segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Meu sonho de Ícaro


O cantor e compositor Biafra expressou muito bem o sentimento de voar que povoa a mente humana. Voar é um sonho que cultivamos desde criança!

O menino que habitava o campo mudou para a cidade, passando a morar próximo ao aeroporto. Desde então passou a admirar os grandes aviões da época, os DC-3 das empresas aéreas Nacional e Real Aerovias, que pousavam na cidade de Lavras todas as manhãs com destino ao Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Era mesmo fascinante ver e sentir aquelas enormes aeronaves passando a pouco mais de 200 metros de altura e a menos de dois km da cabeceira do campo de aviação, rugindo seus motores e zunindo as hélices. O menino parava o futebol ou qualquer outra brincadeira e ficava extasiado, de queixo caído a contemplar os pousos daqueles enormes pássaros prateados. Em dias de neblina matinal o prazer da contemplação era maior, pois os aviões eram obrigados a sobrevoar (ciscar) as imediações do aeroporto por muito tempo até que a cerração se dissipasse. Como podem voar? Que tamanho teria ele? E o piloto? Quantas pessoas caberiam lá dentro? Como seria voar nele? Eram perguntas que aguçavam a imaginação do menino sonhador, tal qual o mitológico Ícaro.

            Contemplar as aves de rapina que habitavam os altos da Serra da Bocaina e de lá vinham planando nas correntes ascendentes dos ventos sudeste e depois em mergulhos rodopiantes e certeiros sobre as presas incautas, era também outra forma de apreciar e invejar os voos nas alturas. Aliás, o sonho das alturas foi anterior aos aviões, pois o menino contemplava, desde tenra infância, as montanhas que circundam sua casa na fazenda. Pela janela da cozinha, especialmente durante o café da manhã, ao lado do fogão à lenha, ficava a imaginar, desejando uma escalada àquela enorme montanha que se antepunha, ali bem perto. Queria satisfazer sua curiosidade e fértil imaginação, buscando respostas para: que teria lá, do outro lado? Que se poderia ver lá de cima? A vista alcançaria muito longe? Haveria um rio? Uma cidade ou somente matas cheias de bichos? Tudo intrigava o menino e todos os dias ao ver as aves de rapina descerem em voos, planando suavemente, imaginava que ele também pudesse fazer o mesmo se conseguisse atingir o topo daquela enorme montanha rochosa e com algumas árvores, isoladas, majestosas que se despontavam contra o céu azul. A montanha era um desafio, uma cortina para o horizonte do garoto inquieto, ansioso e desejoso de “ver o outro lado” do seu mundo e arriscar um voo com as asas de sua imaginação como no sonho de Ícaro.

Mas a vontade e o desejo incontido de voar permaneceram guardados no seu imaginário por muito tempo, numa longa espera. Somente muito mais tarde experimentou o seu primeiro voo, e para sua satisfação, num belo e prateado DC-3 da Varig, igualzinho àqueles que tanto cobiçara quando criança. Quanta emoção para o jovem recém-formado engenheiro, decolando da cidade de Montes Claros, onde fora a trabalho, para Belo Horizonte, sua base e residência. Uma hora de pleno êxtase a observar o interior da aeronave, as aeromoças bonitas, bem maquiadas e com uniformes impecáveis. Chamava a atenção o rugido ensurdecedor dos motores na decolagem, velho conhecido desde a infância e então, pela primeira vez, a sensação de flutuar, a ascensão, a paisagem que se tornava cada vez menor em seus detalhes e ao mesmo tempo gigantesca na distancia alcançada pela vista. O fascínio da navegação ao identificar rios, montanhas e cidades conhecidas, agora vistos do alto em voo de cruzeiro, a aproximação do aeroporto da Pampulha em Belo Horizonte e o pouso suave, perfeito, para completar aquela experiência tão sonhada e cultivada na infância foram realmente marcantes.

            Logo em seguida o jovem engenheiro, professor e executivo universitário e gestor público da área da educação superior, passou a realizar trabalhos e missões em todo o território nacional e boa parte do mundo, América do Norte, Europa, América Central e do Sul. E tome aviões Douglas - DC 3, Convair, Electra, Viscount, Avro, Focker 27 Focker 50, Samurai, Navajo, Cessna King Air, Cessna 172, Cv 580 Allegheny/USA,  Sikorsky Helicopter S 69,  , Caravelle, BAC- One Eleven, Focker 100, DC-8,  DC-9, DC-10, C-95 FAB- EMB-20 Bandeirante, FAB- EMB 120- Brasília, ERJ 145 e 170-Jet Class, Boeings 707, 727, 737, 757, 767, 747-Jumbo de 400 passageiros ( o must dos top line), Tristar/British Airways, Airbus A-300, A-319, A-320, A-321,  FAB – Jet BAC- HS 111, Lear Jet, ATR-40, LET–410, Bombadier, Fairchild, Piper Paulistinha - PA-18 Piper Cherokee, Beechcraft-Baron, Aeroboero e tantos outros em viagens cruzando continentes e oceanos, ou apenas fazendo piruetas nos céus de Lavras, São Carlos ou Brasília. E hoje... são quase de 2.500 horas de voos ... o bastante para satisfazer os sonhos do menino fascinado pelos pássaros de prata que passavam sobre sua casa pousando no campo de aviação logo adiante.
           
Freud tem razão... os sonhos da infância, quando realizados mais tarde, têm um significado especial para a alma. A compulsão de realizar os sonhos acalentados todos os dias da infância não teve limites. Além dos voos comerciais e fretados, o esporte de aeromodelismo foi praticado em pistas de Lavras, no campo de futebol do Colégio Aparecida, em frente ao Tiro de Guerra e em Brasília, no parque da cidade e no centro esportivo ao lado da torre de TV e na pista do final da Asa Sul. Visitas foram realizadas ao Museu Air and Space em Washington, com fotos da cápsula do primeiro astronauta americano e ainda voos panorâmicos sobre a baía do rio Hudson, em Nova York e Nova Jersey, a bordo de enorme helicóptero Sikorsky S 69, de 20 passageiros. A fábrica de modernos jatos da EMBRAER, em São José dos Campos também mereceu visita, como também a Base Aérea de Anápolis com seus Super Mirage III, com direito à demonstração de manobras reais e fotos com o piloto herói que interceptou um Ilyushin cubano, intruso nos céus de nosso país em 1982, quando em voo clandestino para apoio ao governo argentino contra os britânicos na guerra das Malvinas. Nessa base aérea o jovem sonhador pôde pilotar o super Mirage III  no simulador com pouso acidentado no Galeão (faltou habilidade ao curioso aprendiz de piloto de caça). Não faltou também a foto com o astronauta brasileiro Marcos Pontes, ao lado de um protótipo do 14 BIS.

 Essa vazão dos sonhos era intensa e por isso a frequência aos aeroclubes de Lavras, São Carlos e Brasília era ilimitada. Ali se realizavam manobras radicais de loopings e “perdas” (stall) de tirarem o fôlego. Também não faltou uma visita ao Museu de Santos Dumont, na Fazenda Cabangu, entre Juiz de Fora e Barbacena. A satisfação de ver, sentir e o prazer de tornar realidade um sonho tão intenso, cultivado a vida toda, proporciona-nos a sensação de uma felicidade infinita, mais profunda e gratificante, enlevando nossa alma que, literalmente, flutua nas nuvens. É nos voos em cruzeiro dos modernos jatos, a 10 ou 11.000 metros de altura que, em completo estado de meditação a contemplar o espaço, usufruindo do silêncio a bordo, que tenho tido as melhores inspirações para escrever algo sobre a beleza e o valor da vida.
           
Sou grato a Deus por ter me proporcionado pequenos prazeres gestados na infância e que servem para valorizar a vida, tornando-me mais feliz, em harmonia com tudo e todos. Sobre isso, disse um poeta que “ser feliz não é uma fatalidade do destino, mas uma conquista de quem sabe viajar para dentro de seu próprio ser. É também não ter medo de seus próprios sentimentos. É saber falar de si mesmo. Ser feliz é deixar agir a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós” (*). E literalmente é isso que faço quando estou nas nuvens a bordo de aviões, buscando inspiração no sonho daquela criança que fui, que não desgrudava os olhos dos céus, dos aviões que povoavam seus planos de um dia voar. Posso, portanto, dizer que entro em total estado de felicidade, até mesmo por estar ali, anonimamente entre tantos passageiros da mesma aeronave. Sim, ser feliz não é apenas ficar contente e orgulhoso pelos aplausos dos alunos ou das plateias lotadas de PhDs e top of minds em São Paulo, Paris ou Washington, no Departamento de Estado Norte-Americano, onde já ministrei palestras, mas é também encontrar a alegria no anonimato, sozinho, no silêncio reconfortante da alma. E na maioria das vezes isso acontece quando estou realizando o sonho do menino que queria voar como os pássaros e depois nos aviões.
           
 O cantor Biafra parece ter tido a mesma sensação quando compôs a letra de sua música “Sonho de Ícaro”, de quem plagiei o título desta crônica e que transcrevo a seguir:

Sonho de Ícaro (Música- performance de Biafra)

Voar, voar, subir, subir, ir por onde for.
Descer até o céu, cair ou mudar de cor
Anjos de gás, asas de ilusão
E um sonho audaz feito um balão
No ar no ar eu sou assim, brilho do farol
O que sai de mim vem do prazer
De querer sentir o que eu não posso ter
O que faz de mim ser o que sou
É gostar de ir por onde ninguém for.....

Do alto coração mais alto coração
Viver, viver e não fingir esconder no olhar

Faça o sinal cante uma canção
Sentimental em qualquer tom
Repetir o amor já satisfaz
Dentro do bombom há um licor a mais
Ir até que um dia chegue em fim
Em que o sol derreta a cera até o fim
Do alto coração mais alto coração
Viver viver e não fingir esconder no olhar


Brasília, 25/10/2009 a bordo do Gol 737-700, PR-GOU,  POA/BSB

Paulo das Lavras


_______________
(*) Diz a Bíblia que precisamos nos tornar crianças para ganhar o Céu. Hoje, na convivência maior com os netinhos, pude compreender melhor esse ensinamento bíblico. Elas, as crianças, são puras, inocentes e estão sempre a sorrir, estampando a felicidade e nos contagiando. Certamente é por isso que o poeta descreveu o que é “ser feliz”.



Santos Dumont, o sonho de voar (Ícaro) – Pintura de Yara Tupynambá


Janeiro 1951 – dois aviões da Nacional Transportes           
Aereos  no antigo aeroporto de Lavras.

Foto: arquivos de Eduardo Cicarelli - in Memórias de Lavras


1989 - Mirage III na Base Aérea de Anápolis em

Operação de carregamento de canhão e míssil 


Embarcando no Sikorsky S-69, no aerporto de Newark,NJ
New York Airways-N620PA, novembro de 1977

           


          Centenbário do 14 Bis, Maceió, outubro de 2006




Paulistinha  no Aeroclube de Lavras

                         Foto: arquivos de Renato Libeck


Voar...voar..., subir, subir, ir até o céu...., como no sonho de Ícaro da música







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