domingo, 9 de setembro de 2018

Um ciclista profissional em Lavras na década de 1960


Era uma noite de sábado do mês de fevereiro de 1962. Havia caído, à tarde, uma chuvinha fina típica de final de verão, mas nada que afugentasse os jovens em seu habitual programa de footing pela praça, aliás, jardim. O “jardim” estava apinhado de gente. Jardim, era como os lavrenses chamavam a sua principal praça, Dr Augusto Silva, o coração da cidade. Ali aconteceria o encerramento de um evento ciclístico que ficou famoso na cidade. Tão famoso que, mesmo depois de exatos 53 anos, dois protagonistas daquele evento se encontraram na distante Brasília e o relembraram com alegria, como a dizer: nós estávamos lá, você se lembra? Assim são os amigos. É o mesmo que estar em casa sempre, pois são como irmãos, garantindo-nos que a sua infância e juventude também estão guardadas no coração deles. Alegria em dose dupla.

E Brasília às vezes surpreende a gente. Mais de meio século depois, entrando numa loja comercial da capital federal, eis que de repente e surpreendentemente, alguém em meio a centenas de pessoas estranhas (é sempre assim em cidades grandes, você é apenas mais um anônimo) gritou meu nome e esboçou um largo sorriso de satisfação. Era o amigo dos tempos de juventude em Lavras, José Alcides Alvarenga. Estudamos no mesmo colégio, frequentamos os bailes do Clube de Lavras, as sessões de fins de semana do Cine Brasil, cada qual com sua namorada e por fim, ele como aluno na ESAL/UFLA e eu como professor. Desde então não mais nos vimos. Alegria sem fim no reencontro. Deixei as compras e passamos logo a conversar sobre os bons tempos passados em Lavras. Marcamos outro encontro, visitamos a chácara, meu refúgio e finalmente fui despedir-me dele, na casa de sua irmã, Lenita, onde se hospedara, a poucas quadras de onde moro. Foram horas de conversas sobre a cidade e sua gente, os familiares e amigos, principalmente dos tempos de estudante e primeiros anos de profissão.

 Lennon e McCartney foram muito felizes na canção “In My Life”, quando disseram que há lugares, coisas e pessoas que a gente se lembra pelo resto da vida. Embora algumas tenham mudado e outras até desapareceram de nossas mentes, muitas permanecem indeléveis. E desses amigos e lugares, os melhores são aqueles com os quais compartilhamos a vida, os tempos dourados da juventude. E eles sempre serão relembrados, onde quer que estejamos ou os reencontremos. Amigos são mesmo flores plantadas ao longo do nosso caminho e assim a vida será eterna primavera.
 
Mas,  certa vez, muito marcante, e não era primavera em Lavras, e sim final de verão daquele ano de 1962, relembrou-me o dileto amigo José Alcides e emendou: “tenho uma foto em que você aparece ao meu lado, naquela noite de encerramento da prova de resistência de um ciclista profissional, que pedalou por três dias consecutivos, sem descer da bicicleta e eu estava, com uniforme militar do Exército, guarnecendo a área de isolamento, pois prestava Serviço Militar Obrigatório, no Tiro de Guerra  da cidade”. Incrível, memória de elefante, lembrar-se de um evento de 53 anos atrás e com detalhes de imagem na memória... O Menino das Lavras nem acreditou quando, poucos dias depois da viagem de volta do amigo, dele recebeu  e-mail com a referida foto. Ali estávamos os dois e outros amigos de colégio. Também não era primavera, nem em 1962, em Lavras e tampouco em Brasília naquele ano de 2015, quando nos reencontramos. Ainda assim, Lennon e McCartney estavam certos em sua bela composição musical “In my life”, pois o Menino pôde viver “eterna primavera” com as “flores” rememoradas pelo amigo.
 
Ciclismo era coisa rara, tanto pela época como pelo costume local. Cidade montanhosa de difícil pedalar, Lavras não tinha muitas bicicletas como a cidade de Governador Valadares e outras. Mas havia, sim, na década de 1960, algumas delas de marcas alemãs, como Göricke e Mercswiss, a polonesa  Gulliver e as recém lançadas no Brasil, Caloi  e   Monark. Em casa havia uma Mercswiss, na cor vermelho-goiaba, aro 26, própria para meninos, muito resistente. Havia, também em Lavras algumas bicicletarias, onde se faziam a manutenção e comercialização de bicicletas usadas, de marcas estrangeiras. A Bicicletaria Ferreira era a mais importante da cidade e até tinha propaganda pela ZYI-6, Rádio Cultura de Lavras. Após o surgimento das bicicletas nacionais a gurizada passou a preferi-las pois havia maior quantidade de modelos e tamanhos. Outro detalhe era que as bicicletas estavam sempre equipadas com campainhas, dínamo gerador e farol. este era necessário porque as cidades do interior, além de muito mal iluminadas, não dispunham de iluminação em mais da metade de sua área. A bicicleta, em muitos casos, era o único meio de transporte para aqueles que residiam mais distantes do centro da cidade, daí a necessidade de farol.
Pois essas e outras reminiscências, sobre as bicicletas da década de 1960, foram gostosamente relembradas pelos dois amigos e aqui as compartilhamos com todos.
 
Brasília, 15 de outubro de 2015
Paulo das Lavras
 
José Alcides Alvarenga e Paulo das Lavras, em Brasília, outubro de 2015,
53 anos depois do evento ciclístico em Lavras, cuja foto, ele próprio enviou-me.
A alegria do reencontro casual, depois de tanto tempo, até nos fez rejuvenescer e nos
 sentirmos  como naqueles idos de 1962.


José Alcides, com uniforme militar, guarnecendo o cordão de isolamento
da prova ciclística de três dias, sem descer da bicicleta.
O menino das Lavras  aparece de paletó cinza, camisa branca e calça clara, ao lado de outro com
terno escuro, ao centro da foto. Também aparece na foto, a meu lado, de camisa xadrez,
  o garoto Nilton José Arruda que, mais tarde, tornou-se professor em colégios da cidade.
Foto: cedida por José Alcides Alvarenga


Bicicleta robusta, a mais vendida nos anos 60 – Goricke
Foto: internet


A mais preferida pela garotada, aro 26, de bom tamanho
e também muito robusta. Havia uma desta em casa e gostávamos
 de fazer trilha pelas pastagens da chácara .
Foto: internet


P.S – em, 21/10/2015, apenas seis dias após ter escrito a crônica acima, comparecemos aos funerais de Lenita Alvarenga, de tradicional família lavrense e irmã do amigo José Alcides Alvarenga. Pioneira de Brasília, chegou à cidade logo após sua inauguração. Foi casada com o advogado Everardo Curado Fleury, já falecido e também pioneiro da capital federal.
Por essa razão, não publicamos a crônica que ficou esquecida em nossos arquivos. Hoje, 10/09/2018, com a infausta notícia da morte de José Alcides, decidimos publicá-la em homenagem a ele, sua família e aos amigos.
Amigos são mesmo flores plantadas ao longo do nosso caminho e assim a vida será eterna primavera e a memória dos mesmos é e será sempre indelével em nossa alma!


3 comentários:

  1. Caro Paulo,

    O reencontro de amigos, muito bem narrado na crônica acima, com meu tio José Alcides, teve grande repercussão familiar. Com muita alegria e satisfação ele contava o acontecido.
    Agradeço em nome da nossa família a homenagem e a deferência de publicar a crônica.
    Grande abraço,

    Renata Alvarenga Fleury Ferracina

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  2. Prezada Renata, junto-me à família nessa hora de dor pelo passamento do querido e inesquecível José Alcides. A crônica já estava escrita há tempo, aliás, desde setembro de 2015., logo após ele ter me enviado sua própria foto, com uniforme militar do Tiro de Guerra e que ilustra o texto. Era, sim, uma homenagem ao amigo que transbordava doçura no coração. Você nem imagina a alegria que fui tomado ao ouvir alguém, em meio a muitas pessoas numa loja, aqui em Brasília, gritando meu nome e esboçando largo sorriso. Foi como reencontrar um irmão, sumido havia quase cinquenta anos. E a alegria foi recíproca, conforme você mesma relata-me. E note que a foto em que aparecemos juntos, foi tomada na sala da casa de sua saudosa mãe, Lenita, quando lá estive, para as despedidas de retorno de viagem de José Alcides.

    Poucos dias depois, naquele mesmo setembro de 2015, ele retornou à Brasília, mas, infelizmente, para os funerais da saudosa irmã, Lenita, que vem a ser tua mãe. Acompanhei seu tio por todo o tempo, até o jazigo da família na Ala dos Pioneiros de Brasília, no Campo da Esperança. Só então vi e soube que ali também jazia o companheiro de Lenita, Everardo Curado Fleury, teu pai, pioneiríssimo e muito querido em Brasília.

    Assim é a vida, Renata, os entes queridos partem, mas deixam marcas em nossa alma que os tornam imortais e sempre serão lembrados por aquilo que nos legaram, o amor. Por isso, somos todos gratos à sua memória e a essa maravilhosa família. Um forte abraço para você e toda família.

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  3. EVERARDO PT2EF faleceu? Como? Aonde?

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