quinta-feira, 9 de abril de 2015

Memórias do cárcere em Brasília



            Dias atrás tive a atenção despertada para uma nota de pé de jornal. Era um convite para lançamento de um livro de poemas escritos no cárcere. Memórias de cárcere? Sim, isso mesmo! Teria a ver com a obra incompleta de Graciliano Ramos, que descreve suas agruras quando prisioneiro por ter participado da Intentona Comunista de 1935? De fato faltava um capítulo final que supostamente o autor, Graciliano, não teria escrito. Haveria mais informações sobre o desfecho da deportação, para a Gestapo, de Olga Benário, esposa do ícone do comunismo no Brasil, Luiz Carlos Prestes, relatada na obra de Graciliano? Fiquei bastante interessado, mas, não era disso que tratava o livro anunciado. O autor era um político importante que ocupara a presidência da Câmara dos Deputados e fora condenado a alguns anos de reclusão. Acompanhei seu julgamento e de outros seus companheiros amplamente divulgado pela imprensa. Porém, meu interesse nesse novo livro logo se avivou por conta de que havia observado antes, durante o processo judicial, um comportamento totalmente distinto e positivo desse novo autor em relação a seus companheiros também condenados. Estes, seus correligionários, demonstraram enorme arrogância, soberba, a ponto de cerrar os punhos levantando-os acima da cabeça, como escarnio à sociedade e claro desafio à Justiça. Também me animou a vontade de conhecer sua obra por saber que poetas, cronistas e escritores, expõem sua alma. Não dá para enganar quando se produz bons poemas, crônicas e contos. Pensei na tristeza da solidão de um encarcerado e sua determinação em sobreviver, resgatar sua alma por meio da escrita sobre a sua própria experiência. Quem escreve algo para os outros, ou ainda que seja para si próprio, sempre deseja repassar uma mensagem de bem, de otimismo.

            Suspeitei que o livro de poemas pudesse ser um indicador para confirmar ou não as minhas impressões anteriores sobre o autor. Assim, agendei presença ao evento, marcado para o dia 7 de abril. Sete de abril? Data importante..., pois há uma rua comercial muito famosa no centro da cidade de São Paulo. Sim, a data tem história, pois foi nesse dia que Dom Pedro I abdicou do trono, naquele distante ano de 1831. Os historiadores dizem que foi a segunda independência do Brasil. O imperador deixou o país, seguindo para Portugal, a bordo de um navio britânico (sempre os britânicos..., os mesmos que trouxeram D. João VI escoltado em fuga de Napoleão. Chegou e logo abriu os portos às nações amigas, mas com monopólio comercial para os ingleses que já haviam levado todo o ouro das Minas Gerais...). Mas, voltando ao livro, o evento foi concorridíssimo. Mais de 400 pessoas compareceram para a noite de autógrafos. Ali estavam o ex-deputado Prof. Luizinho- PT/SP, o deputado Chico Vigilante- PT/DF, senador Paulo Rocha- PT/BA, ministros, diversos militantes com seus botons de estrela vermelha e dirigentes da Escola Nacional de Formação Política. Essa escola, da qual não sabia de sua existência, pertence ao Partido dos Trabalhadores e tem por objetivo formar seus líderes e militantes. Depois de longa conversa com um dos dirigentes, ali na fila de autógrafos, um tanto surpreso pude melhor compreender a dedicação de seus seguidores e o fiel cumprimento das diretrizes e pronunciamentos partidários, que são imediatamente repercutidos em todos os níveis e locais do país. Senti-me como um peixe fora d´água.

Enquanto aguardava o autógrafo folheei o livro que tem como título “Quatro & outras lembranças”. Pelo texto da orelha já dá para entender a profundidade de seu conteúdo. Fala dos momentos mais difíceis, dos dias em que a liberdade é lembrada justamente pela sua ausência na vida dos encarcerados. Numa leitura dinâmica identifiquei, de imediato, algumas frases/estrofes interessantes e que aqui reproduzo:

Aprendeu a ser só. Acostumou-se com o vazio. Seu olhar para a parede de sua cela...

Esqueceu a dimensão do sol, a largura das ruas e o carregar uma chave de porta. Esqueceu a palavra gente e o significado de amor....

...No começo ansiedade, angústia, apreensão. Um nó forte no peito. Virou olhar. De longe, de perto.

.....Discurso, grito, gemido. Declama um verso lindo. Da vida, o peito doído. Canta, insiste em orar.

...Vi sombras andando pelo quarto. Virei-me e dormi. Sonhar é melhor que viver...”.

            Dentre tantas frases que expressavam o pensamento da alma angustiada ali reclusa, aquela do esquecer o que seria o “carregar uma chave de porta” despertou-me profunda reflexão. Lembrei-me que portava no bolso justamente as chaves de casa e do carro e nunca, mas nunca mesmo, pensara antes na importância simbólica daqueles objetos: a liberdade de ir e vir e ter o seu próprio teto, seu refúgio no aconchego da família, cercado por todos e em especial pelos netinhos que representam a continuidade da vida.  Que angústia, que dor no peito, terrível para um encarcerado. Com certeza isso o fez refletir melhor sobre os valores da vida. É na solidão e mais ainda na privação que encontramos respostas que ninguém pode nos dar. É nelas que encontramos a nós mesmos. São espelhos que não escondem nossa alma.

Ainda na fila dos autógrafos decidi abordar o autor sobre o significado daquela frase de seu poema. Surpreso levantou-se da escrivaninha, ouviu atentamente minhas palavras e retribuiu. Embora com olhar ainda um pouco melancólico, mas sorrindo, pareceu-me, como previsto, haver se reconciliado consigo mesmo e sentindo prazer em estar novamente reintegrado à sociedade. Deixava à mostra seu coração carregado de humildade e amor que venceram o ódio, a revolta comum que toma conta de quem sofre a privação da liberdade, ou ainda dos arrogantes de punhos cerrados. Não lhe perguntei, não sei se por delicadeza ou por estar também emocionado, mas imaginei que certamente ele já carregava uma chave e que, ao contrário da situação anterior, ele não mais se esquecerá que a tem consigo. Mesmo que não seja uma chave física que abra portas, mas tem a chave da sabedoria de uma alma em paz que soube corrigir seus erros.

Recomendo a leitura desse livro recém-lançado, de autoria do ex-deputado e ex-presidente da Câmara, João Paulo Cunha. A leitura dessa marcante experiência, em forma de poema, nos induz a uma profunda reflexão.

Brasília, 9 de abril de 2015
 Paulo das Lavras

Uma dedicatória cheia de esperança e novos sonhos


                                                      Ouviu atentamente a leitura de uma estrofe de seu poema,
                                                      declamando o esquecimento da dimensão do sol, largura
                                                      das ruas e o carregar uma chave de porta...


                                    Alegrou-se e agradeceu com um sorriso ainda que tímido



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