(originalmente publicada na Revista Seleções do Reades Digest, abr. 2012 pagina 137 - 6.531 visualizações neste blog, em 06/03/2021)
A campainha do apartamento tocou e ao
abrir a porta nossa vizinha, que era diretora de um grande colégio, foi logo
dizendo: “vocês têm chácara e sei que acabaram de comprar um filhote da raça
Fila e agora lhes trouxe outro, de uma cadela vira-lata que vive em nosso
colégio e deu à luz nove cachorrinhos. Estamos distribuindo os filhotes e esse
é para vocês”. Olhei para aquele bichinho miúdo, branquelo, que mais parecia um
rato de laboratório e pensei comigo: lá vem um vira-lata de rua. Não dá para
misturar com meu fila puro sangue, registrado. Mas, não tive tempo de recusar,
pois logo chegaram as filhas e tomaram no colo aquela criaturazinha miúda,
branquinha com pintas pretas e marrom escuro. Comparado com o belo e sedoso
filhote de fila, que já estava no apartamento, logo se transformou no
coitadinho, o queridinho da casa. Foi
batizado com o nome de Candú e se revelou, para minha surpresa, como o mais inteligente e amoroso dentre os mais de
doze cães que já viveram em nossa chácara. Ambos os filhotes ficaram no
apartamento por uns 30 dias até completarem 2 meses, onde foram aleitados e bem
alimentados. Receberam todos os cuidados veterinários próprios da idade e em
seguida foram levados para a chácara, onde deveriam se tornar guardiões do
nosso patrimônio.
Mestiço da raça pointer, de porte mediano
(30kg quando adulto), Candú aprontava muitas peripécias na chácara. Disputava
mais pedaços de carne com o enorme Fila Brasileiro de nome Apache e seu
companheiro de infância, com o dobro de seu tamanho e peso. Esperto, terminava
de comer o seu osso antes do outro e para tomar o pedaço da boca do grandalhão se
valia de um estratagema inacreditavelmente inteligente para um cão. Invariavelmente
sempre levava a melhor. Depois de cobiçar bastante o seu alvo, Candú colocava seu
plano em ação que consistia em simular que havia alguém no portão da
chácara e para lá disparava rapidamente, latindo em defesa do território como
era costume de todos eles. Apache, o cão Fila, dono de toda a força e
ferocidade imbatíveis, largava seu osso após alguma hesitação e também partia
no encalço do suposto invasor, tal era a convicção que lhe inspirava seu
companheiro já correndo para o portão. Nesse instante entrava em ação a
segunda parte do plano do Candú, que revelava extrema inteligência. Ele
olhava para trás, "calculava" a distância já percorrida pelo Fila
em direção ao portão e quando “a julgava suficiente” retornava ligeiro e
abocanhava o suculento osso cozido abandonado na varanda. Enquanto isso, o poderoso,
mas pouco inteligente Apache seguia lépido, latindo muito até o portão, de onde
e nada encontrando retornava à origem e ficava sem entender para onde teria ido
o seu osso. A longa distância, Candú o saboreava e com um olho na presa e outro
no inimigo, parecia mesmo rir da situação e nós os espectadores mais ainda.
Mas, o fato mais interessante protagonizado
pelo nosso cãozinho adotado foi a ferrenha defesa da antiga Caravan onde
costumava passear até o veterinário ou então farejar as guloseimas que chegavam
todo final de semana. Era sempre o primeiro a pular para dentro do porta-malas.
Portanto, o carro era seu, numa rotina que se repetiu semanalmente por mais de
10 anos. Mas, ele não assimilou muito bem a venda da Caravan que foi repassada
ao irmão de um vizinho. Já se passavam uns dois meses quando o
novo proprietário veio visitar o irmão. Estacionou o veículo no pátio
defronte à nossa chácara e para sua surpresa, ao retornar não pode entrar no
carro. Candú havia varado a cerca e estava deitado sob o estribo da porta do
motorista, rosnado ferozmente, impedindo a entrada do "intruso". Certamente
ele estava esperando seu dono e não aquele estranho. Foi necessário chamar o
nosso caseiro para retirá-lo e permitir a entrada do novo dono. Quando soubemos
do episódio, admiramos a sua fidelidade e pedimos desculpas ao vizinho,
dizendo-lhe, com fina ironia, que o cão não tinha culpa, pois havíamos esquecido
de comunicar ao animalzinho que havíamos vendido sua Caravan.
Embora muito dócil para com as pessoas da
família, sua valentia como cão de guarda na defesa do patrimônio e das pessoas
ao seu redor era notável. Por duas vezes ele se interpôs ferozmente contra o
seu rival Apache que me atacara pelo simples fato de eu ter abraçado minha
esposa que era considerada “sua mãe”, pois foi ela quem o alimentara com a
mamadeira quando filhote. Que ironia, o belo puro sangue, adquirido e admirado
me atacava e o vira-lata desprezado quando filhote se transformava no meu fiel amigo
e defensor.
Candú foi, além de sua excepcional inteligência,
um cão alegre, amigo e fiel. Morreu no final de 2008, aos 16 anos de idade. Conseguiu
sobreviver 4 anos após uma cirurgia contra um enorme câncer na perna direita e que
exigiu transplantes de pele. Foi trazido para nosso apartamento após a cirurgia
e ali permaneceu pelo resto de sua vida com todo conforto, incluindo
colchonete, aquecimento, alimentação especial e muito carinho de toda a
família. Mesmo com seu olhar triste, sem poder se locomover devido ao avanço da
idade, nos deixou a lembrança de um cão alegre, inteligente e fiel. Alguns
meses após sua morte, mais precisamente em junho de 2009, o pé de ipê roxo sob
o qual jazem os seus restos, floresceu exuberantemente pela primeira vez após 10
anos do plantio. Ao contemplar aquela beleza inesperada comentamos com a
família que até a natureza estava homenageando com flores aquele que ali jaz,
lembrando-nos de sua alegria, fidelidade e amor que nos dedicou em vida.
Brasília, agosto de 2009
Paulo das Lavras
Candú
logo após a cirurgia
Aos 15
anos, passeando na chácara onde viveu até os 12
Tomando sol da manhã
Candu, a esperteza e Apache, a força do guardião
E o
ipê roxo se engalanou para nos lembrar da alegria e fidelidade do Candú
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