sábado, 28 de setembro de 2019

Honras militares e a Igreja do Rosário em Lavras


Um cronista sempre observa detalhes do dia a dia em busca de algo que possa lhe inspirar um conto, uma história interessante que mereça ser compartilhada com seus amigos. Não é diferente com o Menino das Lavras. Há dois dias uma amiga postou nas redes sociais a foto de uma praça em ângulo de visada nunca antes mostrado por nenhum fotógrafo de minha cidade natal. A praça, além de mostrar o espaço que leva o nome de um parente, João Oscar de Pádua, mostra a lateral da imponente Igreja do Rosário, a primeira da cidade, inaugurada em 1754, há 265 anos. Impressionou-me aquele belo cenário, também emoldurado pelas quase centenárias palmeiras imperiais que circundam o Colégio Carlota Kemper, mais ao fundo. Amanheci dia seguinte, com um sonho diferente dos usuais, uma arquibancada um pouco perigosa, na outra lateral daquela antiga igreja, junto ao não menos belo, o Sobrado do Capitão Evaristo Alves, avô do nosso inesquecível e admirado filósofo, escritor e poeta Rubem Alves. Despertado, não consegui entender o contexto. Somente hoje, ainda em estado hipnagógico, acordei com o barulhão de um helicóptero militar em voo rasante e veloz a cem metros de minha janela. Foi então que compreendi o sonho da manhã de dois dias antes. A foto postada pela amiga nas redes sociais havia disparado o gatilho do subconsciente que, em sonhos liberou as imagens da infância e da adolescência gravadas para sempre na memória cintilante, como definem os cientistas da neurologia. Pois bem, a arquibancada perigosa existiu. Foi um palanque ali armado e que despencou com as autoridades, fato presenciado pelo menino. O avião militar de hoje, com seu brusco e inesperado barulhão de duas turbinas a jato fez me lembrar dos perigos que corri nas mesmas arquibancadas da Igreja do Rosário e outra na Esplanada dos Ministérios, aqui em Brasília.

Nunca fui militar, nem tive parentes ascendentes nessa carreira profissional. Mas, desde menino convivi com militares. Homens probos, pais de família exemplares, caráter e patriotismo a toda prova. Foram assim, os sargentos Alcino, Vila Boas, Bahia e Francisco de Assis, italiano de olhos azuis e maestro da banda militar, além dos tenentes Arruda e Agnelo. Todos vizinhos moradores da mesma rua. Saíam cedo de suas casas, impecavelmente uniformizados, portando pastas recheadas de documentos e só voltavam ao final da tarde. Sempre nos cumprimentavam com carinho e muitas das crianças se colocavam em posição de sentido e prestavam-lhes continência, naquele gesto de cumprimento próprio dos militares. Seus filhos eram os nossos amiguinhos de jogar finca, peladas de futebol no campinho da Estação Costa Pinto, cavalgadas, caçadas e natação no córrego da imensa chácara onde morávamos. Amizades que se consolidaram e ainda hoje nos unem. Gostávamos, também, de ouvir à distância, todas as manhãs, o toque do corneteiro que anunciava a chegada do comandante geral à sede do 8º Batalhão de Infantaria, a pouco mais de um quilômetro. Também empolgava os meninos o rufar dos tambores e acordes da banda de musica que desfilava pelo quartel ou mesmo nas ruas da cidade, em preparação para os desfiles de 7 de Setembro. Não raras vezes acorríamos à rua e muitas crianças saíam marchando atrás de pelotão. Éramos tratados com carinho pelo militares e à chegada do portão do quartel, não raras vezes convidados a adentrar ou ali mesmo, no portão e às vezes, recebíamos um mimo, geralmente balinhas, trazidas do armazém de subsistência que vendia alimentos a preço de custo para as famílias da tropa militar.

Nessa sequência das doces reminiscências da infância, o desfile de 7 de Setembro era o ponto máximo. Todas as escolas do ensino fundamental e do segundo grau desfilavam diante da tribuna de honra, na praça central da cidade. Mas o ponto alto era o desfile militar, o Tiro de Guerra 0264 e a Policia Militar. Não havia criança que não se postasse ali no cordão de isolamento, bem em frente ao desfile e ao passar o ultimo soldado, alguns corriam a desfilar logo atrás. Assim o menino cresceu em meio a um ambiente respeitoso e de admiração aos militares. Cultuou esse costume levando os próprios filhos aos desfiles militares do dia da pátria. E parece que o espírito patriótico influenciou, também, uma das filhas que se integrou às Forças Armadas, na carreira temporária da primeira turma de oficiais femininas.

  Aqui, na capital da república, os desfiles militares eram mais constantes, pois, acostumada a receber dignitários estrangeiros, sempre oferecia recepções com honras militares, pompa e circunstância, em frente ao Palácio do Planalto. Salva de 21 tiros de canhão, subida da rampa palaciana, Dragões da Independência em saudação com suas lanças, em meio à subida do Presidente da República acompanhado de outro Chefe de Estado estrangeiro. Belíssimas e memoráveis cerimônias que empolgam não somente as crianças, mas também a todo cidadão, orgulhoso de sua Pátria.

As solenidades de troca da Bandeira Nacional, na Praça dos Três Poderes, acontecem a cada primeiro domingo do mês. A solenidade é revezada pelas três Forças, Exército, Marinha e Aeronáutica. É um dos eventos cívico-militares mais bonitos. Começa pelo ato chamado de incorporação da Bandeira, onde um batalhão homenageia a bandeira, seguindo todo um ritual, iniciando-se pela execução da Canção dos Expedicionários, seguida pelo Hino da Bandeira, enquanto os soldados em trajes de gala entregam a bandeira nacional a outro oficial que a transporta solenemente. Linda cerimônia, que às vezes conta com a presença do Presidente da República.

 No campo cultural os militares oferecem verdadeiros espetáculos ao público em geral, quase sempre na semana dedicada ao soldado, no mês de agosto ou mesmo na Semana da Pátria. Descobri isso de uma forma um tanto inusitada, pois quase caí da arquibancada, na Esplanada dos Ministérios, quando, à noite, assistia a um concerto da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional. Executava-se a ópera “Abertura de1812” de Tchaikovsky quando, totalmente inebriado pelos acordes da belíssima Marselhesa, hino da França, e o repicar dos sinos de Moscou que cantavam a vitória dos russos sobre as tropas de Napoleão, eis que pipoca um estrondo ensurdecedor por debaixo das arquibancadas. Eram os canhões do Regimento de Cavalaria de Guarda que, em sintonia com a ópera, disparavam os canhões, verdadeiros, que compunham a sinfonia. Se estava flutuando com os embalos da sinfonia de sinos da vitória, literalmente voei com o potente estrondo do primeiro tiro de canhão a menos de 30 metros, atrás das arquibancadas. Nunca tinha assistido a uma performance com tiros ao vivo. Surpresa mais que emocionante, ali a imaginar as tropas napoleônicas abatidas pelo inverno siberiano e os sinos de todas as catedrais moscovitas a repicar incessantemente. Tempos depois, tive o privilégio de tocar com as mãos, num museu na França, aqueles mesmos canhões recuperados nas neves da Sibéria.

Nosso subconsciente não falha, registra tudo e os fatos mais marcantes ficam para sempre na chamada memória cintilante. Sob qualquer estímulo externo as imagens brotam, ainda que em sonhos oníricos e à cores para nos deleitar a alma saudosa, bem assim:
"Eu carrego comigo uma caixa mágica onde eu guardo meus tesouros mais bonitos. Tudo aquilo que eu aprendi com a vida, tudo aquilo que eu ganhei com o tempo e que vento nenhum leva. Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha. O pouco é muito para mim. O simples é tudo que cabe nos meus dias. Eu vivo de muitas saudades. E quem se arrebenta de tanto existir, vive para esbanjar sorrisos e flashes de eternidade". Foi assim que se expressou o pensador Caio Fernando de Abreu.

 Pura verdade! Guardo também a infância toda tingida de giz. Tinha jeito de arco-íris a minha, nos jardins da cidade. Militares? Igrejas? Ah..., só tenho doces recordações deles e da infância colorida na Terra dos Ipês e das Escolas. Obrigado, Lavras! Obrigado a seus filhos que, mesmo distantes por mais de quatro décadas, ainda permanecem vivos a ponto de me despertarem, em sucessivas manhãs, com sonhos coloridos de doces reminiscências.


Brasília, 28 de setembro de 2019

Paulo das Lavras





Praça João Oscar de Pádua – Lavras MG, em reforma pela SELT. 
Igreja do Rosário, tombada pelo Patrimônio Histórico de MG, inaugurada em 1754. 
Em frente, o Jardim e ao fundo, as quase centenárias palmeiras imperiais que circundam 
o antigo Colégio Carlota Kemper, outro patrimônio da cidade
Foto: Ana Pádua- 2019


Sobrado do Capitão Evaristo Alves, imponência, ao lado da Igreja do Rosário, à direita.
Entre os dois prédios armava-se o palanque politico que um dia desabou.
Foto: arquivos de Renato Libeck


Fachada a da Igreja do Rosário- Lavras 2015
Foto do autor


Com o sobrinho, um capitão-Mirim da PM. Desfile de 7 de Setembro-Lavras.
Revivendo o passado, marchando atrás dos militares em desfiles. 
Foto do autor 2012


Salva de 21 tiros, saudando a chegada de Chefes de Estados Estrangeiros
Foto: Ascom- Presidência da República


Troar assustador dos canhões – Solenidade no QG do Exército- Brasilia
Foto - QGEx


Os canhões de Napoleão, Praça des Invalides- Paris. Gelados, a menos
de zero grau, como a relembrar a derrota no inverno russo de 1812. Não
há como não imaginar e “ouvir”, ali mesmo, a célebre ópera de 1812,
de Tchaikovsky, com a marcha da Marselhesa e
depois os acordes das marchas russas comemorando a derrota do
Imperador Napoleão, diante do tal “general inverno”, mais rigoroso que
aquele gelado dia de dezembro de 2013 na capital francesa.
Paris, 13/12/2013. Foto do autor

Minha oficial do Exército, no QG/SMU-Brasília, com muito orgulho
Foto do autor - 2003



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