domingo, 30 de julho de 2017

Minha Árvore, minhas raízes invisíveis

         Naquele ano de 1982 plantei, em frente à fachada principal da casa da chácara, duas belas mudas de pinheiro de natal, a araucaria excelsa. Algum tempo depois fotografei as crianças ao lado delas já enfeitadas nas festas natalinas. Contei a elas que aquelas duas árvores iriam crescer muito..., mais de 25 metros de altura, ficariam enormes e seriam vistas lá de longe, a uns quatro quilômetros, na parte mais alta da estrada de chegada. As árvores ficariam muito bonitas, como dois guardiões da nossa casa, como aqueles guardas da porta do Palácio do Planalto que elas, as crianças, tanto gostavam de ver. Os soldados do Batalhão de Guarda Presidencial pareciam duas estátuas, imóveis, com enormes lanças na mão. As crianças ficaram admiradas, como a imaginar quão alto aqueles pinheiros, tão pequeninos ficariam e pareciam mesmo não acreditar no que eu dizia. E ainda completei a aula, durante o plantio: vocês, crianças, também crescerão, terão filhos e eu serei vovô de cabelos brancos, velhinho. Também os passarinhos virão fazer seus ninhos nos galhos, outros apenas repousariam e cantariam em bela sinfonia de primavera. Outros, ainda, tentariam quebrar seus frutos em forma de castanha. Doces devaneios para estimular os sonhos das crianças que ali estavam ao redor, “ajudando” no plantio das duas belas árvores.

            Até os três ou quatro anos de idade daquelas árvores foi possível enfeita-las com bolas de natal, ritual que se repetia com prazer e sempre registrado em fotos. Depois não mais, em razão do enorme porte. Os passarinhos vieram como previsto, sabiás, bem-te-vis, sanhaços, asa branca - aquela enorme pomba selvagem, pardais, tico-ticos, tizius, canarinhos da terra – também conhecidos por cabecinha-de-fogo e recentemente, pela primeira vez, pasmem... um bando de tucanos do bico amarelo, também fotografados, para o deleite de toda a família que, felizmente, estava presente, numa bela manhã de sol e pode apreciar essa maravilha, tucanos do bico amarelo. Os primeiros pássaros a fazerem ninhos nos pinheiros foram os bem-te-vis. Bem tecido e ancorado, o ninho prestou-se várias vezes ao acasalamento e consequente revoada de filhotes. Tempos depois, ninguém poderia imaginar que aqueles dois pequenos passarinhos “entortaram” o tronco do pinheiro. Como? Ah... conte outra..., disseram alguns incrédulos. Mas a verdade é que o tronco entortado ainda está lá, de pé, mais de trinta anos depois. Mas, como pode um pequeno passarinho entortar o tronco de uma enorme árvore como aquela? Simples, explicava eu aos incrédulos. O ninho, bem volumoso e fortemente entrelaçado aos galhos, encharcava-se com as chuvas e tornava-se excessivamente pesado, vergando o tronco da jovem árvore. Tempos depois, ao olhar para cima notava-se, naquele gigante de mais de vinte e cinco metros de altura, um desvio acentuado assemelhando-se a um ligeiro “S”, logo acima da metade do grosso tronco. Os visitantes ficavam intrigados, difícil acreditar que aquilo fora obra de um pequeno passarinho, o bem- te vi.

            Os mais assíduos nidificadores naqueles dois pinheiros foram as pombas selvagens, conhecidas por asa branca ou ainda pomba trocal (um pouco maior e mais graciosa que a juriti). Não raras vezes seus ovos caiam, pois nunca vi ninho tão mal feito, pequeno e ralo. Tão ralo que se podiam ver os ovos quando se olhava por baixo. O simples ato de sair do ninho, um pouco mais apressada, já fazia com que os ovos ou mesmo os filhotinhos caíssem ao chão. Tivemos algum trabalho em recolar esses filhotes. Certa feita, já grandinhos, caídos, cuidamos deles. Ficaram domesticados e não saíam da cozinha, ou quando muito davam uma volta, voavam até alguma árvore e voltavam para comer na mão e até passeavam no ombro ou na cabeça do caseiro que foi o principal cuidador. Certa vez meu irmão se deixou fotografar com elas se alimentando em suas mãos. Pagou maior mico em praça, pois levei as fotos e as exibi aos seus amigos, inventando, antes, que um “velho feiticeiro” passara em minha chácara e demonstrou seus poderes de fazer com que aves selvagens o obedecessem, vindo se alimentar em suas mãos e ainda conversar com ele. Contava a história, fazia mistério e em seguida mostrava as fotos... gozação geral para cima do suposto “feiticeiro”.

             A maior surpresa foi mesmo a passagem do bando de seis tucanos do bico amarelo. Pousaram no pinheiro, atacaram os frutos, grunhiram bastante (alguém conhece o canto dos tucanos? Não é bonito, mais parece um grunhido) e depois de uns dois minutos revoaram, não sem antes de serem registrados em fotos, ainda que com o celular sem muito alcance. Visitantes menos desejados eram os gaviões carcarás, prontos para atacar os filhotes de bem-te-vi e pomba trocal. Sempre atentos aos escândalos das brigas entre predadores e ameaçados, cuidávamos de espantar os intrusos rapineiros com simples assobios ou bate-palmas e assim salvar os filhotes em seus ninhos.

            O tempo passou e tudo aconteceu como previ para os filhos. Eles cresceram, tiveram filhos que hoje já estão com seis e sete anos, a alegria do vovô de cabelos encanecidos, mas com a alma jovem, a correr com eles pelos quatro cantos da chácara, jogar bola, pescar, nadar, cavalgar, soltar pipas ou ainda voar com aeromodelos de aviões e helicópteros. Por seu lado as árvores cresceram, antes enfeitadas no natal, depois as sombras e principalmente a beleza natural, avistada de longe como um marco do território. Abrigos e celeiros, para os passarinhos que se alimentam de seus frutos silvestres, ninhos, brigas entre eles, cantorias sem fim, muitos filhotes. Dois desses filhotes resolveram transitar e voar pela cozinha e varanda, passear de carona no ombro ou na cabeça das pessoas.... Maravilhas da natureza que nos levam a desejar sempre estar ali, embora só usufruíssemos desse paraíso nos finais de semana.

 Mas, a mesma natureza que nos proporcionou tudo isso, também nos tomou de assalto uma daquelas belas árvores. Um raio fulminante descarregou-se sobre ela. Como não estava presente, não notei o estrago nos primeiros dias. Semana seguinte havia leve descoloração na ponteira do pinheiro. Noutra semana um pouco mais. Numa meticulosa inspeção constatei o pior. Tinha sido uma descarga atmosférica ocorrida durante uma tempestade, então confirmada pelo caseiro. Na esperança de que o estrago pudesse ser superado, não a sacrifiquei. Doía-me a alma cortar uma árvore ferida, de quase dois metros de circunferência e mais de 25 metros de altura. Haveria de se recuperar. Mas, infelizmente, depois de uns cinco meses estava totalmente seca e os vendavais com as chuvas de verão já haviam decepado seu terço superior. Não me restou alternativa senão contratar especialistas para abatê-la por completo. Verdadeiro golpe na alma. Ali jazia quem nos alegrara por tanto tempo..., exatos 32 anos. Definitivamente isto não estava nos planos.

            Retirados os escombros restou um vazio, cenário mutilado, deixando-nos um buraco na alma. Só mesmo quem está acostumado com a natureza e as belezas de um jardim, sabe entender e avaliar esse sentimento. Parece que os pés da gente têm raízes invisíveis, disse certa vez um renomado paisagista. E essa raízes invisíveis nos “plantam” no chão e fazem com que nos identifiquemos com as plantas de nossos jardins. E raízes precisam de cuidado, de amor. Jardins também. Plantar árvores e flores é colher felicidade, pois até mesmo uma simples árvore plantada é um anúncio de esperança. Especialmente se for uma árvore de crescimento lento, pois plantamos sabendo que talvez nem iremos comer dos seus frutos ou sentar à sua frondosa sombra… Plantamos pensando naqueles que comerão de seus frutos e se sentarão à sua sombra. E isso bastará para nos trazer felicidade. E neste caso, do pinheiro de natal, ao contrário colhi tudo isso e muito mais. Era uma árvore que “falava”. Falava? Sim pela sua beleza pelos pássaros que nela se abrigavam e se alimentavam, cantavam e alegravam o ambiente. Seria loucura ouvir as árvores, os jardins? Que nada, até Guimarães Rosa os ouvia: “São muitos e milhões de jardins, e todos os jardins se falam. Os pássaros dos ventos do céu – constantes trazem recados”.

            Mas e a tristeza pela perda de uma árvore? Bem..., é normal o sentimento de perda. Para começar, tratava-se de uma belíssima árvore, plantada e cuidada com zelo e ao final desfrutando de tudo que ela proporcionava, até mesmo como moldura natural da casa. Paisagem prontamente identificada pelos netinhos, ainda na estrada, bem distante, ou até mesmo em fotos aéreas. Não se pode esquecer que ao plantar um jardim nele depositamos a felicidade dos tempos de infância e das alegrias passadas como se fosse uma busca do tempo perdido. Assim, ele carrega uma elevada e forte carga emocional, além do gosto na escolha das espécies de flores, árvores e demais complementos paisagísticos. Mas, isto é diferente da melancolia, aquela que só chora as alegrias perdidas, sem esperança de que elas possam ser recriadas. E a propósito, vejam que belo poema, de Angelus Silésius:
                “Se, no teu centro um Paraíso não puderes encontrar, não existe chance alguma de, algum dia, nele entrar”.

            Os jardins são nossos Paraísos. Fazemos parte da natureza. As flores são como as crianças, trazem amor e vida e têm o poder de desarmar, emocionar as pessoas. E como as crianças, trazem-nos a lembrança da renovação da vida. Criei meu jardim e já recriei a árvore perdida. Se da primeira vez as filhas ajudaram a plantar e cuidar, desta vez os netinhos a replantaram e estão cuidando da nova árvore, no mesmo lugar. Esperança que se renova, nos velhos e nas crianças que aliás, andam no mesmo compasso, como disse nosso poeta maior, Rubem Alves.

Assim é a vida. Acabou a tristeza, renasceu a esperança com a nova árvore ali replantada. Não foi a toa que Proust disse que:  "os verdadeiros paraísos são os que perdemos"    e o poeta Mário Quintana ensinou que  "a gente continua morando na velha casa em que nasceu".

 Para quem nasceu e cresceu em meio à natureza, na zona rural e na chácara ao redor da cidade, faz sentido.  Paraíso sempre!
Plante um jardim, faça seu próprio paraíso e more nele.


Brasília, 05 de abril de 2015

Paulo das Lavras


O replantio de um pinheiro de natal. A segunda geração
cuidando  de recuperar a grande perda. Plantar uma árvore
é renovar as esperanças  -  2014


O pinheiro que servia para decoração de natal. Simone e
o menino do caseiro – dez 1984


A imponência dos dois pinheiros, vista de cima,
como torres de vigia da casa, 20 anos depois 


As majestosas “torres de vigia” vistas por trás da casa


Os pinheiros serviam de abrigo dos pássaros. Filhotes de pomba trocal (asa branca)
caíam do ninho. Na foto uma dessas, já adulta, criada em casa,
vinha comer na mão do visitante e na hora do lanche voava até à cozinha 


Qualquer que fosse o visitante e se estivesse com comida na mão,
lá ia a “Titinha” pedir a sua parte. Hora do almoço e lanhe, na varanda
 ou churrasqueira,  sempre tínhamos sua companhia.Viveu mais de
15 anos assim, voava do alto dos pinheiros e buscava a companhia das pessoas



Numa tempestade de verão um raio fulminou um dos pinheiros 


O operário com sua motosserra. Ao colocá-lo abaixo, também “cortou” meu coração...


...que viu ser abatido o gigante de mais de 25 m de altura e 32 anos de idade,


...deixando dois grandes vazios, na paisagem e na alma que teve suas
 raízes  invisíveis também cortadas
  

Restou apenas o irmão gêmeo...um gigante solitário também maltratado pela tempestade


..mas, as crianças da geração seguinte cuidaram, com muito carinho, de replantar outro pinheiro de natal,
recompondo o nosso “paraíso” que foi devastado por uma tempestade


... e um ano depois já estava com dois metros de altura – janeiro de 2015


Minhas raízes invisíveis se estendem, entre tantas árvores que plantei, pelos pés de peras cujas frutas, em
abundância, balançam sobre o tapete rosa do ipê em plena florada de julho


... e também por muitos canteiros de flores, cujas raízes embora frágeis,
 em relação ao vigoroso tronco da mangueira em primeiro plano à esquerda da foto,
 todas elas fortalecem as raízes invisíveis de minha alma, nascida, criada e
formada na agronomia, em meio à plena natureza.





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