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(em construção... aguarde)
Lar,
escrínio da vida..., assombrações e lobisomens
O
melhor da viagem é a volta para casa, diz o adágio. Desde a origem da
humanidade o lar sempre foi o lugar onde se busca o refúgio, o conforto físico
e da alma. Viagens são ótimas para o descanso, mas, depois de alguns dias,
sempre lidando com estranhos em aviões, taxis, hotéis, restaurantes e locais de
lazer, entretenimento e cultura, a gente para e pensa..., quero voltar para a
casa, quero desligar os sentidos em alerta para com ambientes estranhos. Quero
paz, relaxar no meu bunker. Ali, na sua
casa, se escondem e repousam todas as memórias da vida, no cofre da alma, nos
escaninhos da mente, no subconsciente de nossa memória, nosso baú de afetos. É
no aconchego do lar que encontramos a paz a tranquilidade, o relaxamento da
alma que se torna mais receptiva, mais amorosa e livre dos freios sociais a que
normalmente nos impomos em sociedade. Quem não se lembra das noites mal
iluminadas na fazenda, reunidos na cozinha do fogão a lenha que, além de
aquecer o ambiente, soltava crepitantes fagulhas e labaredas que iluminavam o
ambiente? Ali, à roda dos pais, tios, avós ou convidados (como se visitavam
entre si, os vizinhos e parentes! Estes, às vezes vinham de locais um pouco
mais distantes ficavam para o pouso, para alegria das crianças e iam-se no dia
seguinte).
Doces
lembranças à roda do fogão à lenha nas noites frias de inverno do sul de Minas.
Ouviam-se histórias de fadas a assombrações e lobisomens, saboreando pipoca,
broas de milho, pamonhas e biscoitos de polvilho (bolinhos de chuva, fritos, só
no café da tarde) e uma boa caneca de leite quente. Estas, as histórias de
assombrações e lobisomens tinham um papel educativo, preventivo e fundamental.
Tais terrores, os pavores das crianças, habitavam justamente as matas, rios e
lagoas. Mas por que somente naqueles locais? Simples, pois as crianças gozavam
de inteira liberdade de ir e vir por todo o território da fazenda. Nada as
impediam de explorar os ambientes. E aí morava o perigo, pois, num piscar de
olhos as curiosas crianças poderiam embrenhar-se mata adentro, entrar nas
lagoas e rios traiçoeiros. Perigo constante e a única maneira de detê-las era a
invenção dos fantasmas, lobisomens e todo tipo de bicho-papão que,
convenientemente, só habitavam aqueles perigosos lugares, especialmente à noite
quando saíam em busca de comida.
Nesse
clima de terror constante, nunca uma criança ousou pisar aqueles locais
sozinha, principalmente à noite. E as noites de antigamente eram o momento de
reunião da família, pois lá fora estava escuro e os “bichos” estavam à solta,
enquanto que nas cidades as narrativas que aterrorizavam as crianças eram a do
homem doido, o homem do saco que pegava e raptava os pequenos. A esse confinamento, no lar, os antigos
chamavam de escrínio da vida, o refúgio, a fortaleza, aonde a alma
relaxa e ficamos protegidos dos “bichos” que rondam nossa vida. Segundo a
psicologia, para as crianças a casa era inexpugnável, pois ali estavam seus
guardiães, o pai e a mãe. E esse “conceito” nos acompanha a vida inteira.
Foi
assim com o menino, medroso das matas, rios e lagoas. Neles só entrava
acompanhado de adultos. Não raras vezes a noite o surpreendia nas humildes
casas dos camaradas (empregado rurais, residente na fazenda). Voltar para a
casa, vencer os 100 ou 200 metros de distância, no escuro? Ah, nem pensar em
atravessar a pequena matinha e o córrego que passava pela mangueira de criação
de suínos. Ali estavam os dois maiores terrores das crianças das fazendas. A
mata e cursos d´água onde havia além de cobras, lontras, jacarés, escondiam os
lobisomens e outros fantasmas à espera de incautas crianças. Caiu a noite e não
havia outra alternativa a não ser as costas do camarada Vitor Coelho. Ao chegar à matinha que,
obrigatoriamente, tinha que ser atravessada, agarrávamos às suas costas com tal
intensidade que até parecia um filhote
de mico atarracado à mãe, pulando de galho em galho naquele veloz balé na copa
das árvores e que tanto admirávamos, pois, para nós, as crianças, pareciam um
único bicho com duas ou mais cabeças. Colocávamos toda a força que um menino de
seis anos poderia ter, apertando os braços ao redor do pescoço do “Vito” a
ponto de quase sufocá-lo. Isto provocava-lhe reclamações que soavam mais
ameaçadoras (como eram cruéis os adultos na educação das crianças do anos de
1950): se você continuar me enforcando vou te largar aqui na mata....
Paradoxalmente, apertávamos ainda mais o pescoço do pobre Vito, rapaz de uns 20
anos que nas horas de folga era o nosso companheiro, juntamente com seu irmão
Tião Coelho, nas brincadeiras infantis, cavalgadas, natação nos ribeirões e
lagoas e, principalmente, na fabricação de brinquedos próprios como balanços
(gangorras) em árvores e até mesmo a construção mini-rodas d’água que
movimentavam moinhos criados por nós mesmos, movimentados por polias e correias
de embira de bananeira. Quanta criatividade, pura e simples engenhosidade.
Pois
bem, todo esse preâmbulo foi apenas para se situar uma questão hoje enfrentada
em todo o país, a quarentena social imposta pela pandemia do coronavírus. Assim
como a escuridão de antigamente proporcionava momentos de reunião no aconchego
do lar, hoje, o apagão das cidades provocado pelo coronavírus está exercendo o
mesmo papel: fazer-nos voltar para o escrínio da vida, a casa, o lar, refúgio,
fortaleza para a nossa alma. Que essa
quarentena em casa nos sirva para a reflexão sobre a corrida e egoísta vida que
temos levado. Que aquela escuridão das noites de antigamente, que nos levava a
nos reunir em torno dos mais velhos em busca das histórias e do saber, tenha
hoje o mesmo papel, a mesma função social, pois o coronavírus ao levar-nos para
o isolamento, recolhidos em casa, pode funcional como um farol, servindo de luz
para o nosso aprimoramento.
Brasília,
22 de março de 2020
Paulo
das Lavras.


