Pela primeira vez Pedro Henrique, de cinco anos, dormiu sozinho com o vovô. Ele numa cama e eu em outra, no mesmo quarto, lado a lado, distante do quarto onde dormiam a vovó e a priminha Sarah. Só o fato de ser a primeira vez já nos deixou a ambos antenados na curiosidade do “como viria a ser”. Sempre antes de dormir, ele na cama de casal com a vovó, era praxe pedir para que eu fosse contar uma historinha depois que já tivesse feito sua prece. Assim, cumprimos o ritual das poucas vezes em que costumava dormir na casa dos avós. Terminada a oração comecei a contar uma história baseada numa visita que fiz à Base de Lançamentos de Foguetes, em Kourou, na Guiana Francesa. Mal acabara de iniciar e descrever a sala de controles do lançamento e o enorme tamanho do foguete já fumegando, pronto para disparar, mas ainda atrelado à torre de lançamento, ele interrompeu-me: ihhh..., não..., vovô..., essa é da NASA, eu já conheço. É semelhante, mas não é da NASA, é da França, de sua base lançamentos aqui na fronteira com o Brasil. Ah..., é a mesma coisa, eu já vi lançamento de foguetes e espaçonaves... Interrompida a história tive que inventar outra, pois certamente já vira, na TV, o “filme” das espaçonaves. Mas, o que mais me fez feliz naquela noite foi ver aquela criaturinha ir apagando-se aos poucos, piscares miúdos, como a sorrir zombeteiramente e por fim o sono dos justos.
Nada é mais gratificante do que ver o filho ou neto, que acaba sendo filho em dobro, com dupla dose de amor, cair no sono, adormecer, entregando-se como a dizer com aquele rostinho angelical: está tudo bem, estou feliz, vovô cuidará de mim contra os fantasmas. Estou protegido contra todos e tudo. Tudo aquilo que alimenta sua alma infantil de doçura que acredita em fantasmas, tartarugas ninjas poderosas e fadas madrinhas do dentinho de leite. Não há felicidade maior do que estar ali ao lado daquele rostinho suave, pele brilhante, olhos fechados, tranquilos. Semblante feliz a ressonar suavemente. Tudo é paz. E ali ficamos a contemplar aquela cena, enlevados, com a alma flutuando e desejando que aquilo não terminasse nunca. Que fosse eterna a noite, tal o estado de felicidade por estar e ter sido o escolhido como guardião para aquele anjinho que se entrega em doce sono. Aquele mesmo contestador... ah... vovô conta outra história... essa eu já sei... e de repente, vencido pelo sono, silencia adormecido. Ah, quanta graça, quantas bênçãos de Deus por merecermos estar ali, fazendo parte daquele sonho.
Naquela noite não consegui dormir plenamente. A todo instante olhava para o lado e pousava a mão sobre seu bracinho descoberto e o recobria. Lá pelas tantas, às três da matina, ele sentou-se na cama e disse: vovô, quero ir ao banheiro. Respondi, vou com você. Lá, acendi a luz e antes de voltarmos para a cama disse-me: “Eu vi a fada-madrinha em frente ao espelho, mas ela não trouxe meu dentinho novo, deve ser porque ele caiu no esgoto e o ratinho ainda não o entregou a ela”. Não entendi muito bem, mas confirmei... sim, a fada madrinha do dentinho esteve aí em frente ao espelho do banheiro..., e acrescentei que amanhã ela levaria o dentinho. Voltamos para a cama e antes de continuar o sono, ainda perguntou: Você vai me levar para a escolinha? Bem cedo, antes das sete, já estava olhando para mim, clamando para levantar e cochichando pediu-me para falar baixo para não acordar a vovó e a priminha Sarah que dormiam no quarto ao lado.
Um pouco mais tarde relatei o “sonho” da fada madrinha e a vovó explicou que no dia anterior ele havia perdido um dentinho que estava prestes a cair naturalmente. Não conseguira segurá-lo, pois caíra no ralo do lavatório. Decepcionado, por não ter podido recuperá-lo e entregar à fada-madrinha, que lhe faria nascer outro, a mãe lhe dissera que havia um ratinho lá no lago, onde desemboca a rede de esgoto, esperando o dentinho para entrega-lo à fada-madrinha. Assim, na pureza de sua alma absorveu a fantasia do ratinho coadjuvante e em seu sonho na alta madrugada, ficou sem entender por que a fada-madrinha veio visitar lhe, bem ali em frente ao grande espelho e não lhe deu o novo dente. Essa, certamente, foi a sua “visão”, vislumbrando a fada ali no lavatório igual ao de sua casa, onde havia caído seu dentinho que desceu ralo abaixo. E com o dedinho na banguelinha dos dentes incisivos, perguntava: Por que, vovô, por que será que ela não trouxe o dentinho novo? Talvez, porque o ratinho ainda não tivesse entregado a ela o velho dentinho que caíra no lavatório. Vai demorar um pouquinho, mas ela o trará para você.
Que belo momento esse do ninho, do aconchego da cama quentinha, onde a criança tem plena segurança e confiança naqueles que a cercam. Que privilégio conviver com uma criança tranquila, que só tem amor em seu coraçãozinho. O poeta e filósofo Rubem Alves disse que “um homem que guarda memórias de ninho na sua alma tem de ser um homem bom. Uma criança que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser calma”! É verdade, além do que nos torna mais compreensivos e amorosos, pois somos “a segurança” deles, os pequenos. O nosso ninar, o abraço, o dar as mãos, o olhar, ou até mesmo a nossa palavra são os esteios seguros nos quais as crianças se apoiam.
Ao chegarmos à escolinha pouco antes das sete horas, enquanto ele e eu conversávamos com a professora, chegou outro menininho que, quase choramingando, abraçou o pai e diante do argumento " preciso ir", o filhinho perguntou: para onde você vai, pai? Papai vai trabalhar filhinho... E nesse ponto entra o Pedro Henrique e diz bem alto: "O meu vovô não trabalha, não, ele fica em casa".... Paguei o maior mico, pois todos acharam graça nas palavras do netinho, inclusive aquele que estava quase chorando. Coisas de crianças que disputam situações inusitadas. Mas, querem saber, mesmo? Jogo de mão dupla, pois, na verdade elas, as crianças, são os nossos esteios, pontos firmes de apoio e estímulo para a nossa alma, razão do nosso viver prolongando nossos dias aqui na terra. Anjos que elevam e enlevam nossa alma.
Amém!
Brasília, 25 de junho de 2014
Paulo das Lavras