quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Candú, o adotado superdotado

(originalmente publicada na Revista Seleções do Reades Digest, abr. 2012 pagina 137  -     6.531 visualizações neste blog, em 06/03/2021)


A campainha do apartamento tocou e ao abrir a porta nossa vizinha, que era diretora de um grande colégio, foi logo dizendo: “vocês têm chácara e sei que acabaram de comprar um filhote da raça Fila e agora lhes trouxe outro, de uma cadela vira-lata que vive em nosso colégio e deu à luz nove cachorrinhos. Estamos distribuindo os filhotes e esse é para vocês”. Olhei para aquele bichinho miúdo, branquelo, que mais parecia um rato de laboratório e pensei comigo: lá vem um vira-lata de rua. Não dá para  misturar com meu fila puro sangue, registrado. Mas, não tive tempo de recusar, pois logo chegaram as filhas e tomaram no colo aquela criaturazinha miúda, branquinha com pintas pretas e marrom escuro. Comparado com o belo e sedoso filhote de fila, que já estava no apartamento, logo se transformou no coitadinho, o queridinho da casa.  Foi batizado com o nome de Candú e se revelou, para minha surpresa, como o  mais inteligente e amoroso dentre os mais de doze cães que já viveram em nossa chácara. Ambos os filhotes ficaram no apartamento por uns 30 dias até completarem 2 meses, onde foram aleitados e bem alimentados. Receberam todos os cuidados veterinários próprios da idade e em seguida foram levados para a chácara, onde deveriam se tornar guardiões do nosso patrimônio.

Mestiço da raça pointer, de porte mediano (30kg quando adulto), Candú aprontava muitas peripécias na chácara. Disputava mais pedaços de carne com o enorme Fila Brasileiro de nome Apache e seu companheiro de infância, com o dobro de seu tamanho e peso. Esperto, terminava de comer o seu osso antes do outro e para tomar o pedaço da boca do grandalhão se valia de um estratagema inacreditavelmente inteligente para um cão. Invariavelmente sempre levava a melhor. Depois de cobiçar bastante o seu alvo, Candú colocava seu plano em ação que consistia em  simular que havia alguém no portão da chácara e para lá disparava rapidamente, latindo em defesa do território como era costume de todos eles. Apache, o cão Fila, dono de toda a força e ferocidade imbatíveis, largava seu osso após alguma hesitação e também partia no encalço do suposto invasor, tal era a convicção que lhe inspirava seu companheiro já correndo para o portão. Nesse instante entrava em ação a  segunda parte  do plano do Candú, que revelava extrema inteligência. Ele olhava para trás, "calculava" a distância já percorrida pelo Fila em direção ao portão e quando “a julgava suficiente” retornava ligeiro e  abocanhava o suculento osso cozido abandonado na varanda. Enquanto isso, o poderoso, mas pouco inteligente Apache seguia lépido, latindo muito até o portão, de onde e nada encontrando retornava à origem e ficava sem entender para onde teria ido o seu osso. A longa distância, Candú o saboreava e com um olho na presa e outro no inimigo, parecia mesmo rir da situação e nós os espectadores mais ainda.

Mas, o fato mais interessante protagonizado pelo nosso cãozinho adotado foi a ferrenha defesa da antiga Caravan onde costumava passear até o veterinário ou então farejar as guloseimas que chegavam todo final de semana. Era sempre o primeiro a pular para dentro do porta-malas. Portanto, o carro era seu, numa rotina que se repetiu semanalmente por mais de 10 anos. Mas, ele não assimilou muito bem a venda da Caravan que foi repassada ao irmão de um vizinho. Já se passavam uns dois meses quando o novo proprietário veio visitar o irmão. Estacionou o veículo no pátio defronte à nossa chácara e para sua surpresa, ao retornar não pode entrar no carro. Candú havia varado a cerca e estava deitado sob o estribo da porta do motorista, rosnado ferozmente, impedindo a entrada do "intruso". Certamente ele estava esperando seu dono e não aquele estranho. Foi necessário chamar o nosso caseiro para retirá-lo e permitir a entrada do novo dono. Quando soubemos do episódio, admiramos a sua fidelidade e pedimos desculpas ao vizinho, dizendo-lhe, com fina ironia, que o cão não tinha culpa, pois havíamos esquecido  de comunicar ao animalzinho que havíamos vendido  sua Caravan.

Embora muito dócil para com as pessoas da família, sua valentia como cão de guarda na defesa do patrimônio e das pessoas ao seu redor era notável. Por duas vezes ele se interpôs ferozmente contra o seu rival Apache que me atacara pelo simples fato de eu ter abraçado minha esposa que era considerada “sua mãe”, pois foi ela quem o alimentara com a mamadeira quando filhote. Que ironia, o belo puro sangue, adquirido e admirado me atacava e o vira-lata desprezado quando filhote se transformava no meu fiel amigo e  defensor.

Candú foi, além de sua excepcional inteligência, um cão alegre, amigo e fiel. Morreu no final de 2008, aos 16 anos de idade. Conseguiu sobreviver 4 anos após uma cirurgia contra um enorme câncer na perna direita e que exigiu transplantes de pele. Foi trazido para nosso apartamento após a cirurgia e ali permaneceu pelo resto de sua vida com todo conforto, incluindo colchonete, aquecimento, alimentação especial e muito carinho de toda a família. Mesmo com seu olhar triste, sem poder se locomover devido ao avanço da idade, nos deixou a lembrança de um cão alegre, inteligente e fiel. Alguns meses após sua morte, mais precisamente em junho de 2009, o pé de ipê roxo sob o qual jazem os seus restos, floresceu exuberantemente pela primeira vez após 10 anos do  plantio. Ao contemplar aquela beleza inesperada comentamos com a família que até a natureza estava homenageando com flores aquele que ali jaz, lembrando-nos de sua alegria, fidelidade e amor que nos dedicou em vida.

Brasília, agosto de 2009 

Paulo das Lavras


Candú logo após a cirurgia
 




Aos 15 anos, passeando na chácara onde viveu até os 12



Tomando sol da manhã

Candu, a esperteza e Apache, a força do guardião




E o ipê roxo se engalanou para nos lembrar da alegria e fidelidade do Candú




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