terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Odeio o frio... Um Rendez-vous em Paris

       

Nunca gostei do frio, até mesmo por questões de saúde, com ligeira deficiência respiratória. No colégio vivia brigando com a matéria de Física por pura implicância na definição aprendida com o saudoso professor Russaulière Mattos que, por meio do livro de L.P.M. Maia, da PUC-RJ, nos ensinou que a Física é subdividida em quatro campos do saber, a Mecânica, Estática, Cinemática e o Calor. Até aí tudo bem, mas dizer para os meninos que o Calor é o quente e o frio..., ah, isto já era demais, pois para eles o calor era calor e frio era frio, coisas opostas. Mas, falemos um pouco do frio, daqueles abaixo de zero grau em países do hemisfério norte e seus desconfortos, sobretudo para quem vive em clima tropical com sol 365 dias/ano. Pesquisas da Universidade do Alabama, nos EUA confirmaram que os moradores de cidades com pouca exposição de luz solar são mais propensos a desenvolver distúrbios de humor. Isto porque também já está comprovado que a incidência de luz e calor solar estimula a produção de serotonina, o hormônio neurotransmissor que controla o apetite, dá energia e desencadeia o bom humor e o bem estar mental. Assim, fica fácil deduzir por que, quando o dia está nublado e fechado por muito tempo, o chamamos de aziago, ou seja, tenebroso, infeliz.  Ninguém que vive em clima tropical, luminoso e radiante, gosta de um dia nublado, feio, para se dizer o mínimo. Incomoda muito e se perdurar, certamente levará à depressão, ao que os especialistas chamam de transtorno afetivo sazonal. Assim, o tempo frio, nublado ou de longos períodos de chuva, deixa a maioria das pessoas mais introspectivas, tristes ou deprimidas. Nos meses frios há maior tendência em se adoecer, pois nosso sistema imunológico fica enfraquecido. Acresça-se a isto, o fato de que no inverno as pessoas passam mais tempo em locais fechados, facilitando a proliferação de micróbios.  Já o calor e o sol deixam as pessoas mais eufóricas, voltadas às relações interpessoais e melhor ainda, pesquisas da Universidade do Michigan revelaram que sair ao ar livre, em um dia agradável de primavera ou verão, pode estar ligado a um aumento no pensamento criativo. Viva, pois, o verão nas praias brasileiras, onde todos estão alegres e receptivos e segundo a pesquisa americana, mais “criativos”, ainda que seja para a paquera, diriam alguns. De minha parte, não foi a toa, portanto, que passei por momentos depressivos, em alguns finais de semana, encerrado em hotéis de cidades de clima extremamente frio, como em Michigan, nos EUA e Paris, na França, onde trabalhei em períodos alternados por alguns anos. Passar o dia todo encerrado num escritório e à noite em quarto de hotel, com portas e janelas hermeticamente fechadas, com calefação, ressecando a pele e as mucosas, não é nada agradável.

  Pior mesmo era olhar pela janela e ver aquele cenário gelado, de frio cortante, às vezes com neve, árvores secas em hibernação, pessoas nas ruas, pouquíssimas e totalmente agasalhadas com pesadas vestimentas que só deixavam os olhos de fora. Definitivamente, aquele não era um cenário convidativo à alegria e ao contato humano para conversas amistosas, descontraídas, como se faz por aqui o ano inteiro. E eu olhava pela janela lacrada aquele cenário desolador e me lembrava do professor de física dos tempos de colégio “calor pode ser frio ou quente...” Ah..., que piada, frio é frio e calor é calor e eu prefiro chamar de calor o nosso clima brasileiro, ensolarado e não essa paisagem spleen, como reclamou JK em seu exílio na mesma cidade de Paris, onde só saía ocasionalmente, agasalhado até as orelhas e com chapéu de feltro.

 Odeio o frio, repetia o menino ali diante da janela lacrada do hotel, pois a ansiedade real é quase um estado de depressão e frequentemente atacava em viagens longas e demoradas, geralmente em locais muito distantes e desconhecidos, principalmente em outros países. E esses estados de ansiedade, beirando a depressão, aconteceram duas vezes nos Estados Unidos e outra na França. Neste país, numa manhã fria, nublada, confinado em um quarto de hotel em Paris, sozinho, a mais de 10.000 km de distância da família e amigos, sem ânimo nem mesmo para sair para o café ou almoçar, atacou o pânico. Uma ansiedade sem igual com sentimentos de medo e de solidão em ambiente desconhecido e imaginariamente hostil, até mesmo pela paisagem urbana, da mais que milenar Cidade Luz, assim chamada (que ironia..., embora essa alusão se referisse à vida noturna parisiense), com seus prédios antigos, encardidos em profundo contraste com a luminosa, espaçosa e verdejante capital de nosso país, onde morava o menino.  Conheci assim, ainda que momentaneamente e pela primeira vez a depressão, ali, na ironicamente chamada de Cidade Luz, a olhar pela janela aquele cenário sombrio, embaçado, de casario e prédios. Deve ter sido por isso que JK em seu exílio, de 1964 a 67, ali em Paris, assim escreveu:

 “Não há primavera nesta terra. As árvores estão verdes e as flores coloridas, mas o sol, que é propriedade comum dos homens, se esconde sempre atrás de nuvens carrancudas e hostis. Isso reflete na alma da gente e só convida a pensamentos que trazem o tom das nuvens, cor de spleen”.

  Naquela distante manhã de domingo bateu o desespero no menino das Lavras, aos 40 anos, quando em pânico, relembrou as palavras de JK e se pôs a perguntar onde estariam as palmeiras em que cantam os sabiás, as aves que gorjeiam nas copas das exuberantes árvores? Ah... JK e o poeta Gonçalves Dias foram sábios, vividos, e com amor incontido à Pátria, aos amigos, à família. A angústia, a dor da saudade dos entes queridos, verdadeiro banzo, provocaram lágrimas num pranto incontido no menino que suplicou, implorando a Deus para que aquele pesadelo ao vivo passasse logo e que a paz para o espírito condoído voltasse à normalidade.

Ah..., mas dessa vez, em sua visita à Cidade Luz, o menino não esperou que o céu spleen lhe provocasse outro piripaque saudoso como aquele de quase trinta anos atrás.  Agora, na fria tarde de domingo, vestiu um pesado sobretudo, pulôver, cachecol e luvas, um look parfait..., comme il fault, tomou o metrô no centro da cidade e foi visitar, de surpresa, um amigo e ex-colega de trabalho que, como doutorando na Sorbonne, residia na Maison du Brésil, reduto estudantil dos brasileiros.  Ao chegar, já no escuro da noite do inverno europeu, notei à saída do metrô, já na rua, um grupo de pessoas conversando em francês. Diminui o passo, apurei os ouvidos, pois pretendia me informar sobre o local exato da Maison du Brésil. Mesmo estando todos encapotados, com luvas, cachecois enrolados em volta do pescoço e alguns até cobrindo o nariz, pude perceber e reconhecer pela voz e perfil do amigo que iria visitar. Decidi passar-lhe um trote, pois o mesmo nem imaginava que eu estivesse naquela cidade e muito menos ali para uma visita a ele e sua esposa. “Bonjour monsieur, pourriez vouz, s´íl vouz plaît, m´indiquer où est la Maison du Brésil?" . Com o rosto parcialmente encoberto e ainda no escuro da noite, com rua mal iluminada, não fui identificado pelo interlocutor, o próprio amigo a ser visitado. Educadamente indicou-me o local solicitado, apontando-o logo ali, a menos de 100 metros. Perguntei-lhe, ainda em francês, se morava lá e diante da resposta positiva, emendei a pergunta final: Conaissez-vous a M. Capdeville? Guy Capdeville, citoyen bresilienne, étudiant de doctoract a Sorbonne? Arrancou o cachecol que cobria parte de seu rosto, esboçou um largo sorriso de surpresa e retrucou: ooh..., moi même! Je suis Capdeville. Também arranquei o cachecol naquele frio cortante, soltei uma sonora gargalhada, que já custava segurar e exclamei: et moi, monsieur, je suis votre ami..., carregando a pronúncia do francês que tem mania de fechar o final dos nomes com acento circunflexo, sempre chamando a mim de “Paulô Robertô ou então Monsieur Da Silváhhh ”. Abraçamo-nos efusivamente, pedimos licença aos demais e caminhamos para seu apartamento, onde se encontrava sua esposa. Naquela noite o vinho trazido pelo visitante foi mais saboroso, aquecendo nossa alma ao lado do casal amigo que havia tantos anos não nos encontrávamos. Afinal o rigoroso inverno com seu desconfortável e detestável frio serviu de cenário para esse episódio que nos deu muita alegria, aos brasileiros longe de casa, falando das coisas boas da terra e sua gente. Ninguém duvide, brasileiros saudosos quando encontram um patrício em terras estrangeiras logo se tornam chegados, mesmo sendo desconhecidos e o assunto só é mesmo a pátria-mãe. Santo remédio para o banzo e melhor ainda quando acontecia numa visita para almoço, a anfitriã abria sua despensa, ia para a cozinha e na companhia de todos fazia uma deliciosa feijoada. Isto era mais frequente nos EUA, nos estados sulinos, Texas, Arizona e outros, onde os brasileiros ali residentes – estudantes de doutorado - sempre adquiriam o feijão preto de comerciantes mexicanos ali radicados.

            Esse foi o meu “rendez-vous”, planejado para acontecer em Paris, na Maison du Brésil. Certamente que os amigos brasileiros, contemporâneos, ao lerem o título desta crônica imaginaram maliciosamente outro lugar, nada recomendável..., o tal “rendez vous” dos anos 60, como eram chamados os cabarés, lá em Minas. Assim, eram conhecidas como “rendez-vous” a casa da Zezé, em BH ou o Capixaba em Lavras. Não erraram de todo, os maldosos amigos, pois rendez-vous quer dizer simplesmente isso: encontro. Não foi um “encontro” como aqueles dos anos 60, mas uma visita social, uma reunião de amigos na França, berço daquela expressão que os brasileiros deram outra conotação. Mas, longe daquela conotação mineira, o rendez-vous de Paris, sob frio intenso, que odeio, por conta de deficiência respiratória, foi divertido, perfeito para matar a saudade e com agradável conversa, acompanhada de um bom bourgogne para aquecer o frio, o frio gelado, definição que usava para contrariar o saudoso prof. Russaulière Mattos que, em sua definição, chamava tudo de “Calor”, fosse quente ou frio... Ademais, a Maison du Brésil , além de abrigar inúmeros estudantes, é um centro de difusão da cultura brasileira na França. Não deixa, portanto, de ser um local de encontro muito aprazível, e interessante até mesmo para se conhecer a obra arquitetônica de Le Corbusier e Lúcio Costa, encravada na Cité Internationale Universitaire de Paris. Vale a pena! E nem percebi que estava frio naquela noite.

 

Brasília, 30 de maio de 2018

Paulo das Lavras


Esse não era o local do meu rendez-vous. Aqui era, sim, um local de rendez-vous, mas, exclusivo de Napoleão Bonaparte. Era o Castelo de sua amante Josephine, nas proximidades do bairro de Rueil- Malmaison, onde havia me hospedado. Frio cortante de zero grau, com árvores desfolhadas. Uma belíssima decoração interna do palácio, que tinha os degraus das escadarias muito baixos, por encomenda de Napoleão, por causa da pequena estatura de sua amada. Aliás, ele próprio também era bem baixinho


 
A visita, para o rendez-vous na Maison du Brésil, foi precedida de uma caminhada pela Champs Élysées, sob intenso frio de cortar o fôlego.


 
Permiti-me uma paradinha no Café de Flore, ao lado de uma livraria  onde escolhi um livro para o amigo de longa data... Mesmo na calçada externa, na rua e ainda que com frio de zero grau, os aquecedores instalados no alto da parede (com brilho amarelado), mantinham o ambiente aquecido (um bálsamo para quem não gosta do frio)


 
famoso rendez-vous em Paris..., o chique e badalado pelos escritores, Cafe de Flore


Além do livro, também um vinho para celebrar o encontro com o amigo


 
O saudoso amigo de longa data, Guy Capdeville, professor da UFViçosa e colega  no Ministério da Educação, em Brasília. Cursava doutorado na Sorbonne e depois foi reitor da Universidade Católica de Brasília.  Deixou-nos prematuramente. Saudades desse grande intelectual  que tanto trabalhou pela educação em nosso país. 
Foto: arquivos da família Capdeville


 
Maison du Brésil-Paris, casa do estudante brasileiro. O projeto leva assinatura de dois grandes arquitetos, Le Corbusier (francês) e o brasileiro Lucio Costa, que também projetou a nossa capital, Brasília. Sim, aqui foi o local do meu “rendez-vous”, em meio a centenas de estudantes brasileiros nas universidades francesas. Um ótimo local para se falar em português e relembrar a pátria amada e espantar o banzo mais frequente em tempos
 de confinamento sazonal do rigoroso inverno europeu. 
Foto: Maison du Brésil













 

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