domingo, 3 de julho de 2016

Os Livros e o Prazer da Leitura


Quando criança participava de uma brincadeira muito instrutiva que consistia em sentar-se em roda, juntamente com as irmãs, abrir o livro didático de Português (colegial) e ler as poesias clássicas. Aberto o livro, aleatoriamente, passava-se a leitura da poesia e os demais acompanhavam atentamente, cada qual com seu livro. Ao primeiro gaguejar, ou errar a leitura, era imediatamente interrompido pelo alerta geral. Nesse caso o candidato leitor era eliminado. Vencia quem conseguisse permanecer depois de várias rodadas e com a eliminação do penúltimo a gaguejar ou errar a leitura de alguma palavra, especialmente as paroxítonas e proparoxítonas. Assim, adquiri o gosto pela leitura e ainda hoje tenho memorizados os principais versos de poesias de Guilherme de Almeida, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Olavo Bilac e outros muito difundidos naqueles anos 50/60 do século passado.
           
 Infelizmente, a oferta de livros naquela época era limitadíssima e os recursos para adquiri-los, praticamente, não existiam. Até mesmo os livros didáticos eram muito limitados. Na área de matemática existiam apenas dois autores que publicavam livros colegiais. Em física, apenas o professor L.P.Mesquita Maia, da PUC-RJ. Era o único disponível no colégio e assim em quase todas as áreas. Predominava o sistema de reutilização do livro por toda a família, tal era a dificuldade para aquisições.     

Encantado com a química de hidrocarbonetos alifáticos e aromáticos e da física da mecânica, dinâmica, ótica e eletricidade, tive que recorrer à pequena biblioteca do colégio e lá encontrei somente exemplares em inglês. Estudar física, em inglês, mesmo para os admiradores dessa ciência, convenhamos era um sacrifício para um jovem de 15 anos. Mas, um sacrifício que se revelou proveitoso, pois também adquiriu gosto pelo idioma e pode dominá-lo, algum tempo depois, a ponto de usá-lo em seu local de trabalho nos EUA.  Na faculdade o problema era o mesmo. Falta de livros editados em nosso país. Certa vez realizei, a pedido do professor e às duras penas, a tradução completa de um capítulo de livro de fitopatologia (doenças de plantas), de autoria de um pesquisador norte-americano. Hoje, nossas livrarias estão repletas de publicações, técnicas ou literárias, produzidas por autores nacionais além das traduções de obras estrangeiras. Que bom!

Quando entro numa boa livraria fico maravilhado com a quantidade e diversidade de obras disponíveis. Vou pegando um aqui, outro ali, lendo e degustando um pouco do conteúdo para avaliar se vale a pena comprar/ler ou não. Quase sempre seleciono mais do que posso levar, pois o tempo para leitura é bem aquém do desejável. Mas, Freud explica essa compulsão de adulto que nada mais é do que uma manifestação neurótica de regressão aos desejos da infância, quase sempre tolhidos pelos adultos. Minha esposa sempre pergunta: por que comprar tantos livros se você já tem mais de 100 (literalmente) não lidos ou cujas leituras não foram concluídas? E é verdade, em cada aeroporto que passo compro um novo livro, o companheiro de viagem ou de esperas intermináveis pelos voos atrasados.

Mas, a compra de um novo livro não é aleatória ou apressada. Ao contrário, sempre carrego no smartfone uma lista de títulos, porém, nunca os adquiro sem farejá-los, como dizia Rubem Alves: “Nenhum cachorro abocanha a comida. Primeiro, cheira. Faço o mesmo com livros”. Isto porque o prazer da leitura não é casual. É cultural, tem toda uma bagagem anterior que remonta à nossa infância, a curiosidade de aprender, aprender e aprender mais, sempre! Por isso, é preciso selecionar o livro. A leitura tem que ser prazerosa, tem que nos cativar. Se o livro nos cativa ele passa a ser nosso companheiro, aliado da nossa filosofia. Nesse caso podem e devem ser marcados, remarcados com marca-texto ou canetas vermelhas para destacar nossas anotações de concordância ou discordância do enunciado. Isto, de certa forma, contraria os ensinamentos que recebemos na escola, que não se deve escrever ou marcar um livro. Acrescento a esta norma: “Só se for com referência ao livro do alheio, pois, o meu é o companheiro, aliado, com marcas e destaques para as suas principais idéias”. Quando da sua releitura, passado algum tempo, o prazer é redobrado ao ver ali grifadas aquelas frases que um dia admiramos e que nos marcaram, às vezes com profundo significado para a alma.

Bem, mas esse é o prazer referente a uma nova descoberta por meio da leitura. É a novidade que aparece à nossa frente e nos apressamos em registrá-la em nossa mente para tirar proveito em situações futuras. É a lição que recebemos de nossos pais e da escola: leiam e aprendam muito para vencer na vida. É a cultura do saber que se impregnou em nós. Porém, há ainda outro prazer na leitura. É aquele que acontece com o passar dos anos e cresce cada vez mais quando nela encontramos a explicação para um fato ou causas de eventos acontecidos ou acontecidos no passado. Explico, como é bom, agora, por exemplo, ler sobre as imigrações de japoneses, italianos, poloneses, alemães, sírio-libaneses, judeus e norte-americanos dentre tantos estrangeiros que povoaram nosso imenso país. Sírio-libaneses dominavam o comércio em minha cidade natal. Ali, também os italianos trabalharam a lavoura e ainda se destacaram nas artes e indústria. Os norte-americanos que se instalaram inicialmente na região de Campinas (Americana) em 1869 e depois, em 1894, mudaram para a cidade de Lavras onde fundaram o Colégio Instituto Gammon, seguindo-se a Escola Superior de Agricultura de Lavras – ESAL, em 1908, que depois se transformou em Universidade Federal (UFLA). Da mesma forma sobre os imigrantes japoneses, vivenciei e observei a “garra” e o extremo amor pela terra que esses colonos do cinturão verde de São Paulo dedicam às suas plantações especializadas de hortifrutigranjeiros em pequenas propriedades. Em meu estágio acadêmico numa grande empresa de fertilizantes, pude conviver com aqueles abnegados imigrantes e recentemente ao se comemorar o centenário da imigração japonesa, a imprensa ressaltou a obstinação daquela laboriosa gente que tanto tem contribuído para o progresso da agricultura e o desenvolvimento de nosso país.

Assim, a leitura de qualquer matéria, seja um livro ou artigo na mídia sobre esses assuntos, torna-se duplamente prazerosa, pois além de se aprender mais, podemos confrontar situações vividas no passado e estabelecer o elo causal, compreendendo em maior profundidade os sonhos e as realizações daqueles imigrantes que há mais de 100 anos aqui estão e perfeitamente integrados à nossa sociedade.

Quer prazer maior do que se deparar com uma resenha de um livro em uma revista especializada e cujo autor foi seu colega de trabalho? Foi assim com “História das Agriculturas no Mundo – do Neolítico à Crise Contemporânea”, de Marcel Mazoyer, professor e pesquisador do Institut Agronomique Paris-Grignon e que foi colaborador no acordo de cooperação do MEC com o Ministério da Agricultura da França, cujo convênio de cooperação dirigimos por mais de 10 anos. Especialista em sistemas de cultivos agrícolas, o Prof. Mazoyer veio ao Brasil várias vezes e assessorou por muito tempo uma universidade do sul do Brasil na implantação de um curso de agronomia com ênfase na gestão do agronegócio. Na França, orientou muitos professores brasileiros em cursos de pós-graduação. Visitei seu laboratório de pesquisas em Grignon e prestou importante colaboração na reestruturação da formação agronômica em nosso país. Por isso, corri à editora e encomendei o livro recém lançado. Alguém duvida que essa leitura seja duplamente prazerosa?

É lógico que conhecendo e tendo vivenciado experiências relacionadas ao assunto que se lê o prazer da leitura e as reflexões que dela decorrem são infinitamente maiores. Sinceramente, não saberia dizer qual o maior prazer decorrente da leitura.  Seria ler algo sobre assunto de vivências passadas, ou que nunca soubera antes ou sequer imaginaria que existisse?  É por isso que afirmamos que além de cultivar o bom hábito adquirido em família e nos meios acadêmicos, com o passar dos anos aumenta-se o prazer e cresce o aprendizado. Isto porque a leitura nos permite compreender a mensagem, entende-la por meio da análise crítica e armazená-la em nossa mente, criando uma verdadeira biblioteca em nosso cérebro. Sempre que necessário fazemos a recuperação da informação, associando-a às necessidades e problemas do momento. Num estágio final desse processo leitura/assimilação/recuperação podemos então comunicar, transmitir aquilo que aprendemos e até produzir nossos próprios escritos.

O prazer da leitura é ilimitado. Há coisa melhor que olhar sua estante, ler os títulos na lombada, relembrar seu conteúdo e não resistir em pegá-lo novamente para uma releitura? E facilitada pelos grifos e marcações em amarelo luminosos do marca-texto? Esse é meu maior vício. De tanto “implicarem” com o amontoado de livros em meia dúzia de prateleiras em meu escritório doméstico, dei-me ao trabalho de conta-los, 326 livros, afora os de capa dura, brochuras luxuosas como os de plantas ornamentais que ficam sob a mesa de centro da sala de estar. Descartar algum? Nem pensar, foram lidos e relidos várias vezes, apenas uns vinte ainda estão aguardando a leitura. Todos eles contêm o saber gostoso, farejado antes, degustado com prazer. Aliás, Nietzsche falando sobre o filósofo Tales de Mileto, nos recorda que a palavra grega que designa o “sábio”, o saber, está etimologicamente ligada a “sapio”, eu saboreio, sapiens, o degustador, mais apurado.

 Sim, meu pequeno amontoado de livros foi degustado, digerido e armazenado na mente, pronto para ser rememorado, usado, sempre! Relê-los é tão prazeroso quanto receber novos exemplares embora o espaço não seja suficiente. Levá-los para a chácara, junta-los a outras centenas, embora o espaço seja amplo, não proporcionaria a mesma utilidade e prazer, à vista. Sérgio Buarque de Holanda foi bem original na arte de enganar a esposa que implicava com seus amontoados de livros. Tinha táticas e estratégias para chegar em casa com novos livros sem aborrecer a fiscal da ordem, da limpeza e da esmerada decoração: contava com a cumplicidade dos empregados que os passavam pela janela, pois a porta era sempre bem vigiada. Por aqui..., bem, por aqui muitos livros chegaram sob o paletó.

Segundo o cronista Gustavo Faleiros: falta de espaço será tua sina, ó nobre leitor!


Brasília, 2005/2016
                                      
                                                Paulo das Lavras   


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