domingo, 25 de fevereiro de 2024

Nossos primos

 

Morar distante da terra natal, e já por quase 50 anos, às vezes nos traz um sentimento de solidão. Parece que nos falta algo. Nossa mente está sempre voltando ao passado em busca de algo perdido e escondido nos escaninhos da alma. Repousando na rede da varanda da chácara, ouvindo e vendo os passarinhos cantarem, o canarinho da terra com sua cabeça cor de fogo, amarelo-ouro (assim os chamávamos na fazenda), o sabiá-laranjeira, e o bem-te-vi, joão-de barro, tiziu, rolinhas, maritacas, periquitos e tantos outros, incluindo tucanos e araras que povoam as matinhas ao redor, parece que a alma flutua e voa para bem longe. Em fração de segundos aterriza nos lugares onde passamos a infância rodeado pela natureza e os amiguinhos. Às vezes, nesses devaneios, daqui do Planalto Central, me pego ali no alto da chegada da fazenda onde nasci, no sul das Minas Gerais montanhosas e dali, numa contemplação de 360º, com vista livre para os quatro cantos do horizonte, “vejo a cidade de Lavras a apenas 16 km, a Serra da Bocaina, a rodovia Fernão Dias que nos leva a São Paulo e tantas outras cidades sul-mineiras. Ah..., então exclamo para mim mesmo: “Não me falta nada, nem ninguém!” Está tudo aqui, ainda que apenas nos sonhos, devaneios da alma que se compraz com a alegria, o amor , a felicidade de tanto tempo atrás. “Vejo e sinto os lugares, os sons e os perfumes” (especialistas dizem que as memórias mais marcantes e inesquecíveis são os cheiros, os odores e os sons afetivos que ficaram gravados em nossa alma). E assim, nesse devaneio “vejo” a fazenda, os pássaros, as belezas das flores cultivadas nos jardins que rodeavam a casa. Tudo ali está, até mesmo o desejo do menino de escalar a montanha que se descortinava à janela da cozinha, logo à primeira hora do café da manhã. Ainda hoje recordo as perguntas, a curiosidade do menino de cinco anos: “Se eu subir naquele alto, o que verei do outro lado? Um rio, mata fechada, bichos ferozes ou uma cidade?”. A preocupação com os bichos ferozes (nem existiam) era porque os pais viviam a colocar medo nas crianças arteiras, que se distanciavam das casas em perigosas aventuras.  Era o chamado bicho-papão ou o homem-doido que roubava crianças e as colocavam num saco de aniagem, às costas. Coincidentemente todos os andarilhos carregavam um saco desses às costas, sempre cheio de bugigangas... Tinha que ser verdade o que as mães diziam e com isto nem nos aventurámos a ir mais longe.

Não falta nada, nem ninguém? Ah... um leve torpor da alma, seguido do despertar do doce sonho e vêm à mente a saudade dos irmãos, da família e dos primos que frequentavam a fazenda nas férias ou mesmo em casa na cidade. Eram nossos companheiros de caçadas, natação nos riachos de grandes volumes de água ou na lagoa da Jacuba  à margem do Rio Grande, na outra fazenda onde ficavam o gado de recria e as vacas em período de prenhez. Então a figura dos primos vem à tona com maior força, pois eles formavam aquela rede de proteção da infância e sem cobranças. Me lembro de um ditado dos sírio-libaneses residentes em Lavras, minha cidade natal, que dizia: Eu e meu irmão contra o primo, mas em caso de briga com estranhos, somos eu, meu irmão e o primo contra o inimigo”. Bem assim mesmo e hoje, separados, distantes pelas circunstâncias da vida profissional em diferentes lugares, resta-nos aquele profundo sentimento de afeto formado ao longo de toda a infância e juventude e que jamais esquecemos. Com eles crescemos, brincamos, estudamos, passeamos e mais tarde até passávamos temporadas de férias em suas casas, em locais bem distantes, como Rio, Londrina, Volta Redonda, BH, Nepomuceno, Ribeirão Vermelho e outras. Vibramos com eles quando ingressaram na faculdade, no primeiro emprego ou quando se casaram. Havia um primo, de saudosa memória que estudava medicina na Universidade de Coimbra. Como era bom receber cartas e cartões postais de Portugal e da Europa. Me lembro da primeira formatura em curso superior, de uma prima, na Universidade Estadual de Londrina. Também ficou marcada em minha memória a visita de um primo ao meu local de trabalho (recém-formado) em Belo Horizonte. A este, preguei-lhe uma boa peça. Fui proferir palestra para o CREA-PR em Londrina e do hotel liguei anonimamente para o primo, dizendo-lhe que deveria comparecer ao hotel para receber uma encomenda de um parente dele que residia em BH. Baita surpresa! Outra prima, residente no Mato Grosso cujo casamento aconteceu em 1962, em São Paulo e foi esta a última vez que a vi,  avisei-a sem me identificar (50 anos depois do último encontro) que passaria em sua casa para deixar encomenda que pediram para lhe entregar. Sem reconhecer-me, de terno e gravata e em carro da Universidade, convidou-me para entrar e tomar água e cafezinho. Ainda sem me reconhecer, no decorrer as conversa mencionei que o nome da rua me era familiar, pois eu havia conhecido um rapaz com aquele nome e que se casara com uma linda moça mineira (ela própria, a prima anfitriã, viúva do homenageado com nome de rua).  Foi uma emocionante surpresa, regada a lágrimas, descobrir que estava falando com seu primo que fora ao seu casamento, 50 anos atrás.

Primos são assim. Acertou quem afirmou que eles são a rede de proteção na infância e que suas memórias ficam gravadas para sempre na nossa mente. Jamais serão esquecidos, pois fazem parte do que mais caro temos: a memória afetiva.

Um abraço aos primos de longe, desse Brasilzão todo e aos amigos que moram em nossa memória afetiva.

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Brasília, 25 de fevereiro de 2024

 

            Paulo das Lavras


 
 Um encontro de primos em

Londrina - PR – jan. 2013



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