domingo, 30 de novembro de 2025

A matemática e minha resiliência


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Livro de matemática dos anos 60, PUC-PR. 
Tijolaço e raridade em Minas Gerais 
Foto: internet


Muitos amigos perguntam se tenho alguma explicação para estar no mercado de trabalho profissional e universitário por tanto tempo. Estou há 65 anos ensinando, pois desde os 15 comecei a ministrar aulas particulares de matemática para candidatos  ao Exame de Admissão. Sim, nos anos 60, o aluno ao terminar o curso primário (Fundamental I, assim chamado, hoje) e desejasse continuar os estudos no nível seguinte, o antigo Ginásio e hoje chamado de Fundamental II, teria que se submeter a uma espécie de exame vestibular, chamado de Exame de Admissão ao Ginásio. Era muito puxado esse exame, compreendendo provas de Português, Matemática, Geografia e História. Havia dois diferentes cursos de Admissão, o primeiro, com um ano de duração, destinava-se aos alunos de baixo desempenho nas notas do curso primário. O segundo, era compacto e ministrado nos meses de férias, de janeiro e fevereiro. Além disso, era comum os pais pagarem professores particulares, durante o último ano do curso primário, para reforço e preparação do aluno, que contava com apenas 10 ou 11 anos de idade e sem muito domínio de toda a matéria aprendida nos quatro anos do curso fundamental. Os exames ocorriam nos meses de dezembro e fins de fevereiro, de modo que em 1º de março, o aluno já poderia ingressar no curso ginasial.

Não era comum, naquela época, seguir a carreira de estudante, até porque não havia, nas pequenas cidades, o ensino público gratuito. Todos os colégios existentes eram particulares, pagos. Em Lavras havia quatro, o famoso Instituto Gammon, de missionários presbiterianos, norte americanos, fundado no longínquo ano de 1893, recebia apenas rapazes e sua filial,  o Colégio Carlota Kemper, era destinado somente às moças, separação rígida, respeitada até os anos de  1960 do século passado.  Em 1900, a Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, de  Caeté-MG, tratou de fundar em Lavras o Colégio N.S. de Lourdes, católico, que deveria concorrer com os presbiterianos. Este era exclusivamente para moças e somente  42 anos mais tarde surgiu o quarto educandário, o Colégio N.S. Aparecida (1942-85), de padres católicos e destinado a receber exclusivamente os rapazes. A sociedade lavrense se uniu e reuniu cidadãos dispostos colaborar nesse empreendimento educacional. Meu avô foi um dos fundadores desse colégio, que acabou encerrando suas atividades em 1985 e cedeu suas instalações ao Centro Universitário UniLavras. Pois bem, devido às dificuldades de se pagar mensalidades aos colégios, a maioria dos jovens encerrava sua carreira de estudante ali mesmo no curso primário. Ingressavam, logo em seguida, aos 12 ou 14 anos, no mercado de trabalho sem nenhum grau educacional complementar. Por isso, mais tarde, já em condições de pagar o colégio, alguns poucos retornavam aos estudos. Mas, havia um porém..., o difícil exame de admissão ao ginásio. E foi nesse nicho que o menino de apenas 15 anos iniciou sua carreira de professor, para alunos candidatos ao ingresso no colégio, antigo ginásio. E a maioria dos candidatos era de adultos, entre 20 e 30 anos de idade, já no mercado de trabalho e que precisavam de um diploma de curso secundário para galgar promoções.

Matemática era a minha matéria preferida, ensinava álgebra com frações, equações de segundo grau, regra de Bhaskara e a geometria já em outros níveis e neste caso, prevaleciam os alunos-colegas de turma, que tinham dificuldades no desenvolvimento das matérias de nível superior. Na faculdade ainda se acresciam às aulas particulares aos colegas, o assessoramento na elaboração de trabalhos de conclusão de curso, especialmente em topografia, irrigação e drenagem. Livros e mais livros, compunham minha estante, com centenas de “problemas” para exercícios resolutivos, às vezes difíceis, mas, quando resolvidos, nunca mais eram esquecidos. Aliás, os livros, fossem de literatura, idiomas, matemática, física, química, biologia, engenharia, todos, eram rabiscados, grifados com tintas de diferentes cores, destacando-se os pontos chaves da matéria. Comentários eram escritos à mão ou colados às páginas em pequenas tiras, concordando ou discordando do enunciado. Nunca dei atenção à recomendação de professores do curso primário, que recomendavam cuidado especial em não rabiscar os livros, talvez porque eram livros pertencentes à escola, ou ainda se cultivava o hábito de se repassar os livros aos irmãos mais novos. Em todos os meus livros havia sempre as marcas e a certeza de que a matéria foi aprendida e absorvida. Nunca empresto meus livros. Se necessário, compro um igual e ofereço ao amigo que solicitou.  Me lembro, por exemplo,  que na prova oral do vestibular de Agronomia (sim, naquele tempo o vestibular de nível superior, incluía prova oral, aplicada no quadro negro, diante de uma banca de examinadores), consegui resolver um problema dificílimo, obtendo a nota dez em pleno exame vestibular, ao vivo e sob o olhar um tanto quanto admirado da banca examinadora, composta pelos professores Wilson Ferreira, Márcio de Castro Soares e Weber de Almeida. Nota máxima, sem pestanejar, mas contamos com um pouco de sorte, pois um professor havia me emprestado um Manual de Matemática do autor Bezerra, da PUC-PR, chamado de tijolão, tal era o seu volume de páginas e complexidade dos exercícios. Nele havia um problema semelhante que, dias antes me propusera a resolver.

Minha experiência, como professor de alunos aspirantes ao curso de segundo grau, valeu, pois a prática constante da matemática  e o gosto pelos estudos, aceitando os desafios de problemas/exercícios difíceis, moldam o raciocínio lógico que sempre busca soluções racionais. Nunca deixava um problema/exercício sem resolução. Se empacava..., dia seguinte lá estava com os professores do colégio, especialmente os queridos Nelson Wilibaldo Werlang, Valdir Azevedo, ambos de Matemática, Russaulière Mattos, de Física e Química,  Canísio Ignácio Lunkes, de Geografia. Inglês e Francês e ainda Pe. Elói Dorvalino Kock, de Português, mestres excepcionais, que sempre nos dedicavam atenção especial e por que não dizer, nos inspiraram na carreira do magistério. Também aí, no aprendizado a resiliência do menino estava sempre presente. Nunca desistia de encontrar a solução do problema/exercício.

Mas, este foi apenas o começo, pois ao longo de minha trajetória, enfrentei desafios de toda natureza, pois sofremos críticas de colegas professores, por adotarmos métodos inovadores na formação do aluno, além de lidar com a  dificuldade natural dos estudantes quase sempre mal-informados, sem orientação alguma no campo da metodologia do aprendizado, da busca do conhecimento e do saber. Tudo isso exigia e ainda exige, muita força interior, paciência e capacidade de adaptação. Por isso, sempre respondo à pergunta dos amigos, a qual inicia e abre esta crônica:  

... simplesmente, tenho uma enorme energia. Desde menino tive mente agitada, desinquieta, curiosa, observadora ao extremo, hiper focada, inquiridora, e não se contentava nunca em ficar sem a resposta certa. Continuo, ainda hoje, do mesmo jeito, formulando perguntas e isto me leva a manter-me no mercado de trabalho.

Esta situação acontecia em tudo, não apenas nas matérias e disciplinas colegiais e da faculdade. O menino queria explicação de tudo, de coisas inusitadas, como por que as aves de rapina curvam as pontas e somente as pontas das asas, ao darem um voo em mergulho, ao tempo em que arrebitam a cauda. Por que isso? Estabilidade  no voo? Manter a direção certa sobre o alvo no chão ou no ar? Velocidade, ou ligeireza com dizíamos, as crianças? Caramba, essa pergunta martelou-me a mente boa parte da vida, por exatos 60 anos e toda vez que via uma ave em voo de ataque, vinham-me à mente aquelas perguntas formuladas aos oito ou dez anos de idade. Nenhum colega piloto de ultraleve, ou de grandes jatos e nem mesmos oficiais engenheiros aeronáuticos me explicavam. A resposta só encontrei, muitos anos depois, quando a EMBRAER, lançou, em 2014, o avião a jato EMB- 175, dotado de winglets, aquela ponta da asa, arrebitada para cima, tal qual fazem as aves de rapina. E qual a função dessa ponta terminal da asa virada para cima, quase em 90º?  Ensaios em túneis de ventos demonstraram que servem para diminuir a força de arrasto do ar, economizando combustível, aumentando a velocidade e propiciando maior estabilidade e correção no voo. E pensar que aves de rapina já faziam isto desde que o mundo é mundo e que o menino observava isto já em 1954 e os engenheiros aeronáuticos só descobriram isto em 2014, sessenta anos depois? Foi preciso, ainda, esperar 108 anos depois  da descoberta do avião para se chegar a esse resultado, que hoje é usado em todos os modernos aviões a jato. Maravilha que a mente inquieta, agitado do menino martelou e hibernou por seis décadas e cujo resultado se escondia nas leis naturais da Cinemática e Dinâmica, da Física.

Ah..., retrucavam os amigos, “energia’? Todos têm, crianças nascem e crescem assim, cheias de energia,  mas à medida que envelhecemos vamos perdendo energia, diminui a vontade de se movimentar, nos acomodamos, diziam-me. Não satisfeitos emendavam,  e como explicar esse seu “entusiasmo”, ainda hoje, aos 80?  Na verdade não foi isto que aconteceu, pois ainda me sinto aos 30, ou 40 e tenho forte motivos, vejam os três principais. O primeiro é inato. Nasci assim, fui criado assim. Logo aos dois anos de idade passei, literalmente, nove meses no colo de familiares, convalescendo de delicada cirurgia torácica. Vinte quatro horas ao dia sob cuidado pela família e agregados. Isto fez toda a diferença em meu comportamento, segundo os especialistas. A grande vantagem foi que naquela idade é que se desenvolvem os neurônios da criança. Fui estimulado ao extremo, pois tinham que me manter distraído para ignorar o incômodo de enorme sonda, um dreno nas costas que sequer podia ser tocado. Assim, desenvolvi o senso da curiosidade, do aprendizado, pois tudo que perguntava, obtinha pronta resposta do adulto cuidador. E mais, eram respostas amorosas, carinhosas, dirigidas ao menino frágil que teve a vida por um fio e ali estava a convalescer obra e graça da misericórdia de Deus. As respostas eram,  quase sempre, seguidas de histórias e contos que ilustravam a situação, provocando a imaginação do garoto. Me lembro de meu pai com sua canção de ninar (ainda sei a letra e ele a confirmou pouco antes de nos deixar, aos 101 anos de idade), passeando, à notinha entre a sala e o quarto, com o menino de bruços no seu ombro e agarrado ao pescoço, ouvindo o doce zoar de sua canção, seguindo-se leves embalos que colocavam o menino junto aos anjos do amor embarcando-o no sono profundo. A confirmação de meu pai, aos 101 anos, dessa maravilhosa prova de amor, foi a sensação mais sublime que tive e pude , então, reconhecer o quanto o amor e dedicação dos pais, da família e agregados, fazem diferença na vida e desenvolvimento intelectual da criança.

A ciência está aí e a todo momento as pesquisas revelam essa grande verdade e muito provavelmente minha pergunta sobre a ponta  da asa encurvada e arrebitada nos velozes voos de urubus e gaviões,  na captura de presas, deve ter surgido nessa época. Psicólogos e outros especialistas afirmam que, nessa faixa etária, os estímulos à criança fazem toda a diferença, aumentado o QI, pois além de ampliar o estoque de neurônios, formam as sinapses, agrupando e sistematizando a  hierarquia  mental. Dizem que a matemática é boa para a cabeça. Sim, desenvolve o raciocínio lógico. Mas de que adianta elevar o raciocínio, aumentar os neurônicos, se não houver resiliência? Isto se aprende, se adquire com assistência na infância. O carinho, o amor e a atenção na primeira infância é fundamental. A criança adquire autoconfiança, pois sabe que tudo que perguntar terá resposta correta e estímulo e buscar soluções. Adultos conscientes sabem que não há pergunta burra e sim resposta idiota. A criança precisa ser estimulada a desenvolver a mente, treinar habilidades, encarar pequenos desafios (lúdicos), mostrando a elas as vantagens de se conquistar/descobrir algo. Sendo assim educada, a criança terá maiores chances de crescer com mais tranquilidade, na certeza de que tudo se resolve com amor e atenção, o que lhe dá autoconfiança,  otimismo (orientação positiva para o futuro) e aceitação positiva da mudança. Ela tem certeza de que não será criticada por qualquer que seja a pergunta que ele venha a fazer. E isto desinibe, ou melhor, desenvolve o senso de curiosidade e a persistência em busca das reposta para encontrar soluções criativas e não desistir dos meus objetivos. Ou..., simplesmente resiliência.

 Ah..., a matemática ajuda , sim, e muito! E hoje, nem mesmo ensino a matemática, mas ministro palestras neste Brasilzão inteiro, sobre Engenharia e Agronomia, nas universidades, conselhos profissionais, associações de classe, centros-acadêmicos, sempre destinadas aos profissionais e sobretudo aos jovens. Quer coisa melhor do que falar, incentivar jovens cheios de vida, prontos para enfrentar o mercado de trabalho? A vida é aquilo que dela fazemos. Vivo em meio aos jovens, sinto neles a vontade de vencer,  a energia pulsante. Só me resta entrar nessa ..., de 30 anos no máximo e incentivá-los..., que sejam inquiridores e resilientes, sempre!!

 

Brasília, 30/11/2025

Paulo  das Lavras


A busca incansável pela resolução de problemas/exercícios 
em qualquer livro de matemática, ajudou o menino a 
desenvolver a lógica e a resiliência. 


 Prof. Russaulière Mattos, meu primeiro tutor, que a mim confiou a 
monitoria  de sua disciplina – Física, no curso científico 


 
Diretores do UniLavras em visita ao MEC, instituição que ocupou as instalações do   
Colégio Aparecida,  onde estudei, e lá contei, também,  com a tutoria do saudoso Prof. 
 Canísio Lunkes, genitor da Reitora Marília Lunkes, que aparece na foto  


 Com o colega Prof Laughlin, na Michigan State University 


 Com colegas professores da Universidade de Montpellier- França