Foto – AFP – FAB/ KC 30- 2901- 06/10/2024, chegando
em São Paulo
Dizem que o
Brasil é gigante pela própria natureza.
É gigante também pelo coração e acolhimento...
Rudy El Azzi/Cônsul do Líbano em São Paulo
Minha cidade natal, Lavras e outras como São Lourenço, no
sul de Minas, receberam muitas levas de migrantes sírio-libaneses. Gente
laboriosa, tangida pelas contingências econômicas, políticas e religiosas,
sobretudo pelos cristãos que fugiam do domínio mulçumano, turco do Império
Otomano. Por causa do domínio desse império, os imigrantes sírios e libaneses
tinham até o ano de 1892, seus passaportes emitidos pelos Turcos. Daí, surgiu o
equívoco dos brasileiros, especialmente em minha cidade natal, de chamar os imigrantes libaneses de turcos.
Aprendi isto nos anos de 1960, quando meu colega de ginásio, Luiz Chalfoun,
corrigiu-me educadamente: “... não somos turcos, somos sírio-libaneses. Em
Lavras, os primeiros imigrantes sírio-libaneses, chegaram na virada do século
IX para XX, intensificando-se a
imigração nos anos 20 e 30 seguintes.
Descendentes dos fenícios, tradicionais comerciantes desde os primórdios
da humanidade, os sírio-libaneses eram exímios na arte de negociação e por isso
se destacaram no comercio varejista e atacadista.
A imigração sírio-libanesa para o Brasil originou-se das viagens de Dom Pedro II, em 1871 e 1876, ao Líbano, Síria, Palestina e Egito. Ficou encantado com a cordialidade dos árabes e decidiu incentivar a imigração para o Brasil. A grande maioria dos sírio-libaneses (80%) se estabeleceu no comercio de tecido e varejo de armarinhos. O Sul de Minas Gerais foi o preferido e quase todas as cidades os receberam e ali estabeleceram extensa rede comercial de varejo. Em Lavras e toda a região (Ribeirão Vermelho, Itumirim, Nepomuceno, Perdões e outras), há inúmeras famílias descendentes de sírios- libaneses, quase todos no ramo do comércio. Entrar numa loja desses comerciantes é quase 100% certo de que não sairá dali sem levar a mercadoria desejada. Se o preço praticado na praça era 100, não era incomum levar-se o produto por 50 ou 60, pelo simples prazer que o comerciante tinha de servir ao amigo que, realmente precisava da mercadoria e o dinheiro estava curto.
Continuando o
périplo pela principal rua da cidade, onde os comerciantes sírio-libaneses
dominavam mais 70% das portas, chegamos, em seguida à loja de Chafic Chalfoun,
pai de meu colega de ginásio Luiz Chalfoun, seguindo-se a Casa das Noivas, de Elza e Leila
Murad, Abraão Curi, A Vencedora (móveis) de José e Elias Curi, Casa Santa
Branca de Joseph Farage, Loja de Elias Semaan, Casa Raffe Haddad, Casa Alberto
Murad, Abraão Curi, Ciro Arbex, do outro lado da rua, com sua Concessionária
Chevrolet, que vendia carros para meu avô desde a sua fundação na década de
1920. Ali também comprava meus Chevrolet Opala e ainda admirava a
competência de seus chefe de oficina,
João Foguete que de tudo entendia e nunca nos deixava na mão, qualquer que
fosse a pane do veículo. Ciro Arbex , tinha para si, lindos cadilacs rabo-de-peixe,
especialmente um vermelho dos anos 50.
Continuando e
descendo a rua, havia outras libaneses, Casa Salem, de José Rachid e o
belíssimo Hotel Vitória, onde gostava de me hospedar e degustar um peixe a
belle meunière. Seguia-se a Casa
Curi, de José Curi onde comprei meu uniforme esportivo (flamenguista) para
levar para o internato, aos 12 anos, no distante Seminário de Itaúna. Do outro
lado da praça, o jardim de Lavras, o consultório do Dr. Orlando Haddad, mais
tarde Hospital e Maternidade. Dr. Orlando Hddad foi um dos fundadores do
Colégio Aparecida em 1942, juntamente com meu avô Anisio (Gaspar) Alves de
Abreu. Havia muitos outros comerciantes
como Abdala Mustafá
Zorkot, da Esquina Perfumada, Abílio Elias Ticle/máquinas de costura, já na rua
Raul Soares. Inúmeras outras famílias de sírio-libaneses atuavam no comercio
local, Mansur, Assad, Farah, Bachir, Jamil Lasmar/Padaria,
Asmar (sem o “L” inicial), Salim, Fouad, Daher, Abbi-Saber, Simão,
Chible/Padaria Santo Elias, Jorge Murad e ainda o engenheiro, do qual fui estagiário
em seu Escritório de Engenharia, Dr. José Alfredo Unes, pessoa extraordinária,
de enorme coração. Muitas outras famílias descendentes de sírios libaneses
viviam em Lavras, mas, não sou capaz de me lembrar de todos. O certo é que,
além de nos marcarem com a presença de seus filhos, nossos coleguinhas de
ginásio e colégio, como Michel Haddad, Toninho Chalfoun, Nelson Curi, Rui
Haddad, Boueri, Mauro Assad e outros,
ele trouxeram a cultura árabe, que valoriza a lealdade, a honra, o
tradicionalismo, a hospitalidade, o respeito, a paciência e a privacidade.
Dentre os costumes árabes de negociação, trouxeram e implantaram a arte de
vender a prestações a perderem de vista, facilitando aos mais humildes a
aquisição de bens de valor mais elevado, da geladeira e TV ao automóvel. Até parecia lei: entrou na loja..., não sai de
mão abanando. Leve para casa..., depois “babai” paga e se não quiser, pode
devolver! Qual o pai que voltaria à loja para devolver uma bola que já havia
sido usada de imediato pelos filho? Os árabes eram terríveis na arte de venda.
Também pudera, desde os tempos dos fenícios cruzavam os mares na busca de novos
mercados.
A cordialidade e hospitalidade no trato com as
pessoas eram as marcas registradas dos sírio-libaneses que se instalaram em
Lavras. Conheciam a todos pelos nomes e sobrenomes. Mas, tinham um segredo que
não revelavam a ninguém... “os códigos” usados para marcar os preços da
mercadoria. Segredo de polichinelo. O Sr.
Raffe Haddad tira vários pares de sapatos da prateleira ou do estoque, nos
fundos da loja e nos fazia experimentar a todos. Bastava manifestarmos o gosto
por determinado modelo e pronto. Parecia que nos tornávamos prisioneiros, pois
não nos permitia sair da loja sem levar os sapatos. Ele cultivava dois
segredos: Primeiro o cliente jamais sabia o preço do produto. Segundo passo,
oferecer todos e deixá-lo escolher o de sua preferência, Pronto, depois disso,
pegava a caixa do sapato, lia o preço em código e dizia-nos: é 100, mas para
você, amigo da família, faço por 80, para levar agora e pague quando quiser e
em quantas vezes for necessário e puder pagar. Eu já sabia... se oferecesse 40,
ele baixaria a oferta para 60 e ao final
eu pagaria só 50. A cada lance naquele leilão de preço, literalmente, ele
consultava o código escrito na caixa do sapato. Dava um largo sorriso, como a
dizer... “você nem imagina o valor que aqui está escrito...”. Sabíamos que ali
estava anotado em código indecifrável, o mínimo pelo que ele poderia vender e
ganhar seu lucro. Mas não sabíamos e nem nunca soubemos quanto, pois ninguém
era capaz de decifrar aquele código das arábias... A única certeza era que, se
ali ficássemos uma hora ou mais e o impedíssemos de atender a outros clientes
que chegassem à loja, ele sempre acabaria cedendo por um preço próximo à metade do valor inicial. Às vezes
era desgastante, mas quase sempre a conversa era agradável e eu, curioso, o
provocava, pedindo para contar sua história de imigrante, sobretudo, sobre os
parentes libaneses que não vieram para o
Brasil e estavam sofrendo com as guerras do Oriente Médio, já nos anos 60/70.
Os irmãos Raffe e Haical Haddad, exímios comerciantes, marcaram minha vida em
Lavras, desde os tempos de menino, quando acompanhava os pais nas visitas às
suas lojas e mais tarde, já professor na UFLA, não deixei frequentar seus
estabelecimentos. Como era bom conversar com eles e descobrir coisas das
arábias. Estavam sempre alegres, calorosos. Acolhedores. Tinham um vínculo
fraternal com meus pais e avós. Nos tratavam com distinção e carinho familiar.
Assim foram e são os descendentes desses laboriosos imigrantes sírio-libaneses,
que se radicaram em Lavras e em todo o Sul de Minas, Rio e São Paulo. Muito
contribuíram e contribuem para o progresso da cidade.
Uma certeza eu
tenho, de conversas e longas discussões históricas com o Sr. Haical Haddad e
Rafe Haddad sobre eventos e guerras religiosas naquela região árabe, nos anos
70. E eles vieram para o Brasil,
tangidos muito antes, fugindo da perseguição religiosa. Eram muito bem
informados, pois eram assinantes de jornais libaneses. Em Lavras, todos eles
eram fervorosamente católicos e sempre admirei isso, pois os observava, quando
eu era coroinha na Igreja Matriz e acolitava a distribuições da comunhão nas
missas dominicais. Depois que conheci os motivos da imigração para nossa
cidade, passei a admirar ainda mais a fibra dos sírio-libaneses de Lavras e os
respeitava por isso. Coração grande, amigos, laboriosos, acolhedores... O
cônsul de São Paulo sabia do que estava falando. Eles são assim também. Quem
duvidar, que leia os livros de um grande amigo de Lavras, residente em São
Lourenço, Filipe Nacle Gannam, sobre suas viagens ao Líbano. Puro amor e
acolhida sempre!
Foi assim ,com
esse olhar carinhoso do passado, que vi e ouvi o Consul libanês de São Paulo,
declarar, à chegada do primeiro voo da
FAB de resgate dos brasileiros-libaneses que foram obrigados a deixar o Líbano:
... É mesmo, pensei de imediato e me emocionei. Bem assim mesmo. Foi assim, como descrevi, que os libaneses me trataram e a todos de minha família, ali em Lavras, por todo o tempo e ainda hoje quando lá retorno, observo o mesmo comportamento. Cidadãos probos, religiosos, caridosos, amigos. Que Deus proteja seus familiares ali no Oriente Médio em guerra. Nosso coração brasileiro também é gigante e acolhedor, como bem disse o Sr. Rudy El Azzi/Cônsul do Líbano em São Paulo e não pude deixar de me emocionar ao assistir o desembarque daquelas mães, pais e suas crianças, portando bandeiras e desabando em apertados abraços de conforto nesta terra
Foto- arquivos de Rogério Farah, in:https://www.facebook.com/rogerio.farah.
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