terça-feira, 31 de agosto de 2021

Instinto nefelibata

 

 
Sonho de Ícaro – Yara Tupinambá 

O alto das montanhas sempre foi procurado como local de oração e meditação, lugar privilegiado para a nossa aproximação com Deus. Cruzes ou cruzeiros, como são chamados em muitas regiões, estão quase sempre localizados no alto de um morro. Pare, pense, relembre as cruzes que você já encontrou ou viu, onde elas estão localizadas? Sempre no alto dos morros, seja no Gólgota, onde Cristo foi crucificado, ou ainda no Corcovado, onde Ele próprio está em forma de cruz, com os braços abertos. Muito provavelmente na sua cidade também haverá uma cruz, um cruzeiro no alto de um morro qualquer. As capelas também se localizam com muita frequência no alto de morros, como a de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro e tantas outras. É inegável que o homem se sente mais livre ali nas alturas, pois longe de tudo e de todos sua alma se destrava e passa a contemplar as maravilhas vistas lá do alto. Ali, no alto, o tempo, inexpugnável, para e a respiração fica mais pausada com a contemplação do espaço que toma conta de nossa de alma. Assim foi e ainda hoje é o menino que tem verdadeira fascinação pelas alturas, especialmente em viagens de avião. E quanto maior for a aeronave mais tranquilo é o voo e maior a sensação de bem estar, flutuando nas nuvens, literalmente e com a sensação de maior proximidade a Deus. Assim também acontece com a maioria das pessoas quando estão nas alturas, alma relaxada, espírito aberto, em transe espiritual, admirando o espaço, a terra lá em baixo, com detalhes bem pequeninos e sobretudo a grandiosidade do universo com nuvens infinitas.

Quando estou num avião, a dez ou doze mil metros de altura, no silêncio da alma, em paz comigo próprio e o ambiente, consigo alcançar esse estágio de completo relaxamento e proximidade com Deus. A viagem de avião é antes de tudo mais que agradável, pois ali nas alturas não nos preocupamos com os perigos do trânsito, assaltos e tudo que nos perturba nas cidades. Enfim, podemos relaxar e confiar no piloto que nos levará ao destino programado, embora, algumas vezes surpreendidos por algumas turbulências aéreas, mas que sabemos ser a aeronave projetada para enfrenta-las e supera-las. Estar dentro do avião, nas alturas, pode até ser considerado um ato de protesto contra a correria do mundo lá fora, do tempo (da falta de tempo para si próprio) e do dinheiro que tudo comanda e nos escraviza até mesmo pelo elevado custo das passagens e hotéis. Mas, antes disso, é um momento de relaxamento, pois não temos que nos preocupar com o deslocamento e em pouco tempo estaremos no destino final. Ali, durante a viagem me desconecto das loucuras do dia a dia da vida de quem trabalha e tem que enfrentar a selva da cidade grande. É terapêutico, pois durante os voos o tempo passa mais devagar, naquela ilusão de ótica das grandes altitudes, quando você transita por entre as nuvens e enxerga na terra lá em baixo, um rio como uma linha sinuosa em minúscula dimensão de largura, quando na realidade aquela “linha” representa larguras de mais de 100 metros e extensões de mais de 100 km na linha do horizonte curvo do globo terrestre. E o que dizer daqueles quadriculados, em forma de xadrez, com apenas alguns centímetros de extensão e que cabe na palma da mão? Na verdade são grandes cidades com mais de 100 mil habitantes e que, das silenciosas alturas, parecem nossos brinquedos dos tempos de criança riscados a giz.

Interessante observar como funciona a cabeça de um viajante contumaz. A caminho do aeroporto seu pensamento ainda está focado no cotidiano da vida em sua base fixa, o trabalho com suas tarefas delegadas aos auxiliares, a agenda cumprida, a casa, família e tudo mais que o cerca. No entanto, assim que entra no avião, a agenda muda de foco e passa a se concentrar no local de destino, no objetivo da viagem. Mas, este, o objetivo, já está definido e planejado previamente e não há muito com que se preocupar, pois sempre haverá alguém a espera-lo no aeroporto e repassar-lhe e acompanhar nos compromissos locais. Assim, o intervalo de tempo do deslocamento aéreo, sozinho, ali nas alturas, sem nenhum compromisso de trabalho ou social com o desconhecido passageiro do lado, exceção apenas às cortesias de praxe, o relaxamento é total, próprio para a meditação.  Isto, lógico, depois da decolagem, pois antes a nossa atenção fica voltada à movimentação dos passageiros até se acomodarem nos assentos. Aliás, no desembarque essa movimentação é pior, mais intensa. Não sei para quê tanta correria, antes mesmo do desligamento das turbinas, todo mundo de pé, abrindo o bagageiro superior, incomodando a todos e colocando em risco a própria integridade física com a aeronave taxiando na pista antes de desligar os motores no deck de desembarque. Melhor permanecer sentado, deixar os afoitos desembarcarem e seguir, depois, tranquilo pelos estreitos corredores do avião. Durante os voos, em repetidos itinerários e de rotas já conhecidas, muitas delas percorridas inteiramente na cabine dos pilotos de grandes jatos (até o ano de 2001, quando se deu o atentado às torres gêmeas do World Trade Center, era permitido que se voasse como convidado na cabine dos pilotos), aprendemos a navegar pelos pontos geográficos assinalados na rota, que era toda balizada pelas ERB- Estação Rádio Base. A rota Brasília/Rio era a mais interessante. Cronometrava as ERBs de Paracatu, Patos de Minas, Formiga, Santo Antônio do Amparo onde se passava exatamente sobre a igreja matriz e aos cinquenta minutos de voo, lá estava a cidade de Lavras, com seu Rio Grande (Macaia), Serra da Bocaina, Itumirim, Luminárias..., e tudo mais num raio 100 km. Confesso que quase sempre dava aquela vontade de saltar de paraquedas e aterrissar bem no campus da UFLA, naquela larga avenida que ajudei a demarcar e construir ou então um pouco mais a sudeste, na fazenda de café que mantinha no município de Luminárias, do outro lado das Serra da Bocaina. Isto, sem contar a fazenda Retiro dos Ipês, onde nasci, às margens da rodovia Fernão Dias, logo ali, ou melhor, uns 10 km abaixo da aeronave. Se voar já é prazeroso por si, imagine com a carta de navegação gravada no subconsciente e com mapas coloridos de toda região conhecida como a palma da mão. Prazer infinito, ver, rever os locais da infância e juventude, de onde se afastou há tanto tempo.

O instinto nefelibata parece mesmo inato na maioria das pessoas. Nem sempre “viver nas nuvens” significa pessoa fora da realidade. As alturas sempre inspiraram a humanidade a buscar paz, o relaxamento da alma que, na quietude e tranquilidade das alturas, nos aproxima de Deus. É nas alturas que sempre tive as melhores inspirações literárias, cujos temas quase sempre ficam escondidos nos escaninhos do subconsciente. Ali passei os melhores momentos para meditar e compreender a grandiosidade da Vida, afinal foram mais de 3.000 horas de voos pelo mundo afora, na tranquilidade de passageiro de grandes aviões. Que bom que hoje temos os aviões que nos levam bem alto e nos proporcionam aquele vivenciar que milhares de anos antes empolgara a humanidade criando o famoso “Sonho de Ícaro” da mitologia grega, sem no entanto nos aproximar do “astro rei que derreteria as asas de cera de Ícaro”.

 

Brasília, 31 de agosto de 2021

Paulo das Lavras