenção especial aquela paciente.   Depois de uma demorada luta pela vida da enferma, ganhou a batalha.

        O Dr. Kelly pediu a administração do hospital que lhe enviasse a fatura total dos gastos para aprová-la.  Ele a conferiu e depois escreveu algo e mandou entrega-la no quarto da paciente. Ela tinha medo de abri-la, porque sabia que levaria o resto da sua vida para pagar todos os gastos. Mas finalmente quando abriu a fatura algo lhe chamou a atenção, pois estava escrito o seguinte:

  Totalmente pago há muitos anos com um copo de leite  (assinado). Dr.Howard Kelly. 

        Lágrimas de alegria correram de seus olhos e seu  coração feliz rezou assim: Graças meu Deus porque teu amor se manifestou nas mãos e nos corações humanos. 
        "Na vida nada acontece por acaso."

Com esse adágio o cronista encerrou a história vivida pelo Dr Kelly. E é verdade, concordo inteiramente que nada acontece por acaso em nossas vidas.  Eu próprio tive uma experiência  em tudo semelhante à relatada acima. Morava numa grande chácara com mais de 20 hectares  (mais de 20 campos de futebol ou 200.000 m²), com enorme casarão de seis quartos, casa de empregado, plantações diversas, um grande pomar, córrego, mata nativa, vacas, cavalos, etc., etc., situada praticamente dentro da cidade e hoje se transformou em Vila Cruzeiro do Sul. Era muito freqüentada pelos amigos de infância que ali se sentiam no paraíso, pois, desfrutavam de tudo, futebol, cavalgadas, touradas (com bezerros, lógico) adestramentos de animais, pescaria, natação, caçadas nas matinhas e melhor de tudo, da fartura das frutas do variado pomar que tinha pêssegos, marmelos, cana de açúcar, bananas de diversas variedades, ameixas, goiabas, laranjas, jabuticabas e muitas outras, de modo que se podia saboreá-las em todas as estações do ano. Um paraíso para crianças de dez anos que querem liberdade para inventar suas próprias brincadeiras.

 Certa vez, esses amiguinhos, incluindo também meu irmão mais novo (ele também se lembra do ocorrido e não economiza gargalhadas quando rememoramos o caso), inventaram de praticar estilingadas em todos os pintinhos de uma galinha que ciscava por perto. A galinha não era nossa e também não sabíamos a quem pertencia e, por isso, concordei e ainda participei da matança, embora não tenha acertado nenhuma estilingada. Além de ruim de bola (era dono da bola e do campo de futebol) era também péssimo no estilingue, talvez pela deficiência visual, pois havia perdido a visão direita em acidente aos cinco anos de idade. Mas, foi uma diversão e tanto e parecíamos um bando de malvados, avalio hoje, pois a cada alvo abatido em plena correria e vôos desesperados das vítimas, comemorávamos a vitória daquela “tropa” de elite que, ao final, abatera todos os inimigos – os indefesos pintinhos - que eram em número superior a 10 ou 12.

    Mais tarde, naquele mesmo dia,  uma pobre viúva andou procurando os pintinhos, já que a galinha chegara à casa sozinha, sem eles. Minha mãe, que era muito caridosa (sempre tinha um velhinho ou criança amadrinhados para ajudar ou criar), foi procura-los no nosso enorme quintal. E, nada! Os malfeitores, muito ladinos, já haviam dado sumiço nos pintainhos mortos a estilingadas. Não me lembro exatamente se os enterramos ou jogamos na matinha que existia ao lado do curral, onde a galinha estava ciscando os restos de ração caídos no chão e alimentando a sua prole.

    Ao lado de minha mãe e da dona dos pintinhos, “ajudei” a procurá-los, caladinho, desconfiado que só, com medo da surra certa se descoberta fosse a arte do menino custoso.... Procuramos no curral, na matinha, no paiol, no galinheiro, pomar e..., obviamente, nada encontramos...! Enquanto procurávamos, a pobre ex-dona contava que aqueles pintinhos se destinariam, no futuro, à venda dos frangos e as frangas  seriam reservadas para produção de ovos. Quanto mais ela falava mais eu me sentia culpado, com um remorso condoído de saber que aqueles pintinhos se tornariam sustento para seus filhos. Tive vontade de confessar para minha mãe, ali mesmo na presença da viúva, com a esperança de que, talvez,  ela a recompensasse em dinheiro ou com outros franguinhos. Mas, o medo, natural de crianças travessas, foi mais forte. A pisa certeira com a vara de marmelo era mais temida que o suposto assombração, que aparecia na mata nas sextas feiras da quaresma. Era aterrador e portanto, compreensível que tivesse faltado coragem para a confissão. Ficou  apenas o remorso de ver a tristeza daquela pobre mãe que estava cuidando de encontrar o que era seu e que, inexplicavelmente, desaparecera. Ficou apenas o mistério, pois galinha alguma abandonaria sua prole de mais de dez pintinhos e voltaria sozinha para a casa.

    Carreguei esse  pesado remorso em segredo, sem contar a ninguém, até que um dia, passados  mais de 10 anos, uma das filhas daquela viúva bateu à porta de nossa casa para pedir algum dinheiro emprestado para pagar o médico e os remédios necessários para a sua mãe. Ao chegar a casa após o trabalho tomei conhecimento do pedido e exultei de alegria. Pensei comigo mesmo, chegou a hora de retirar aquele pesadelo de minha consciência. Pedi à minha irmã que avisasse à viúva que eu iria providenciar o dinheiro no dia seguinte.

              Quando a garota voltou, na hora aprazada, para buscar o dinheiro, fiz questão de fitar bem o seu semblante humilde e até mesmo acanhado e dizer-lhe: Diga à sua mãe que o dinheiro não é emprestado, pois, estou pagando a ela aqueles 10 ou 12 pintinhos que há muito tempo desapareceram aqui no nosso quintal. Diga, ainda, que eu e os amiguinhos, todos nós muito travessos, havíamos dado cabo a todos eles, praticando a pontaria com estilingue. Peça-lhe também que me perdoe por não ter confessado isto a ninguém, nem mesmo à minha mãe que  falecera, prematuramente, pouco tempo depois do ocorrido. Diga-lhe, finalmente, que o valor daqueles pintinhos, que agora está sendo resgatado, está multiplicado por muitas vezes, mas, ainda assim acho que está aquém do peso do remorso que carreguei por todo esse tempo. Portanto, leve o dinheiro suficiente para pagar a consulta médica e os remédios necessários e que ela se restabeleça logo.

            Ao tomar conhecimento da história do  Dr Howard  Kelly,  veio-me à memória esse caso semelhante que se passou comigo. Para ele foi uma enorme satisfação ter tido a chance de retribuir, com valor financeiro infinitamente maior, um ato, um simples copo de leite recebido, que foi um gesto de amor daquela senhora, havia muito tempo. Para mim também foi uma chance de ouro poder corrigir a estripulia de garoto, que me pesava na consciência por longo tempo e, melhor ainda, ter podido retribuir na hora certa e com valor  muito acima do prejuízo material causado. O meu alívio foi multiplicado pela sensação de ter feito uma ação caridosa, no momento certo, socorrendo a quem muito necessitava.

 Acho mesmo, como disseram ao final daquela mensagem, que "na vida nada acontece por acaso". Deus faz com que as pessoas “apliquem” algum tipo de capital na hora certa, pode ser um copo de leite ou os franguinhos supostamente perdidos ou, quem sabe, apenas uma palavra de conforto a uma pessoa necessitada e, algum tempo depois, elas o recebem de volta, em dobro ou multiplicado muitas vezes. Sim, mas quando receberemos de volta a boa ação que viermos a praticar? Isso não importa. Pratique-a sempre! Basta lembrar o velho adágio: Os filhos colherão os frutos que seus pais plantarem, ou seja, mesmo que a recompensa não seja percebida por você, seus filhos estarão sempre colhendo o reconhecimento, a gratidão daqueles que conhecem ou conheceram as boas ações de seus pais. Mais, ainda, os próprios filhos reproduzirão aquele modo de vida que sempre vivenciaram..., o amor ao próximo, numa vida sadia e emocionalmente equilibrada, de bem consigo mesmo e com a vida ao redor. Mas, por que assim? O cronista que escreveu a história do Dr Howard também tem a resposta: “... O maior erro do ser humano é tentar tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...”.

Ora, vejam a frase do poeta e pensador Caio Fernando de Abreu, acima destacada em epígrafe: Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha”. E ainda acrescento: A vida foi justa comigo, pois o que é plantado no coração jamais sairá. Permanece ali para sempre. As fotos de minha a infância, que ilustram o texto, são em preto e branco, mas as lembranças são coloridas e plagiando o citado poeta, também têm as cores dos arco-íris, bem coloridas. Paguei os franguinhos com amor no coração, em dobro e grato a Deus por ter tido uma infância feliz e ter-me concedido à oportunidade de retribuir a alguém que necessitava de ajuda. Tudo na hora certa. Assim é a vida de quem tem a boa semente plantada no coração, ainda que às vezes erremos, mas sempre haverá a chance de se corrigir e este ato nos redime a alma.

E Salve o dia de hoje, o Dia da Criança!

Brasília, setembro de 2002/ outubro de 2019

Paulo das Lavras  


O menino, em 1948, quando deixou a fazenda aos três anos de idade e mudou-se para a cidade. 
A escola já esperava as irmãs mais velhas. Ali foi morar numa enorme chácara, verdadeira fazendinha,
 seu paraíso, onde recebia os amiguinhos e faziam muitas travessuras.


A casa da chácara, na cidade de Lavras, emoldurada pela belíssima Serra da Bocaina e pelos
 ipês amarelos. O menino deixou a fazenda, mas apenas mudou de endereço,
pois ali também era uma fazendinha. Doce infância em meio à natureza e vários
 amiguinhos que  ali frequentavam e também desfrutavam das delicias daquele paraíso.




 
Na primeira comunhão, aos dez anos. Nos anos da década de 1950 os meninos usavam
 terno completo, com gravata e sapato de verniz, impecáveis, para toda e qualquer
solenidade, até mesmo para as missas de domingo. Adorávamos usar
calça comprida,  imitando os adultos, pois durante a semana inteira
predominavam as calças curtas.



 
Vinte anos depois, os filhos também adoravam os fins de semana na chácara,
onde  inventavam os próprios brinquedos.


As crianças de hoje são mais conscientes no trato com os animais e a natureza em geral


Mesmo mais grandinhos, ainda brincam com os franguinhos, mas com cuidado,

devolvendo-os ao seu ambiente


Brincar com os netos é reviver a felicidade, a alegria da infância.
Tirar os sapatos, sentar no chão é como se nos tornássemos crianças novamente.
O poeta e filósofo Rubem Alves tem razão, pois “os velhos se tornam
crianças e sabem que a vida é alegria”