sábado, 10 de agosto de 2024

Muito choro em Paris

 


Há vida além do trabalho...!


 
Foto: Reprodução/Globo 


Choro em Paris? Como assim, na Cidade Luz, que só irradia alegria? Até tu, Brutus? Perguntou-me, em tom de blague, um colega que gosta de provocar. Sim, também eu, por que não? Este menino, então jovem executivo internacional, também passou por crises de profunda angústia, estresse, choro e quase depressão, ali mesmo em Paris, sozinho, depois de longas semanas a fio com elevada carga de trabalho e responsabilidades. Abriu a janela do quarto de hotel, no centro de Paris, na esperança de respirar um ar puro e tomar fôlego, com seus batimentos cardíacos a quase mil por minuto. Tomou uma lufada de vento gelado de -5ºC. (sim, menos cinco graus) e caiu ao chão quase inconsciente. Era o  ano de 1986, mês de dezembro, inverno rigoroso.

Agora, quase quatro décadas depois, ali na sala de TV de sua casa, confortavelmente fazendo a sesta e assistindo aos Jogos Olímpicos de Paris, o menino se deparou com o repórter apontando ao vivo para  a imagem da foto que abre a crônica, dizendo: “Bia de Souza acaba de ganhar a primeira medalha de ouro do Brasil, nas Olimpíadas de Paris 2024. ... Ela fez o Brasil inteiro chorar”!  E fez mesmo!  Atleta machucado ou simplesmente derrotado dói em todas as torcidas. A contrário, a vitória e a medalha conquistada alegram a alma e aumentam os vínculos com a Pátria. Pura emoção e para aumentá-la, seguiu-se o Hino Nacional cantado por Bia, aos prantos. Cena emocionante que  tocou fundo nossa alma e não houve quem não desabasse em pranto. A foto mostra Bia de Souza  chorando de alegria pela conquista da medalha de ouro nas Olimpíadas de Paris 2024.  Orgulho por representar o Brasil. Chorou copiosamente ao som e ao cantar o Hino Nacional. Mais, ainda, quando o repórter lhe mostrou a família ao vivo, no celular. Pura emoção, alma pura, sentimento puro, dívida paga a quem tanto lhe incentivara no esporte, sua querida e saudosa avó. Ali, diante da TV, estava um desses chorões. Menino choroso, desse quando foi interno, muito longe de casa, penando diariamente o gosto da saudade, a falta dos entes queridos durante um ano inteiro. Sabia como ninguém o porquê daquele choro incontrolável da atleta Bia, longe de casa, dos entes queridos. Lembrou-se até das inúmeras vezes que pedia aos motoristas para passarem em frente às embaixadas brasileiras em Washington, Paris ou outras capitais estrangeiras para, simplesmente, contemplar aquele idolatrado pavilhão verde-amarelo, não sem ali também deixar escapar lágrimas de saudade e amor à distante Pátria. Ah..., que banzo danado, doía no peito, entalado, disfarçando as lágrimas diante do motorista estranho que nada havia entendido sobre aquele estranho pedido.

 A atleta campeã, Bia, cumpriu as palavras do repórter que, certamente também estava tomado pela vontade de chorar, quando disse que ela fez o Brasil inteiro chorar! Pura verdade, acertou em cheio, pois aqui o menino estava muito orgulhoso e choroso, pela conquista daquela guerreira que, afetuosamente dedicou sua vitória à avó ausente, recentemente falecida e que tanto a incentivara. Pura emoção,  que tomou de surpresa a todos os brasileiros, diante das lágrimas da vencedora que sentiu no peito o amor à Pátria e aos entes queridos, distantes, mas ali presentes em sua memória. Quanta alegria pela missão cumprida, vitória suada, inédita ... Ah..., mas, mas havia um porém...,  para que me serve essa vitória? Onde estão os entes queridos os amigos, o braço afetuoso..., a Pátria? Ah... saudade danada. Aliás nem é saudade, é o puro amor que fica e esta é a definição mais acertada que já li sobre essa vilã, a saudade que sempre nos ataca... Traiçoeira, quase sempre seus ataques nos pegam sozinhos, vulneráveis e nesses casos, não é demérito algum derramar lágrimas que lavam a alma. Foi assim que um dia também caí ao chão, desabei em Paris.

Sorte da Bia, pois ali estava um repórter, conterrâneo a falar-lhe em português, seu idioma natal, pois quando se está muito longe de casa, até o fato de não se falar seu próprio idioma, contribui para a angústia e depressão. É incrível e pouca gente sabe disso, o idioma nativo soa doce ao coração, quase maternal, e é nele, no idioma nativo,  que mesmo estando em outro país, ainda que por muito tempo, a gente se expressa em xingamentos (silenciosos, lógico... rsrs), exclamações e sonhos oníricos.  E o repórter lhe falava palavras de incentivo, elogiando sua vitória. Mas, bastou mostrar-lhe a imagem, ao vivo, de seus familiares, falando em vídeo chamada, para que ela desabasse em choro compulsivo, num misto de alegria e sentimento de falta dos abraços daqueles que mais conheciam seu amor, garra e respeito. Aqueles que lhe apoiaram a vida inteira. Foi quando, em lagrimas, disse “mãe, essa vitória foi pela vó”. Esta foi quem mais lhe incentivou e a apoiou até a poucos meses atrás, quando então partiu para a Glória do Senhor. A vó partiu para sempre, mas estava ali, em Paris, no pódio da vitória, com medalha de ouro, em gratidão na alma, no coração de Bia. Haja coração!  O repórter estava certo..., ela fez o Brasil inteiro chorar e aposto que ao encerrar a entrevista e fora do ar, lógico, ele também foi chorar de emoção.

Mais choro em Paris

É verdade, houve muito choro em Paris, na alegria e na tristeza. Um ou dois dias antes assistimos cena idêntica. A atleta Mayara chorou sua derrota que surpreendeu a todos. Da mesma forma que sua colega Bia, teve a sorte de encontrar um repórter já conhecido e que fizera várias entrevistas com ela. Conhecia sua trajetória de luta no esporte e por isso dirigiu-lhe palavras de incentivo e conforto para a alma dolorida. A atleta desabou em gratidão às palavras certas, na hora certa e no seu idioma, que lhe soava doce, familiar, querido. Desabafou que  as cobranças são muitas, não só do público, mas principalmente de si própria. Queremos sempre a vitória e o senso de responsabilidade é muito grande, exigimos o máximo de nós mesmos. "A cobrança interna é muito grande", completou Mayara e mais: - “Eu não queria chorar. Posso te dar um abraço?”, perguntou Mayra enquanto ouvia sobre a importância da sua trajetória para o judô brasileiro.

 
 Que cena mais linda! Só mesmo quem já chorou sob ataque de banzo, 
sob  estresse profundo e bem longe de casa, sabe enxergar a 
beleza desse gesto em que se pede um abraço. E ganhou-o. Alma aliviada! 
Foto: Reprodução TV Globo


O choro e lições de Tokio

Mas, não se chora apenas em Paris, a Cidade Luz. Tokio, em 2021, foi palco de outro famoso choro, da estrela mundial Simone Biles, campeã norte-americana em diversas modalidades na Olimpíada do Rio-2016. Alegou que a  pressão psicológica, com cobranças de desempenho, é muito grande, principalmente em meio à pandemia do coronavirus (julho de 2021). Acrescentou, ainda, que todos tinham a expectativa de vê-la brilhar, mas, tomou a decisão de abandonar os jogos, pois não estava se sentindo mentalmente bem e não queria prejudicar seus colegas ginastas, seu time, seu país. Havia e sempre haverá muita pressão externa e interna sobre os atletas, e esta, traduzida pela responsabilidade e ética. Nota 10 para a atleta que soube valorizar mais a Vida do que as expectativas do público. 

 Simone Biles, atleta norte-americana, campeã em várias modalidade em olímpiadas, especialmente em  2016 no Rio de Janeiro, não estrava bem emocionalmente nas Olimpiadas 2020 de Tokio, que foi disputada em julho de 2021. Pediu para sair, abandonando as competições, alegando estafa mental e que “há vida além da ginástica! 
Foto: Reuters


    O exemplo de Simone Biles é muito oportuno, até mesmo para explicar o tombo do menino após a lufada de ar gelado à janela do hotel em Paris, pois o que aconteceu com a atleta foi verdadeira estafa mental,  grave e poderia tê-la  levado a um acidente grave ou fatal. Já passei por problemas oriundos dessa loucura.  O estresse a que somos submetidos nos leva a superar limites e, às vezes, a não superá-los. Em entrevistas, logo após sua desistência de disputar as competições finais de 2021, a atleta Biles disse que “ Durante meu salto na final, eu não tinha nenhuma ideia de como caí em pé e se olharem as fotos e meus olhos, podem ver como estou confusa sobre onde estou no ar”.  E prosseguiu: Temos que proteger nossas mentes e corpos, não é apenas ir lá, competir e fazer o que o mundo quer que façamos. Nós não somos apenas atletas, no fim do dia nós somos pessoas, e às vezes temos que dar um passo atrás e eu deixei a competição, pois precisamos também nos  concentrar no bem-estar, há vida além da ginástica.  Não foi por causa de uma lesão física, mas sim por causa de minha saúde mental”. Ela confessou que era pesado demais suportar a carga de ser apontada como a maior estrela dos Jogos Olímpicos.

Quando essa angústia, verdadeiro pânico, se instala é difícil de desaparecer e o corpo não mais acompanha o cérebro, sobretudo quando este está confuso. Aliás, penso que seja o contrário, o corpo até sabe fazer os movimentos repetidos por muitas vezes durante os treinos, mas o cérebro confuso, não é capaz de acompanhar e podem acontecer acidentes perigosos ou até mesmo fatais. Foi por isso que ela se sentiu desnorteada, quando girou no ar e nem viu como caiu ao final do salto. Sua heroica decisão de abandonar a competição, seguida de declarações sobre a realidade psicológica dos atletas e ainda as repercussões na mídia, causaram mudanças nos parâmetros de avaliação da ginástica nos Estados Unidos que, então, passou a melhor observar as reações e o comportamento mental dos atletas.

Paris estressante? 

      Paris é estressante? Ora, não só essa  cidade-luz, mas qualquer outra onde você fique alguns dias, sozinho, especialmente no exterior, como Washington e San Francisco nos EUA onde também passei por momentos difíceis, estafantes. Por que o estresse, a angústia e quase estados depressivos ocorrem mais frequentemente no exterior? A grande distância de casa é fator preponderante, com a ausência de entes queridos,  lugares e comida totalmente diferentes, os costumes dos habitantes totalmente desconhecidos, idioma, tudo enfim é novidade e por isso exige mais atenção , conduzindo a possível esgotamento mental, dependendo da intensidade das exigências, sobretudo em assuntos profissionais que requerem decisões que impliquem compromissos de governo, o qual você represente.  Este foi o meu caso, jovem executivo internacional. Assim, Paris foi também muito estressante para o menino que caiu, literalmente, desabou ao abrir a janela, recebendo um golpe fulminante de ar gelado do rigoroso inverno parisiense. Havia passado por longas semanas com puxado ciclo de visitas às instituições de ensino e pesquisas agrícolas para identificar possíveis parceiros para as universidades brasileiras. Proferiu e assistiu palestras em francês, ora em inglês e espanhol em algumas ocasiões. É sabido que o cérebro quando se comunica em outro idioma exige atenção redobrada, tanto em compreensão/tradução quanto em velocidade de raciocínio. Não é simples lidar com isso. Imagine, você pensa em português e traduz para o inglês e se expressa, ou você pensa direto em inglês? Não, isto não é possível nos primeiros meses de contato com o idioma estrangeiro. E quando você se depara com vocábulos técnicos daquele idioma nunca vistos? Não entendeu o que foi falado? O que fazer, interrompe-se o palestrante ou deixa-o prosseguir... ? Mas, aí vem outro dilema, e se houver uma pergunta ou necessidade de sua resposta a  algo exatamente sobre aquela “coisa” incompreendida”?  Assim, o fator idioma já se constitui, por si, elemento causador de grande estresse e ansiedade. Para minimizar, ainda que muito pouco, quando o estrangeiro interlocutor era de outra nacionalidade que  não  francesa, visitante de outro país, eu pedia para falar em inglês e não em francês. Dupla vantagem para mim, pois além de eliminar a dificuldade de entender o capenga francês, carregado de sotaque alemão, indiano ou espanhol (Paris sempre foi cosmopolita), obrigava o interlocutor a falar em inglês, que não era seu idioma nativo, exigindo-lhe, naturalmente, mais esforço e lentidão nas palavras. Empate nas relações coloquiais! De qualquer forma tínhamos que dar plena atenção às palavras, pois na hora de se responder aos interlocutores, o não ou o sim, tínhamos que ser claros e evidentes, sem se enganar, pois não se podia dizer sim, quando na verdade teria que responder um não. Assim, os dias em Paris ou mesmo em Nancy, Montpellier, Dijon, Angers e Estrasburgo foram mais estressantes que relaxantes. Sobrecarga total de atividades profissionais e constantes corridas para aeroportos e estações de trem e metrô (e como se viaja de trem e metrô na França). A bem da verdade não posso deixar de dizer que em Estrasburgo houve uma parada relaxante a caminho da Alemanha, naquele histórico Expresso Oriente. Mas, até mesmo no trem, o cansaço mental era evidente, como pode-se ver nas fotos, pois trabalhou-se o dia todo e a viagem foi noturna.


No Expresso Oriente, de  Paris até Carlshue, na Alemanha, passando por Estrasburgo. Expressão de cansaço, seguindo-se momento de descontração em jantar, antes de se prosseguir para a Alemanha, com visitas a Hidelberg na mais antiga universidade do mundo e Rothenburg ob der Tauber, cidade medieval, cercada por muralhas.

 Também visitamos e percorremos o circuito de Hokenheim, onde Emerson Fitipaldi, Nelson Piquet, Ayrton Sena e Rubens Barrichello  venceram corridas de Fórmula 1, bem no meio da Floresta Negra, grande e inesperada surpresa (aquela Floresta que povoou nossas mentes infantis, com os contos dos irmãos Grimm). 

          Foto, 1- à esquerda o diretor da ESAL/UFLA, Juventino de Souza. À direita o autor (então bigodudo) e sua                          assistente na França. O diretor da Faculdade de Agronomia da UFRGS, Aino Jaques, aparece de costas. Participantes das visitas técnicas 

      Foto 2 –restaurante em Estrasburgo, com nosso partner do Governo Francês, Daniel Reitzer (ao centro) - (julho de 1988) 


Saúde mental

Interessante notar que além do estresse profissional, mesmo que houvesse muitas novidades e locais atraentes, a ausência dos entes queridos e do ambiente habitual sempre provocava a inevitável e dolorida saudade. Rubem Alves, escritor, poeta, filósofo e professor questionador da arte de educar, nos ensina que “é a saudade que torna encantadas as pessoas”, pois a saudade faz crescer o desejo e quando o desejo cresce, preparam-se os abraços. Foi por meio da leitura de suas obras que pude compreender que as frequentes viagens, de mais de duzentos dias ao ano, provocavam aquela saudade quase que doentia e que nunca havia parado para pensar que essa saudade era exclusivamente fruto da constante ausência da família, amigos e lugares habituais. Não compreendia, ainda, que aquela saudade era o encanto do amor. Mas, aquela danada da saudade era mesmo terrível a ponto de nocautear o menino em duas ocasiões de longas e demoradas viagens, levando-o a crises de ansiedade e angústias que beiraram a depressão nas distantes terras dos E.U.A e da França, quando lá estava em missões de trabalho. Descobri, agora, bem mais tarde, que eu era mesmo um adulto que tinha crianças morando dentro de mim e tinha medo da solidão dos finais de semana, encerrados em hotéis, sem ninguém para conversar e muito menos em seu idioma pátrio. Nunca relaxava a alma. Ademais, depois de dias de intensa rotina, com 100% de atenção,  o cérebro parecia liquefeito, sem a mínima vontade de saír do hotel, sequer para almoço ou jantar. Campo fértil para a depressão, pois tudo ficou em casa, levava apenas os sonhos profissionais. Agora, ainda vem a atleta a nos relembrar aquelas angústias e afirmar que  “há vida além do trabalho”! Bela lição que deveríamos ter aprendido antes. Não teria deixado, por semanas,  a família, sobretudo os filhos, crianças de sete a 12 anos, de férias em hotéis ou casas alugadas, frequentemente nas praias de Guarapari, Búzios, Ubatuba e as vezes no nordeste ou Santa Catarina, anos e anos seguidos na mesma rotina. Férias? Para que férias? Deixava-os lá, depois de ficar um ou dois dias apenas, voltando imediatamente ao trabalho em Brasília. Ah... férias são apenas para eles, a família. Quando quiser e puder eu tiro férias..., mas o tempo passou.  O trabalho sempre foi prioridade jamais quebrada, cuja norma não leva em conta a necessidade de descanso anual para o equilíbrio da saúde mental.

Mas, há vida além do trabalho..., ensinou-nos a atleta Biles. Porém, esse não era o costume. Nossa cultura era diferente! Fomos educados e diplomados apenas para o trabalho. Que pena, um workaholic, cego para a vida, candidato ao estresse, ao colapso mental. Faltou estudar as teses de Rubem Alves ou ouvir os conselhos da atleta Biles, ou quem sabe daquele técnico que, recentemente, abraçou afetuosamente e disse palavras de conforto e incentivo à atleta brasileira em Paris. Pois é, enquanto eu voava sozinho mundo afora, a família criava raízes. E lá distante, nas minhas demoradas andanças pelo mundo, me transformava em Pássaro Encantado, como nas metáforas de Rubem Alves. Chegava em casa carregado de presentes, diferentes, atraentes, trazidos de longe, como as penas reluzentes do pássaro encantado e ainda aguentava as piadas de amigos e vizinhos: os presentes, em quantidade, são proporcionais ao peso da consciência e a saudade por tanto tempo longe de casa...

            Por duas vezes, em locais distintos. o “Pássaro Encantado”, viajante que voltava carregado de presentes desabou antes que levantasse voo de volta para casa. Foi derrubado por essa estranha força que nos causa estresse, angústia e medo, beirando à depressão que leva ao colapso mental, ainda que momentâneo. A primeira vez, nos Estados Unidos e outra justamente em Paris, como já mencionado. A queda ao chão, forrado por grosso e aveludado tapete no apartamento em hotel parisiense, foi num fim de semana, na manhã de domingo. Os fins de semana, sozinho, eram terríveis. O banzo atacava duro e inevitavelmente vinha aquela  pergunta inicial: o que estou fazendo aqui a 10.000 km, por tanto tempo e sozinho, longe de casa e dos entes queridos? Com esse gatilho disparado e durante dois dias inteiros encerrado no hotel (sábado e domingo)...., a conclusão mais evidente e imediata,  só servia para aumentar a angústia: sim, quem está em casa, sem viajar rotineiramente, cria raízes,  vínculos indeléveis com os filhos que poderiam ser levados e buscados na escola, ou  acompanhá-los no lazer ou até mesmo às visitas médicas que, durante algum tempo foi frequente, devido às crises de asma de uma das filhas. Para piorar a dor da saudade, algumas vezes, o simples comunicar que iria viajar já desencadeava crise asmática na pequenina de seus cinco ou seis anos de idade. Quando retornava... passava a crise. Essa mesma filhinha, ainda aos cinco anos, de tanto passar os sábados e domingos sem o pai, e ao ver suas amiguinhas saindo para passear com o pai, espontaneamente pediu: “mãe, vamos comprar um pai para nós no supermercado?” Ao chegar daquela demorada viagem de cinco semanas e ao saber disso fiquei profundamente chocado, consternado mesmo e valeu ao pássaro viajante um mês de gaiola. Mais uma vez a fábula do pássaro encantado provou ser verdadeira.

A queda em Paris, unhas do inconsciente

            Na Paris que nocauteou o menino estava totalmente diferente daquela de hoje, enfeitada para as Olimpíadas. Fazia um frio de rachar naquele domingo de dezembro de 1986. O menino acordou muito cedo com pesadelo e crise de verdadeiro torpor com taquicardia a mil,  suando, ofegante com a respiração entrecortada. Verdadeiro pânico, a 11 mil quilômetros de distância de casa, sozinho e... comment appeler quelqu´un?... Totalmente desorientado ao acordar, sufocado, sem saber em que cidade estava ou até mesmo o layout do quarto de dormir com as localizações de luzes, móveis e banheiro, fatores agravantes do estresse pós-trabalho em locais estranhos à sua rotina doméstica. Tudo contribuía, a agenda apertada, excesso de trabalho, ambiente estranho, comida diferente, idioma, costumes e por aí vai, num quadro perfeito com todas as pré-condições para a explosão do stress em forma de pesadelo e pânico. Não bastasse isto, restavam ainda o tempo nublado, gelado de menos cinco graus, que contribuía para agravar a situação, fator que aliás já foi comprovado pela ciência. Mas nem precisa de ciência para se lamentar a falta do clima quente e tudo verdejante de Brasília em comparação ao de Paris naquele aziago mês de dezembro, pois a produção da serotonina, o hormônio da alegria, é muito mais intensa por aqui. Assim dizia JK em suas memórias de exílio em Paris. Longe da pátria e sem ânimo nem mesmo para sair para almoçar, atacou o pânico no menino. Uma ansiedade sem igual com sentimentos de medo e solidão.

 Conheci, dessa forma e pela primeira vez, a depressão. Ali, na ironicamente chamada de Cidade Luz, a olhar pela janela aquele cenário sombrio, embaçado, de casario e prédios antigos Bateu o desespero no menino cujo pânico aumentava a cada instante e com os olhos marejados perguntava para si mesmo o que estava fazendo ali, por que teria que passar por aquilo? Assombrado, suplicou então a Deus, implorando para que aquele pesadelo ao vivo passasse logo e que a paz em seu espírito condoído voltasse à normalidade. Coração disparado, respiração curta e ofegante, suor, tontura, seria um ataque de coração? A boca seca, uma onda de calor pelo corpo, e num gesto desesperado abriu a janela do quarto, empoeirada de asfalto preto por fora. O dia já corria, beiravam às 11 horas da manhã e o frio cortante do inverno parisiense acoitou-lhe o rosto provocando um choque térmico que pareceu cotar-lhe de vez a respiração e a vida, provocando-lhe a perda momentânea da consciência. Desmaio iminente com a alma ferida, em verdadeiro desespero, pânico, agonia que se prolongara por mais de seis horas seguidas. Mas, num esforço físico extraordinário e derradeiro, já com os joelhos dobrados, sem forças e prestes a desabar de vez, lançou mão do telefone, ali na cabeceira da cama, bem à altura de seus olhos a menos de meio metro no grosso e macio carpete que revestia o piso. Não existia ainda a telefonia celular, onde bastaria um único toque na tecla programada e a ligação de emergência se completaria, mesmo à longa distância. Com muita dificuldade, vista turva e movimentos desarticulados, conseguiu ligar para a casa, juntando os lampejos de raciocínio que ainda afloravam e deu conta de discar o zero, outro zero,  o 5, outra vez 5, o 6 e o 1, completando-se os códigos do país e da cidade e depois os oitos dígitos do número de casa, cuja memória sabia de cor, pois tantas e tantas vezes o discara em busca de notícias da família, dali mesmo, daquele aparelho telefônico à cabeceira. Que alívio, do outro lado do Atlântico, ao primeiro toque, a voz da esposa que percebendo a situação recitou o Salmo 23:

“O Senhor é o meu pastor; nada me faltará... Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum, porque Tu estás comigo...”.

 

             Instantaneamente a respiração voltou ao normal, o coração se acalmou e a tranquilidade se  restabeleceu e dormi profundamente por mais de seis horas. Foi a maior lição de minha vida. O menino  compreendeu, por meio desse triste e sofrido episódio, que as unhas do inconsciente, ocultas como as dos felinos, podem aflorar repentinamente e nos levar ao colapso psicológico, ferir-nos gravemente e até provocar a morte. Percebeu que a loucura passou perto, ou em outras palavras, no jargão médico, foi um ataque de ansiedade ou de pânico, que é mais comum do que se imagina. É preciso equilibrar o trabalho com o aconchego da família e dos entes queridos, anotei em meu diário. E agora, revejo os acontecimentos em Paris, daqueles choros de extremo estresse das atletas brasileiras e principalmente a lição de Simone Biles:  Há vida além da ginástica, (do trabalho). Aprendi mais esta lição, pois a primeira eu já sabia, por conta própria: o melhor da viagem é a volta para casa!

 

            Paris estressante? Não! Lógico que não, pois, os choros são o escapes da alma em qualquer ocasião e lugar. A Cidade Luz nos proporciona muitas alegrias. Bia Souza , Rebeca Andrade que o digam com suas medalhas de ouro. E as vezes nem precisamos ganhar medalha de ouro por algum feito. Tal qual Simone Biles superou as dificuldades e num gesto de grandiosidade da alma , prestou reverencia à Rebeca, campeã do pódio de ouro. Assim também devemos ser, gratos a Deus por tudo que nos concede nesta Vida. 


 A foto que rodou mundo, Rebeca Andrade , campeã   de ginástica olímpica sendo reverenciada por Simone Biles, à esquerda e Jordan Chiles, à direita – Paris 2024 
Foto- Gabriel Boys /AFP


Um bom dia para todos e que venham novas vitórias das equipes brasileiras nas Olimpíadas de Paris!

 

Brasília, 10 de agosto de 2024 

                                                Paulo das Lavras



 O pássaro encantado chegou com as penas reluzentes (presentes e mimos para as crianças). No aeroporto de Brasília, as filhas ao encontro do pássaro que
havia fugido da gaiola (março de 1982) e permaneceu longas semanas à trabalho no Panamá, Guatemala, Costa Rica e  México. Parece que o chapéu fez mais sucesso que as bonecas e outros mimos já no porta-malas, a julgar pela disputa de quem o usaria durante a foto... rsrs  
                 Rubem Alves tinha razão. A saudade prepara o abraço da chegada, a alegria do reencontro, 
até mesmo na disputa para posar com o “chapéu diferente do meu pai”. Momentos inesquecíveis, ver  a ansiedade das crianças do lado de fora da sala de desembarque, o abraço apertado, demorado, os olhinhos nas bagagens para decifrar os presentes, as penas bonitas, coloridas e reluzentes do pássaro encantado  que viajou e voltou, conforme descreve a metáfora de Rubem Alves). Intermináveis perguntas sobre a viagem..., enfim, o pássaro viajante retornou para o ninho e cumpriu-se o encanto.  


 
 Alegria do “Pássaro Encantado”, em viagem de férias (raridade), numa loja da Dior, em Paris, 
todo feliz, adquirindo penas reluzentes (mimo) para agradar na chegada em casa. 
Paris oferece alegrias  até mesmo para quem não viajou até lá. Ao contrário do que se poderia imaginar pelo título da crônica, Paris - Cidade Luz, irradia alegria e muita cultura! 
Foto do autor – Paris, dezembro 2013