Notas Preliminares
Esta crônica se constitui no Capítulo 4.1 do livro “Um Seminário na Década de 1950”. A
obra conta a história do menino que decidiu, por contra própria, seguir para o
distante Seminário para se tornar sacerdote. Tudo girava em torno de sua
vocação religiosa e a família tratou de apoia-lo. Entretanto, o menino de
apenas 12 anos de idade não imaginava o quão dura seria a vida longe de
casa.
O livro contém nove
capítulos e ainda se encontra em fase de revisão. Alguns capítulos já foram
publicados neste blog, cujos links estão indicados ao final desta crônica.
O
primeiro dia no Seminário
O Seminário N.S. de Fátima funcionou
de 1954 a 1968 em um belíssimo prédio situado no centro de Itaúna-MG. Anexo a
ele e ocupando a fachada da rua funcionava o Colégio Sant´Ana que também
aceitava alunos externos, da cidade e região. Ocupava enorme área e distava
apenas um quarteirão da igreja matriz, na principal praça da cidade. No Colégio
estavam matriculados os 70 meninos seminaristas, internos, e outro tanto de
alunos externos. O Colégio, que ainda hoje funciona, incorporou toda a
infraestrutura do antigo seminário que fechou suas portas nos anos 60. A
maioria dos seminaristas era de meninos de até 14 anos de idade. Eram
procedentes em grande parte do próprio estado de Minas Gerais, mas havia alguns
de São Paulo, outros da região nordeste e até mesmo do norte. Naquele tempo havia dois tipos de
seminário para a formação de sacerdotes. O Seminário Menor, como o de Itaúna,
recebia meninos dos 12 aos 17 anos para os estudos de segundo grau, ou ensino
médio, os antigos ginásio e colegial. Já o Seminário Maior, de nível superior,
incluía os estudos avançados de Filosofia e Teologia como formação final do
clérigo.
Chegamos ao Seminário no dia 11 de fevereiro de 1958, ano da Copa Mundial de Futebol, quando, aliás, o Brasil sagrou-se campeão pela primeira vez e trouxe a Taça Jules Rimet. As aulas do curso ginasial seriam iniciadas depois do carnaval, dali a uma semana. Os novatos chegavam bem antes do início das aulas de modo a se adaptarem à rotina interna do Seminário. O nosso primeiro dia no seminário foi diferente, de muita emoção. Não bastasse a tensão da despedida do pai e da irmã, ali no grande portão de entrada, com a sensação mais dolorida e marcante que o menino experimentara em toda a sua vida, as emoções daquele dia se sucediam a cada momento seguinte. Chegando logo após o almoço, fui conduzido à presença dos amiguinhos de Lavras, Pedro Júlio e Miguel Cesar. Outro seminarista, Clóvis Augusto Ribeiro, veterano e mais velho, natural da pequena cidade de Inimutaba, próxima à Curvelo, também estava ali e seria o meu tutor durante todo o ano, conforme a praxe naquele internato. Ensinar-me-ia as regras, horários e tudo mais que regia a vida no Seminário. Levaram minha mala de viagem para dormitório e ajudaram-me a organizar as roupas no pequeno armário de apenas 90 cm de largura por 1,10m de altura. Lá já estava a grande e pesada canastra, despachada dias antes pela ferrovia, com as roupas de cama e todo o enxoval cuidadosamente preparado pela família. Organizamos tudo nos devidos lugares, inclusive estendendo o lençol na cama, travesseiro enfronhado e colcha de piquê, branca, com desenhos geométricos. Todas as peças de roupa, inclusive as toalhas, tinham bordadas as iniciais do nome do menino e ainda mantinham o perfume de casa. Estava tudo em ordem no baú, roupas bem dobradinhas como a mãe e as irmãs as arrumaram ali em casa, na minha presença e explicando sobre cada peça de roupa, como e quando usá-la.
Desfazer
as malas e acondicionar as roupas no pequeno armário foi uma tarefa cheia de
reminiscências. A cada peça de roupa ou objeto que pegava vinha à memória a
presença de minha mãe e da irmã mais velha. Foram elas que tudo fizeram, desde
a compra dos cortes dos tecidos, perguntando-me se gostava da cor ou da
padronagem até à confecção da peça, em casa, tirando medidas e fazendo-me
provar a toda hora. Nunca havia pensado antes que coisas tão simples assim
pudessem causar tantas emoções de saudade e amor no coração. A distância e a
ausência dos entes queridos faziam crescer a saudade a cada peça de roupa, a
cada objeto retirado da mala ou da abarrotada canastra. Aquilo desencadeava no
menino uma vontade louca de tudo deixar e sair correndo para a estação do trem
e nele embarcar de volta com o pai e a irmã que partiriam às cinco horas
daquela tarde. Mas, as presenças dos dois coleguinhas e do recém conhecido
tutor, que ajudavam na preparação do dormitório, não permitiram que as lembranças
prosseguissem e dessem vazão às lágrimas reprimidas. Estas só apertaram para
valer à noite, quando apagadas as luzes e todos já recolhidos, o menino desabou
em pranto silencioso no travesseiro que ainda tinha o doce cheiro de casa. Com
o coração dilacerado pela falta da família em sua primeira noite fora de casa,
sozinho ali com seus pensamentos o menino demorou a pegar no sono. Naquele primeiro dia passou boa parte
da noite em prantos, numa sensação nunca antes experimentada. Longe da família
pela primeira vez e com um longo ano pela frente em ambiente totalmente
estranho e submetido à rigorosa rotina, à base do apito como numa ordem unida
de militares no quartel. Definitivamente, foi bastante dura para o menino
aquela primeira noite longe de casa.
Terminada
a arrumação das roupas fomos conduzidos à Sala de Estudos. Ali se encontravam
todos os seminaristas. Entramos pela porta lateral, ao final do dormitório e já
de frente para os seminaristas, o diretor apresentou-nos como o novato que
acabara de chegar do sul de Minas e pediu uma saudação de acolhida. Encerrada a
apresentação com calorosa salva de palmas de boas vindas, um pouco constrangido
e com o coração batendo forte, o menino já sentindo o peso da saudade custou a
segurar o choro. Respirou fundo e encarando a plateia pensou: Aqui estou e
esses são de agora em diante os meus coleguinhas e todos têm a mesma vocação
que eu, de servir a Deus no sacerdócio. Que Ele esteja aqui comigo por todos os
dias e me dê forças para vencer. Amém! Agradeci e cumprimentei a todos com um
aceno e ato contínuo, dirigi-me à mesinha que nos fora reservada. Semelhante a
uma carteira de sala de aula, a mesinha individual tinha o tampo dividido ao
meio, com cada metade abrindo-se para cima e para os lados. Ali, guardávamos
todos os livros, cadernos e demais pertences escolares numa espécie de caixote
de uns vinte centímetros de profundidade.
À frente da grande sala de estudos ficava a
mesa do regente/tutor sobre um tablado elevado. Ainda à frente, à esquerda e ao
lado da porta de entrada exclusiva ao dormitório dos meninos, ficava porta do escritório/dormitório
do padre Adriano, diretor geral do Seminário. Sua cama era tipo um beliche
dobrável sob a estante de livros. Quando recolhida, dobrada para cima e
encostada no fundo da estante, ficava encoberta por uma cortina de correr.
Assim, quem lá entrasse não notaria sua cama retrátil sob a estante de livros. Dali,
de seu quarto/escritório, o diretor tinha controle total sobre a sala de
estudos e do dormitório dos meninos menores. O dormitório dos maiores ficava
simetricamente oposto ao primeiro e entre eles o hall das escadarias e as
instalações sanitárias. Estas tinham seis boxes de chuveiro e igual número de
instalações sanitárias. Os lavatórios, em maior quantidade, eram dispostos logo
à entrada, revestidos de azulejos e eram comuns a todos os seminaristas,
maiores e menores.
Naquela primeira quinzena de fevereiro ainda
era período de férias e não havia deveres escolares e nem lições a estudar, portanto
o tempo na Sala de Estudos era livre. Muitos cuidavam de coleções de selos,
outros liam livros diversos e havia musica ambiente, clássica ou sacra. Logo em
seguida foram todos liberados para o futebol e por ser o primeiro dia do
novato, apenas assistimos aos revezamentos de times nos dois campos de futebol.
Terminado o tempo, subimos para o banho.
Surpresa..., banho frio de cortar a respiração e o tempo era cronometrado. Três
minutos e o apito soava. Tínhamos que sair em 30 segundos após o estrilar do
apito, que soava como no futebol.
Certa
vez atrasei-me no chuveiro, ainda todo ensaboado e tentando retirar manchas de
tinta dos trabalhos manuais, não foi possível atender ao apito com a ordem de
saída. Afinal, o tempo muito curto, três minutos apenas,
para se ensaboar e enxaguar o corpo. Fizesse assim em casa, nesse curto tempo,
certamente a mãe iria inspecionar se o banho foi bem tomado. Ainda ensaboado fechei
o registro do chuveiro, fiquei quietinho, esperando a nova turma da fila
entrar. Não adiantou, pois chegaram seis meninos, numero exato de boxes com chuveiro.
Sobrou um pelo lado de fora e ele sabia que, quem quer que ali estivesse
trancado, deveria dar-lhe o lugar. Bateu, bateu, gritou discretamente..., não
restou alternativa senão enrolar-me na toalha, ainda que ensaboado e sair.
Voltei para o final da fila, não sem antes ser abordado pelo padre regente da
disciplina. De longe, quase no final da fila, ele levantou os olhos do
breviário que lia (todos eles liam o breviário enquanto nos supervisionavam, em
qualquer lugar. O breviário era um livro com os ofícios e orações diárias de um
sacerdote) e acompanhou-me com olhar até passar por ele, quando me inquiriu. Por
ser novato fui perdoado, mas aprendi a lição e percebi que o rigor dos holandeses
era maior que dos padres alemães do colégio em Lavras de onde viera. Fazia-nos
lembrar do rigor do sargento do Exército, comandante do Tiro de Guerra, terror
das mães que viam seus filhos se atirarem nos brejos, riachos e montanhas
pedregosas a um simples apito ou grito de ordem do militar. Sair ensaboado do
chuveiro foi o primeiro “mico” que o menino pagou no internato. Porém, o
ambiente era muito respeitoso e ninguém se aproveitava das falhas ou faltas dos
colegas. Havia muita disciplina e respeito entre todos os meninos.
A primeira noite no internato
Encerrado o banho, todos já vestidos, descemos
em fila para o refeitório. Às 18 horas era servido o jantar. Conduziram-me a
uma mesa para seis meninos. O chefe da mesa ficava ao centro, tendo um menino a
cada lado e os outros três em frente. Clóvis era o chefe e ao mesmo tempo meu
tutor. Fazia-se breve oração, assentávamos e o chefe determinava a dois dos
membros da mesa que fossem ao balcão da cozinha buscar as travessas com as
iguarias. Encerrado o jantar outros dois levavam os pratos e talheres usados
até à cozinha. Seguia-se breve recreio, ali mesmo do lado de fora do prédio,
sob as mangueiras e às 19:00 horas iniciava-se a reza do terço, na capela ao
lado do refeitório. Essa oração era transmitida pela Rádio de Itaúna, por um
link físico, fios que interligavam o Seminário à estação da rádio emissora
local. Ao final do terço cantávamos um hino sacro, acompanhado pelo órgão,
tocado pelo Padre Luiz Turkenburg. Após
o terço subíamos para a sala de estudos, onde permanecíamos até as 21:45h e em
seguida para o dormitório. Antes de nos dirigirmos para o dormitório fazíamos
ligeira oração, ajoelhados sobre as cadeiras das escrivaninhas agradecendo pelo
final da jornada. Dalí seguimos então para o dormitório e após
escovar os dentes arrumamos a cama, o travesseiro, virol e colcha de lã, tarefa
que o menino nunca fizera antes em casa, pois a mãe sempre o fazia e era só
chegar a deitar-se. Nunca precisou fazer a cama para dormir, pois havia, ainda,
permanentemente agregada em casa, a figura da empregada da família sempre à
disposição, conforme costume da época. Agora, ali estava a fazer aquela simples
tarefa, pensando no carinho, o aconchego de casa com todos os familiares ao
redor. Foi preciso faltar isso, tendo o próprio menino que cuidar de si pela
primeira vez para, então, lembrar-se do quanto era importante e amoroso aquele
simples ato de arrumar a cama para se deitar. Feito isso, ajoelhado no chão de
tacos de ipê e curvado sobre a pequena cama patente, fazia a última oração
individual, pedindo as bênçãos de Deus para si e para os familiares que se
encontravam distantes.
Assim encerrou-se aquele primeiro dia no
Seminário. Tudo era novidade e o menino a tudo observava com atenção e
interesse. Estava
feliz porque a partir de então iniciava-se a realização do sonho de ser padre. Mas, contudo, na hora em que se apagaram as
luzes e já sob as cobertas e mesmo tendo sido maravilhosamente recebido, com
tantas atenções a ele dispensadas e ainda a certeza de que ali era o lugar
certo para cumprir a vocação de um dia ser padre, celebrar missa, fazer sermão,
ensinar em escolas..., o menino de 12 anos, que nunca saíra de casa... desabou,
pois nunca imaginara o quão duro era estar ali, sozinho, como naquele primeiro
dia longe de casa, dos entes queridos. Durante todo o tempo em que ali esteve e
em todas as noites, sempre pedia a Deus
que lhe desse graça e força para vencer e realizar a sua vocação.
O dia seguinte e o staff do Seminário
Em período de férias a rotina e as atividades eram
mais leves. O Seminário
N.S. de Fátima, esse era o nome do seminário de Itaúna, contava com vários
religiosos holandeses e dentre eles se destacavam os padres Adriano Turkenburg
(Adrianus Petrus Turkenburg – 1920/Amsterdam - 2006- Sete Lagoas MG) diretor
geral e Luiz Turkenburg, irmãos de sangue; José Wetzels (1925-
Bocholtz/Maastricht, Holanda – 2012- Itaúna MG), chamado carinhosamente de
padre José das Crianças; padre Francisco; padre Geraldo, bem jovem e recém-chegado
da Holanda e outros além do Irmão João, também holandês e que fazia todos os
serviços de manutenção hidráulica, elétrica, carpintaria e ainda exercia o
ofício de pedreiro e pintor de paredes. Era o engenheiro das instalações
prediais e mestre de obras. Havia apenas um único brasileiro, o padre Manoel de
Lima Cauper. Todos exerciam alguma função. Padre Francisco, por exemplo, era o
tesoureiro. Além das mensalidades e finanças, cuidava também do controle do
dinheiro que os pais deixavam depositado para despesas eventuais. Gostávamos de
todos eles, pois sempre nos tratavam com carinho e respeito. Lógico que o padre
diretor era temido por conta da severa disciplina que impunha a todos, mas
nunca destratou ou ofendeu nenhum menino. Sempre nos tratava com autoridade
respeitosa. O padre Luiz era dos mais queridos, pelas aulas de inglês que o
menino gostava e também como regente do coral, além de ser ótimo no piano e no
órgão/ harmônio. Estava sempre a nos brindar com belíssimas performances nos
horários de recreio. Também o padre Francisco era bastante querido, pois mesmo
com sequelas físicas sofridas na Segunda Grande Guerra e sempre mancando da
perna direita, que parecia ser bem mais curta. Foi vítima de uma tragédia acontecida
na sua cidade natal, na Holanda. Contou-nos, aos novatos, curiosos como toda
criança, sobre as deformações de seu rosto, perna e todo o corpo. Encontrou um
objeto estranho em uma praça, sob um vão da calçada. Tinha o formato de uma
pera, com bico e um pino atravessado. O garoto pôs-se a soprá-lo, pois não
sabia tratar-se de uma granada. Puxou o pino e o artefato explodiu em seu
rosto. Uma tragédia, embora ele minimizasse a narrativa de modo a não
impressionar em demasia os meninos que a essa altura já estavam de olhos
arregalados e outros até chorando. Submeteu-se a várias cirurgias corretivas
com implante de pele na face, nas mãos e outras partes do corpo. Estilhaços da
granada causaram-lhe também grande estrago na perna direita. Milagrosamente
nada sofreu nos olhos. Era fácil entender por que ele minimizava os efeitos da
explosão em seu corpo, pois, muitos dos garotos consternados com a tragédia faziam
perguntas com lágrimas nos olhos. Também por isso, certamente, era dos mais
queridos do Seminário, além de ser extremamente alegre e animado nas
brincadeiras com os meninos, especialmente no futebol. Gostava de jogar como
goleiro, pois tinha dificuldade para correr, devido à deficiência física de sua
perna. Sempre tinha um sorriso para os meninos, embora sua face ligeiramente
deformada também tivesse profundas cicatrizes provocadas pela explosão da
granada.
Havia ainda outro padre que sempre exprimia alegria junto às crianças, o Padre José Wetzels. Era só alegria e nos contava casos de suas viagens em busca de novas vocações, além de também jogar futebol com a meninada. Vestia uma bermuda preta até os joelhos, enquanto o padre Francisco nunca tirava sua batina branca, talvez para não expor suas sequelas físicas. Mas, havia uma vantagem no goleiro de batina..., pois nunca tomava uma bola ou um gol no meio das pernas, considerada a maior vergonha de qualquer goleiro, pois a batina funcionava como cortina intransponível. Esses eram os padres holandeses que mais de destacavam. Havia apenas um sacerdote brasileiro, ali no Seminário, o amazonense Padre Cauper, que tocava violão e cantava as músicas folclóricas, como aquela do “Mestre Domingos, o que é que você quer? Eu não vim fazer barulho..., eu só vim “tumar” o seu café....”. Aonde quer que ele chegasse formava-se logo a rodinha e causos e violão com cantorias nunca faltavam.
O dia dos
meninos seminaristas era rigorosamente controlado pelo relógio e o apito dos
padres Adriano e Luiz. Às vezes também o padre Francisco atuava nessa função. Sempre
com o breviário nas mãos, lendo a palavra de Deus, eles caminhavam por entre as
fileiras das carteiras da sala de estudos ou onde quer que estivéssemos
reunidos. Impunham disciplina draconiana, mas, aqui cabe um parêntesis sobre a
disciplina. Era respeitosa e ao contrário de relatos de outros colegas
seminaristas, de épocas diferentes, nunca vi ou presenciei reprimendas publicas
ou mesmo os famosos castigos humilhantes de se ficar de pé na frente da turma,
tanto em sala de aula como nos demais ambientes. Nada disso aconteceu naquele ano. Bastava um
olhar de qualquer que fosse o supervisor e já era o bastante para o menino
entender e cessar sua estripulia.
A jornada começava cedo com o despertar às 05:45
horas. Num leve bater de palmas todos acordavam e o Padre Adriano nos saudava
em Latim: Benedicamus Dominum e
respondíamos: Deo gratias e saíamos
apressados, de chinelos e toalha de rosto no pescoço e escova de dente à mão já
com a pasta dental, o dentifrício como dizíamos. Tínhamos 15 minutos para nos
aprontar, descer as escadas em fila e ir direto para a capela. O Padre Adriano
nem tirava os olhos do breviário e nós, os meninos nos púnhamos a correr para o
banheiro e logo pegar a fila dos lavatórios para escovar os dentes e voltar
correndo, tirar o pijama, dobrá-lo, vestir roupa do dia, arrumar a cama e
deixar tudo em ordem. Ainda bem que éramos meninos imberbes e não tínhamos que
fazer a barba, pois se assim fosse, os 10 minutos não seriam suficientes. Cinco
minutos antes das seis horas o apito tocava e entrávamos em fila para descer as
escadas em direção à capela. Às 06h00min horas em ponto começava a missa.
Interessante que sempre fui devagar, lento, para me levantar pela manhã, mas
ali não havia lugar para isso e nem era por causa de suposto medo ou receio do
Padre Adriano. Embora fosse enérgico, firme nas suas palavras, nunca destratou a
nenhum de nós, meninos às vezes travessos. Suas palmas para acordar a meninada
eram suaves e cadenciadas e a maneira como nos saudava no despertar para um
novo dia soava, em Latim, mais alegre ainda. Mesmo hoje, mais de 60 anos
depois, tenho gravado no subconsciente o som daquelas palmas e sua saudação,
como também as suas feições de olhos azuis, queixo fino, cabelos bem loiros cortados
em estilo militar, batina branca com cordão preto, duplo, amarrado na cintura e
com pontas trabalhadas alcançando abaixo dos joelhos. Falava o português sem o
mínimo sotaque e quando o discurso era longo costumava espumar um pouco no
canto da boca. Nunca o vimos falar em seu idioma nativo, o holandês, nem mesmo
com seu irmão de sangue, o padre Luiz. Além de diretor geral do Seminário, era
nosso professor de Latim, com aquelas complicadas declinações, mas que tínhamos
que dominar plenamente pois, naquele tempo essa era a língua oficial da Igreja
em todos seus atos litúrgicos. Para tanto deveríamos dominar e falar
fluentemente aquele idioma, já considerado língua morta..., menos para a Igreja
Católica Apostólica Romana. Ainda hoje me lembro das letras em latim de alguns
hinos sacros e rituais canônicos. Isto porque tendo sido coroinha até a metade
dos anos 60, toda a liturgia das missas e demais atos litúrgicos eram celebrados
em Latim. As missas em português só foram iniciadas algum tempo depois.
Essa era a rotina diária com rigorosa disciplina. Durante os estudos, por exemplo, nada era permitido nem mesmo pedir algo emprestado ao colega ou se levantar da carteira. Ir ao banheiro nesse horário, só com a permissão do padre regente que, na maior parte do tempo permanecia sentado à mesa sobre um tablado de frente para todos. A ausência dele naquela mesa significava que estava transitando nos fundos e ninguém se atrevia a olhar para trás. Se o fizesse era sinal de que estava preocupado com o fiscal e o cruzar de olhos já era o bastante para intimidar o descuidado estudante seminarista. Para se levantar da carteira de estudos, a única exceção era quando havia necessidade de se abastecer a caneta. Explico! Naquele tempo usava-se somente a caneta tinteiro. Não existiam as chamadas esferográficas. Havia um cômodo no final da Sala de Estudos com uma pia de bancada de concreto bem grande. Sobre esta havia um tabuleiro, raso, cheio de areia, onde ficavam vários tinteiros (vidros com tampa de rosca) com a famosa tinta azul real lavável da marca Parker. Ali abastecíamos nossas canetas tinteiros. A minha era da marca COMPACTOR, bem macia de se escrever e não borrava. Por isso era a mais usada pelos estudantes. Era só encher a caneta, bastando bombear seu pequeno reservatório de fina, maleável e resistente borracha. Caso houvesse algum respingo, a areia o absorvia e o ambiente ficava sempre limpo. Nos cadernos, caso houvesse algum respingo descuidados, havia o mata-borrão, sempre disponível como brinde das livrarias e papelarias. Certa vez a caneta caiu e estragou a pena. Padre Luiz levou-a em uma de suas idas a Belo Horizonte e voltou novinha. Itaúna, cidade pequena de uns 15.000 habitantes, não dispunha desses serviços de reposição ou reparos de canetas.
À
entrada do cômodo das tintas, havia na parede um enorme mapa do estado de Minas
Gerais. Ir ali e não procurar e contemplar o nome e a localização da cidade de
Lavras, quase no pé do mapa de quase dois metros de altura, era como se não
tivesse passado por lá. Ver o nome da cidade natal já era um bálsamo para
aquele isolamento em local tão distante e que pelas dimensões do mapa mais
distante parecia. Nele estava nitidamente traçada a sinuosa ferrovia que a
interligava a Itaúna. Eram mais de 500 km e a rodovia Fernão Dias sequer
existia no mapa daquele ano de 1958, embora já estivesse em construção e
efetivamente inaugurada dali a ano e meio.
Ao
amanhecer, todos os dias, o menino seminarista contemplava o sol nascente que
começava a projetar os primeiros raios de luz pela janela do dormitório no
segundo andar do imponente prédio principal. Logo em seguida o Padre Adriano
nos despertava. Era hora de saltar da cama, pegar a toalha de rosto, a escova
de dente, calçar os chinelos e caminhar em fila para os dez ou doze lavatórios coletivos
no hall logo à saída dos dormitórios. Camas arrumadas e uniformes bem trajados
lá íamos, em fila, descendo as escadas para o primeiro andar onde se localizavam
a capela e o refeitório, lado a lado. Nas missas gostávamos de atuar como
coroinha, ajudando o celebrante. Nas missas de domingo, um pouco mais tarde e
quase sempre na igreja matriz da cidade, os coroinhas atuavam em duplas. Após a
missa seguia-se o café da manhã. Às sete horas já estávamos em sala de aula, no
prédio anexo onde funcionava o Colégio Sant´Ana que também recebia alunos
externos. Nossa classe do segundo ano ginasial era mista, quase meio a meio
entre seminaristas e alunos externos. Terminadas as aulas do período da manhã seguíamos
para o almoço que era servido às 11:30h e do refeitório seguíamos direto para o
salão de recreio.
O refeitório era bem amplo e continha quatro
fileiras de três mesas cada. Tinham pesados pés de concreto pré-moldado, tampo
de granito e acomodavam seis lugares. Havia o chefe da mesa, geralmente um
seminarista mais antigo, os chamados “maiores”, com 16 ou 17 anos de idade. Era
o encarregado da disciplina durante as refeições. Qualquer deslize no
comportamento dos meninos o chefe intervinha e depois reportava diretamente aos
padres responsáveis pela disciplina geral. Estes, os diretores e demais membros
do seminário e que não passavam de uns oito clérigos, ocupavam a mesa da
cabeceira que ficava em posição perpendicular às demais fileiras. O chefe
determinava, em forma de rodízio, quem deveria ir ao balcão da cozinha pegar as
tigelas e travessas de comidas que, se necessário, eram reabastecidas. Esse
balcão possuía uma pequena janela em arco, com base de granito, que servia de
apoio, onde também eram depositados os pratos e talheres que eram recolhidos
para as lavagens em enormes pias. Naquele tempo não havia ainda o sistema de self-service,
daí o abastecimento em travessas para cada mesa. Ao final das refeições, os
meninos escalados em rodízios diários recolhiam os pratos, travessas e talheres
levando-os até o balcão da cozinha. Todos gostavam muito da cozinheira, Dona
Fia, mulata bem forte como convém à maioria das cozinheiras, nos dedicava
carinhosa atenção. Ficava alegre e estampava largo sorriso quando voltávamos
com as travessas para reabastecer a mesa, como que a dizer... os meninos
gostaram da comidinha que fiz. O cardápio
não variava muito e nunca faltavam carne cozida e salada como complementos.
No período da tarde, aqueles que tinham aulas
seguiam para as respectivas classes e os demais para o grande salão de estudos.
No final da tarde havia futebol e recreio geral e logo depois seguia-se o
jantar. O futebol era o esporte preferido da meninada. Havia dois campinhos,
ambos de terra batida, sem gramado e tampouco redes. Mas, mesmo assim, era o
esporte mais disputado. Após o jantar, o terço e os estudos da noite,
encerrava-se o dia. Na manhã seguinte repetia-se o ritual diário. No sábado era
dia de se preparar a roupa suja em um saco, identificado com enormes letras
pintadas a pincel. Coube ao menino a letra I que era a inicial do nome da
lavadeira. Entregavam-se as roupas devidamente listadas em rol próprio e ao
mesmo tempo recebiam-se as da semana anterior, lavadas, passadas, dobradas e
acondicionadas no mesmo saco que levara as roupas usadas na semana anterior.
Como visto,
a rotina diária no Seminário era extremamente rígida, controlada minuto a
minuto. Não havia tempo para atividades isoladas ou momentos de intimidade,
pois todas as áreas e ambientes eram coletivos, bem diferentes do ambiente
familiar com quarto exclusivo. Nunca ficávamos a sós, sempre havia alguém por
perto, seja um padre, professor, ou mesmo o colega tutor, monitorando cada
passo, cada gesto desde o despertar até o encerrar do dia. Durante a noite lá
estava o padre diretor, bem ao lado, cujo quarto era contíguo ao dormitório dos
menores e se comunicava por uma pequena porta. Foi por ela que, numa noite
qualquer, o Padre Luiz nos flagrou em plena guerra de travesseiros, meia hora
após o toque de recolher. Tudo começou com uma sonora gargalhada lá nos fundos,
na última cama, perpassando por cada um dos meninos que acompanhavam o coro da
bagunça. Um não gostava, resmungava... e pronto, estava iniciada a guerra dos
travesseiros que voavam como bólidos por sobre nossas cabeças. E tomem travesseiradas
para lá e para cá, até que a portinhola se abriu bruscamente e o facho de luz
de uma lanterna varreu as duas fileiras de camas. Correria geral, todos pularam
em sua cama, mas os travesseiros atirados ficaram pelo caminho como prova cabal
com as impressões digitais de cada infrator. Castigo rigoroso no dia
seguinte... e lá estava o menino das Lavras, flagrado em meio à inocente
bagunça. Não havia como negar e de nada adiantou correr no escuro, pular na
cama e cobrir a cabeça como se estivesse em sono profundo. O padre supervisor
fez questão de pegar um travesseiro a mais de 10 metros de distância e com a
lanterna focou nas iniciais gravadas na fronha: PRS..... Puxou o cobertor,
entregou-me o travesseiro, iluminando meu rosto com a lanterna e disse baixinho,
porém firme: amanhã conversaremos... Custei a dormir naquela noite... Ainda
hoje, quando brinco com meu netinho de oito anos, com travesseiradas vigorosas
de ambos os lados, me pego em doce recordação daquela noite no internato e que
gerou castigo no dia seguinte. Dou gargalhadas de contentamento por estar ali
como a vingar o castigo recebido no Seminário e ao mesmo tempo proporcionar
tanta alegria ao pequeno. Durante uma dessas constantes guerras de travesseiro,
a toda hora e com olhinhos arregalados, o netinho perguntava: “Vovô..., e se a
vovó ou uma das tias chegarem aqui, elas vão brigar conosco, porque bagunçamos
o quarto...”. Não se preocupe, retirei os quadros ornamentais da parede e melhor
de tudo..., tranquei a porta de entrada... e tome travesseirada, defenda-se ...
rsrs. Tão pouco..., para tanta felicidade
da criança que vê no vovô seu cumplice na infração às regras da casa das rigorosas
guardiãs da ordem, do asseio e da disciplina que proíbe essa inocente guerra de
travesseiros. Mal sabia ele que ali não estava vovô adulto e sim a velha
criança que um dia fora flagrada na mesma guerra de travesseiros em meio a uns
vinte coleguinhas do internato. Naquele dia não havia tranca na porta e fomos
flagrados e castigados, hoje, não, estamos a salvo com a porta trancada. Doce
vingança, mais de meio século depois daquela malsucedida noite das
travesseiradas no internato.
Assim
era a rotina do internato no Seminário de Itaúna naquele ano de 1958. Rigorosa,
minuto a minuto e sempre controlada pelos supervisores de disciplina. Mas,
embora o menino a estranhasse nos primeiros dias, logo se adaptou às normas da
casa. Hoje, distante no tempo, posso avalia-la como positiva, pois afinal, não
se pode relaxar na disciplina quando se lida com turmas de quase uma centena de
meninos, cheios de energia e prontos para desafiar a ordem. Obedecer às regras,
ser educado, polido e respeitar a autoridade dos mais velhos ou dirigentes, são
requisitos que integram a boa formação dos jovens. Acresça-se, ainda, ao rigor
da disciplina ali exigida, a esmerada Educação social e religiosa e tem-se,
portanto, todos os ingredientes para a formação dos jovens com ilibado caráter,
controle das emoções, competências, habilidades
e motivações em relação aos valores de vida. E por que agora, mais de sessenta
anos depois, avaliar aquele rigor na disciplina como positivo? Simples, porque
o relembro com saudade e a definição mais apropriada que vi para esse sentimento
é: Saudade é o amor que fica. E
ficou para sempre no meu coração a primorosa educação, a formação que ali
recebi. A saudade e a dor da ausência da família foram os espinhos que todos
encontramos na caminhada da vida e, embora constantes ali no internato, foram
suplantados pelos benefícios recebidos. Amém e gratidão à memória dos padres
holandeses, abnegados missionários que deixaram sua pátria. Verdadeiros
educadores, de primeira linha e que dedicaram a vida inteira ao sacerdócio
específico de formação de nossos jovens, ali entre as montanhas de ferro e
manganês das Minas Gerais. O menino foi muito afortunado, pois recebeu a melhor
educação possível, ministrada pelos padres holandeses do Seminário de Itaúna,
dos padres alemães no Colégio Aparecida e dos missionários norte-americanos do
Instituto Presbiteriano Gammon, em Lavras.
Brasília, 28 de abril de 2021
Paulo das Lavras
Notas:
1- A presente crônica
é parte do livro: “Um Seminário na década de 1950”, composto
de nove capítulos. Aqueles já publicadas neste blog têm os links indicados
abaixo, conforme projeto editorial:
Título
geral: Um Seminário na década de 1950
Cap.I- Uma
viagem ao passado – http://contosdaslavras.blogspot.com.br/2016/07/um-
seminario-na-decada-de-1950-parte-i.html
II-
O despertar da vocação - http://contosdaslavras.blogspot.com/2021/03/o-despertar-da-vocacao-sacerdotal-um.html
III- a viagem para o distante Seminário - http://contosdaslavras.blogspot.com/2020/07/a-viagem-para-o-distante-seminario.html
IV- A vida no Seminário
4.1- a rotina
de um internato
4.2- os seminaristas
4.3- os estudos do colégio
4.4- A
religiosidade
4.5- o lazer e cultura
4.6-
Eventos marcantes
4.6.1
- Fundições e Tecelagem Itaunense
4.6.2-
Morro do Bonfim- a capela
4.6.3-
Copa do Mundo de 1958
4.6.4- A morte
chega ao Seminário – http://contosdaslavras.blogspot.com/2017/07/a-morte-chega-ao-seminario.html
V
– A viagem de volta - O fim
VI- O reencontro – 55 anos depois
VII-
O legado
VIII- Anexos: Curiosidades
de 1958
IX-
Pos-Scriptum:
1- Brasília: O reencontro do seminarista foragido na Basílica
Metropolitana -
http://contosdaslavras.blogspot.com/2015/06/reencontro-do-seminarista-foragido.html
2- Copa de junho de
1958 – Sessenta anos da primeira Copa de Futebol
http://contosdaslavras.blogspot.com/2018/06/29-de-junho-de-1958-sessenta-anos-da.html
2- Os coleguinhas conterrâneos, Miguel e Pedro, também deixaram
o Seminário, dois ou três anos depois. Matricularam-se no curso de Agronomia da
UFLA e ali, em 1969, foram meus alunos. Surpreendente reencontro em sala de
aula, quando o menino já era professor daquela universidade. Lamentavelmente
ambos faleceram prematuramente, há pouco mais de seis anos, quando ainda
estavam em pleno exercício da profissão.
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