domingo, 24 de novembro de 2013

Um caminhão que fala e o fazedor de amigos




 

A foto desse histórico e bonito caminhãozinho foi publicada recentemente nas redes sociais. O menino das Lavras logo o identificou e saudosas lembranças desfilaram em sua memória. Além desse, que lhe “contou” doces recordações, havia outro igual em que costumava andar bastante. Foi um modelo muito comum na década de 1950, com capacidade para quatro a cinco toneladas de carga. Importado da montadora GM e comercializado em Lavras pela Agência Chevrolet, de Ciro Arbex & Cia Ltda. Pertenceu a um importante fazendeiro, o Sr Toniquinho de Pádua que, para nossa tristeza, nos deixou ainda cedo. Esteve guardado por trinta e três anos na fazenda, depois de rodar por mais de 20 anos unicamente nas mãos daquele renomado fazendeiro. Tinha um ciúme danado que se revertia em cuidados especiais como só deixar as revisões a cargo da agencia autorizada. E mais, ali havia, ainda, o mecânico João Foguete, mestre na arte dos motores Chevrolet e somente a ele confiava a revisão de seu mimado caminhão. As peças tinham que ser as originais, importadas. Nunca o emprestava, a ninguém. Precisou? Sem problemas, ele mesmo ia pessoalmente atender ao amigo. Verdadeira joia preciosa, cuidada com esmero. Só foi vendido, ainda assim para um colecionador, depois que a matriarca da família também foi ao encontro do Sr. Toniquinho. Ela, que amava a fazenda e a memória do esposo que partira bem antes, tinha especial carinho por aquele veiculo que fora parte importante na vida da família. Com ele foi construída boa parte da fazenda e as crianças cresceram andando nele, quase que diariamente da cidade para a fazenda e vice versa ou em passeios às fazendas vizinhas e tudo que demandasse qualquer deslocamento. Aliás, não foi só o belo caminhãozinho que recebeu tratamento especial, carinhoso. Tudo foi conservado por ela na ausência daquele se dedicou inteiramente à família e à construção daquele patrimônio para que eles, esposa, filhos e suas gerações  desfrutassem. Tudo restaurado, conservado de acordo com o original, de doces recordações. A fazenda, sua bela sede com pinturas de paisagens bucólicas nas paredes da varanda, o silo aéreo, grande novidade à época, os currais, galpões e arredores. Este autor a conheceu muito bem na companhia de um dos filhos do casal, o inesquecível colega de turma do curso de agronomia, Thadeu de Pádua. Por ironia do destino, logo no início deste ano, quando o já tínhamos programado uma visita nostálgica àquela bela fazenda, que se vislumbra da ponte sobre o Rio Grande, ele, o amigo, decidiu partir subitamente. Deixou-nos, a todos desconsolados, doloridos com sua brusca viagem, não naquele caminhãozinho, mas em carruagens celestiais, escoltadas por anjos, ao encontro de seus pais na Glória do Senhor.

A frustação do menino, por não ter podido realizar a visita em companhia do amigo, tem sido minorada com a publicação de fotos da bela fazenda, dos familiares e agora desse caminhãozinho. Este despertou-lhe a escrita destas memórias, que são uma forma de terapia, dizem os especialistas. E haja história para contar. Esse caminhão me falou das estradas rurais, íngremes e barrentas, levando e trazendo cargas mistas. Cargas propriamente ditas e necessárias à fazenda ou produtos desta para a cidade e...., pasmem, em meio à carga, uma meia dúzia de passageiros, a filharada e contumazes caroneiros aboletados na carroceria do faceiro Chevrolet. Linhas de ônibus? Nem pensar, pois as poucas existentes passavam longe da fazenda Naqueles duros tempos dos anos 1950/60 havia pouquíssimos carros motorizados na cidade. Automóveis, sedãs como eram chamados, eram mais raros ainda. Portanto, os caminhões ¾, como esse da foto e as caminhonetes imperavam. Eram muito práticos e ideais para os serviços da fazenda, atividade principal do município. Passageiros na carroceria do caminhão? Sim era muito comum, pois o transporte público em jardineiras (antigos ônibus sobre chassi de caminhão, próprias para as estradas de terra) ainda era muito limitado. Havia certo risco para os passageiros na carroceria, mas nem tanto, pois a velocidade média era apenas 20 a 25 km/h nas estradas de terra, embora seus velocímetros marcassem até 120 m.p.h., aproximadamente 190 km/h.

Aquele pesado veículo se prestava também ao papel de autoescola familiar.  Os jovens, rapazes e moças, treinavam a direção com o pai que, prazerosamente, os ensinava a dirigir, pois autoescolas ainda nem existiam. Não era fácil o aprendizado naquele caminhão de volante enorme, duríssimo, pesado, cambio seco, ou seja, para se trocar a marcha era necessário debrear, puxar a alavanca do câmbio somente até o ponto morto (neutro), soltar a embreagem, dar uma aceleradinha e em seguida debrear novamente. Só então se podia levar a alavanca até à posição da marcha desejada. Coitado do caminhão, passou pelas mãos aprendizes de todos os filhos. Uma das filhas, depois de alguns treinos, parecia ir bem nas lições práticas de direção até que um dia, ao tentar reduzir a marcha barbeirou feio naquele “cambio seco”. Apavorou-se com o barulhão das engrenagens rangendo, arranhando como uma navalha mal afiada. O nervosismo e desespero da aprendiz aumentaram diante do risco de iminente acidente. Não bastasse isso e já quase em pânico, com o coração saindo pela boca, o pai gargalhava como era seu costume em qualquer que fosse a situação, mesmo nas mais adversas. Quanto mais força a mocinha apavorada imprimia mais o barulho aumentava. Adrenalina nas alturas, pavor estampado na face, decidiu colocar toda a sua força naquele traiçoeiro pedaço de ferro com uma bola preta de ebonite na ponta (ainda não existia plástico nos automóveis) . O resultado foi desastroso. Subitamente a alavanca de marchas, não resistindo, escapou inteirinha na sua mão direita. Com os olhos arregalados, largou o volante, em pânico, mão esquerda na cabeça e descabelando agitava freneticamente a alavanca, mostrando-a ao o pai, como a perguntar... o que eu faço, agora? O doce e tranquilo pai não parava de rir daquela inusitada situação e a cara de pavor da filha. Na verdade estava quase desmaiando de tanta gargalhar. Felizmente a moça obedeceu ao comando do pai que gritou, ainda meio sem fôlego: pisa na embreagem e no freio, depressa! Não fiquei sabendo se a moça conseguiu, depois, a carteira de motorista, ou se restou algum trauma...

Esse caminhãozinho tem histórias. E ao vê-lo, na foto, contou-me outras. Sua carroceria vivia repleta de jovens. Carregou sonhos e mais sonhos de uma juventude sadia, ordeira que se reunia para diversão em atividades nas fazendas e na cidade. Havia uma turma de rapazes muito espertos. De olho nas belas meninas sempre arranjavam um jeito de pegar carona naquele caminhão. Sabiam a hora certinha que o pai das garotas terminava os afazeres da ordenha do rebanho e voltava para a cidade. Era hora de bater ponto na sede da fazenda para pegar carona e, lógico ao lado das moças que sempre acompanhavam os pais nos fins de semana. Chegavam de mansinho, cumprimentavam os pais, ganhavam lanche oferecido por Dona Olga que, com seu carinho maternal se compadecia daqueles meninos que passaram o dia pescando nas lagoas da fazenda. Coisas de mãe que sempre acha que o filho precisa se alimentar mais e agasalhar-se. Na verdade os guapos rapazes, e eu os conhecia, certamente estavam ali por outros motivos que julgavam secretos, mas que não passavam despercebidos até porque as moças ficavam radiantes com a “inesperada” visita. E eram em turma de três a meia dúzia a cada vez.

Havia também outros grupos de jovens, os jogadores de futebol, do time chamado “Fábrica Velha”. Esse nome era alusivo à Fabrica de Tecidos União que ali existiu até o ano de 1925, na localidade de Dr Jorge, às margens do Rio Grande. O caminhãozinho era o meio de transporte de boa parte dos jogadores. Sr Toniquinho tinha prazer em ajuntar o time arregimentando os jogadores na própria fazenda e na vizinhança, do Sr Américo Alexandre e Sr Zé Maria, tios das moças. Os campeonatos rurais aconteciam nas Três Barras, Criminoso, Boa Vista e até mesmo nas cidades de Perdões e Carmo da Cachoeira, onde este menino até chegou a acompanhar uma comitiva em outro caminhão igual, o de seu avô. Mas, aquela turma da suposta pescaria também se infiltrava no meio dos jogadores para assistir aos jogos. Alguns até eram bons de bola e conseguiam ser escalados no time. Esses gostavam de se exibir, pois ali na pequena plateia estavam aquelas lindas meninas, donas do caminhão, ou melhor filhas do dono, o que dá na mesma. E nas viagens elas faziam questão de ir na carroceria. Na boleia, só os pais. Dona Olga, a zelosa mãe, não tirava o olho do espelho retrovisor para ver o que se passava na carroceria. Ela própria, que antes chegara a queixar-se de ligeiro torcicolo, mandara instalar o retrovisor interno, na cabina do caminhão, pois mesmo os carros novos não tinham esse acessório. Proporcionou maior conforto, mas logo ele afrouxou, de tanto que era ajustado para pegar todos os ângulos da moçada lá atrás na carroceria. Coisas de mãe, que deixava transparecer grande preocupação com as suas prendas, ali em meio a tantos jovens, guapos rapazes. Chegava exausta ao destino, quase sempre depois de uma hora inteira de viagem em estradas sacolejantes e sempre movimentando ora o corpo, ora o retrovisor.

Diante da notória preocupação da zelosa mãe, o sempre alegre e amoroso pai das garotas dava gargalhadas ao volante. Caçoava a aflição da mãe dizendo-lhe: que nada, não se preocupe minha querida, eles estão apenas se divertindo e lá estão, também, os dois irmãos delas. Mas, certamente, ele também disputava umas olhadinhas pelo bendito retrovisor que a companheira mandara instalar. Talvez a frouxidão precoce daquele acessório tenha sido mesmo antecipada em razão dessa disputa de vira para lá, vira para cá a toda instante. É verdade que nessa luta a mãe sempre vencia. Também como não se lembrar dos lindos versos da poetisa que canta e decanta a essência do amor e os mistérios das mães?
“ É certo que as mães têm um mistério
 Que as fazem nessa Terra tão presentes!
 Mesmo depois de transcender o etéreo
 Para habitar o Céu e as nossas mentes...  

 São elas que ensinam, sempre a sério,
 A cumprir os deveres prontamente.
 São elas que nos legam o critério
 Da escolha. E o fazem brandamente....

  É a Mãe que à noite ao nosso lado
 Mitiga a nossa dor, o medo ancora,
 Faz-nos dormir e ao leito nos conduz...

  Mas em outro momento tão chorado
 Somos nós que a ajudamos em sua hora
 De adormecer nos braços de Jesus...
 
 Autora: ÂNGELA FARIA DE PAULA LIMA

        Alheia a toda essa atenção dos pais a moçada se divertia na carroceria do sacolejante Chevrolet 48/49. Não sei dizer que desfecho tiveram tantas caronas naquele caminhãozinho, mas duas coisas posso garantir. Pescaria era desculpa esfarrapada. O mais importante, com certeza, era a companhia das belas meninas. O caminhão de meu avô também serviu para a mesma situação, com rapazes e moças em passeios pelas fazendas e campos de futebol. Na verdade os rapazes desta história, meus contemporâneos, só iam msmo esperar o final da tarde. Quando muito, nadavam nas lagoas da fazenda e alguns mais dispostos e corajosos chegavam a atravessar a nado o imenso Rio Grande naquela curva logo abaixo da ponte da rodovia. Corajosos, aqueles meninos na travessia do rio, como também na frequente arte de pegar caronas sempre que farejavam as companhias desejadas.

Esse caminhãozinho me contou mais.... Alguns anos mais tarde Sr Toniquinho pegava a netinha primogênita e a levava até a venda das Três Barras, a uns quatro quilômetros pela Fernão Dias. Esse armazém, que era conhecido por “Venda do Sr Júlio”, foi o embrião dos Supermercados Rex. Sr Júlio Sales iniciou seu comércio ali na zona rural das Três Barras, nas terras de seu sogro, João Pereira da Silva, o meu tio Nhô. Este menino frequentava a “venda” quando passava as férias na fazenda do pai, logo ao lado. Funcionou ali até os anos 60. Antes, em 1954, Sr Júlio abriu o Armazém Rex no antigo Mercado Municipal e depois na Franciso Sales. Finalmente, em 1969/70 inaugurou o Super Rex na Travessa Guadalupe, quando já havia fechado a “venda” das Três Barras. Mas, voltando à viagem à “venda”, tive acesso pelas redes sociais a uma postagem emocionada daquela netinha, hoje adulta, relatando a alegria que tinha ao ser levada pelo avô, prometendo-lhe comprar sanduiche de pão com salame, guaraná da marca 507, fabricado em Varginha e alguns docinhos de abóbora, banana ou batata doce em tabletes. Ela preferia as balinhas de abacaxi-puxa, aquelas que arrancavam dentes. Era a festa para a menininha que se encantava com o avô e ainda hoje sente sua falta e se emociona diante das fotos dele e desse caminhão. Coisas do Sr Toniquinho, pai e avô mais amoroso, alegre, sem igual.

Sr Toniquinho e Dona Olga usaram esse caminhão para espalhar o amor. O amor aos filhos, o amor aos vizinhos, aos conhecidos, aos camaradas (empregados) da fazenda e a todos que precisavam de uma carona ao longo da empoeirada ou barrenta estrada. Nem era preciso acenar. Certa vez, voltando da fazenda para a cidade, ele parou no ponto da fazenda Retiro, nas Três Barras e ofereceu para nos levar, a mim e meu pai que o chamava de Tuniquinho de Pauda (assim mesmo, com inversão de letras, mas sempre pronunciado com muito respeito). A atenção, o carinho, o sorriso permanente daquele homem, pai, avô e amigo, eram os mesmos para quem quer que fosse. Indistintamente. Ele tinha prazer em todos os seus gestos. Dava-se ao luxo de passar em frente a um banco comercial, onde trabalhava uma de suas filhas, só para acenar, dar um ligeiro toque na busina e esbanjar um largo sorriso para ela como a dizer: oi, estou aqui, passei só para te ver, filha! Assim era o dono desse caminhão comprado em 1949, há exatos 64 anos e ainda hoje conservado. Jóias, o primeiro dono e o caminhão que me contou tudo ao revê-lo na foto. Inspirou-me  a escrever duas crônicas. A segunda se refere à minha primeira viagem em outro caminhão, igualzinho a esse. Mas essa é outra história. Hoje a homenagem é para esse exemplar pai de família que só sabia semear o amor e deixou um abençoado legado. Um legado que inclui até um caminhão que fala. E que só fala de amor, tal qual aqui escrevi. Que seus filhos e todos familiares colham os frutos desse amor.

Brasília, 24 de novembro de 2013

Paulo das Lavras
A família Pádua  
                           A família e o caminhão sobre a ponte ao lado da fazenda
                                                              
                                   Sr Toniquinho de Pádua, sempre sorridente
                                                                      
Sede da Fazenda Bela Vista, no alto da colina.
Grandes lagoas na entrada da ponte da BR381
 

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