Desembarquei do
trem maria-fumaça na estação Costa Pinto na velha cidade natal, Lavras. Lá
estavam, a me esperar, minha mãe, meu pai e todos os seis irmãos. Abraçaram-me,
choraram de alegria depois de tanto tempo fora de casa, num distante internato a
dezesseis horas de trem. Caminhamos a pé, carregando a mala de viagem, até a
nossa casa, a casa de nossa infância a apenas 300 metros da estação. Como foi
boa e gratificante aquela pequena caminhada, com os vizinhos a acenar e
cumprimentar o menino que chegava. Como é bom voltar à terra querida, caminhar
pela rua de terra, na verdade a velha estrada de rodagem que se iniciava na
estação e ligava a zona rural da Serrinha, prosseguindo até o Farias e dali
para Três Corações, à esquerda ou a Carmo da Cachoeira à direita. E o menino já
a conhecia, inteirinha, pois aos cinco
anos de idade foi levado à cidade de Varginha, no consultório do Dr Oswaldo Valladão,
para tratamento de um grave acidente ocular que o fez perder totalmente a visão
do olho direito. Aquela rua, melhor a estrada, tinha apenas três casas em seus
primeiros cem metros. A casa do Alfredão, cujo pai, Sr. Antônio Scheid Lopes,
era o chefe da estação, seguindo-se o portão da Cerâmica N.S. Aparecida, do Sr
Custódio Alvarenga e por último a chácara do Sr Nhonhô Gouveia, que chegava até
o segundo pontilhão, chamado de mata-burro. Este fazia divisa com nossa
chácara, a Fazendinha, de 20 ha, hoje Vila Cruzeiro do Sul. Passado o
mata-burro, caminhava-se por uns duzentos metros sob a sombra de mangueiras
enfileiradas e lá estava a doce casa de minha infância. Como é bom chegar,
rever a família e vizinhos, quase todos à porta de suas casas no horário da
chegada do trem. Receber o afeto de
todos era como sentir-se “protegido”, seguro em meio a todas as pessoas
queridas. Verdadeiro bálsamo
para a alma do menino de apenas 12 anos, que passara um ano no distante Seminário
de Itaúna, naquele ano de 1958.
Como é bom ser bem
recebido assim, caminhar abraçado aos pais e irmãos que se revezavam no toque,
nas mãos dadas e sentir o cheiro das mangueiras da terra natal e se extasiar
com a belíssima e inteira visão da imponente serra da Bocaina um pouco distante e que emoldurava aquele cenário tão familiar. A velha e grande casa estava lá, do mesmo jeito, pintada de branco com as
cimalhas na cor azul bem forte, destacando as caprichadas molduras por sobre
portas e as numerosas janelas, tudo em belo estilo português, tal qual tinha visto na
zona rural de Lisboa no caminho de Sintra. Como é bom rever e retornar ao doce lar.
Foi então que
acordei, sobressaltado, confuso. Parecia que meu espírito saía de meu corpo e
naquele estado de sono hipnagógico, quando a mente está destravada e as imagens
do subconsciente são tão nítidas e vivas a ponto de sugerir a realidade. Como
poderiam estar juntas no mesmo instante as imagens da infância, dos pais já
falecidos e ainda as do longínquo Portugal que só conheci depois de adulto?
Percebi que estava apenas sonhando, sufocado e com uma dor danada no peito, a
dor física da apneia, agravada pela sequela cirúrgica de uma renitente pleurite
aos dois anos de idade e que ainda hoje, depois de setenta anos, ataca nas
noites frias de inverno. Mas, pior que a dor física naquele momento hipnagógico
foi a dor da saudade, pois comecei a “ver” a casa mais antiga ainda, da fazenda
com o belo ipê à janela do quarto onde nasci, reluzindo o amarelo de suas flores.
Dor no peito, saudade matadeira, era isso, não tinha jeito..., pois como disse
o poeta Caio Abreu: “Guardo as memórias que me trazem riso, as pessoas que
tocaram a minha alma e que, de alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo
também a infância toda tingida de giz”. Tinha jeito de arco-íris a minha”.
Compreendi a mensagem do
subconsciente que grava as coisas doces da vida e os desejos ocultos da mente.
As sequelas cirúrgicas ainda terão alguns invernos a mais pela frente e nada de
pessimismos. Mas, mesmo estando, há tanto tempo, a 1.000 km de distância quero,
quando chegar o dia de minha finitude, repousar para
sempre debaixo daquela janela, à sombra dos ipês amarelos que a emolduram. E
que as pessoas queridas daquela família de então e que ainda hoje lá residem,
possam me receber com o mesmo afeto, carinho e amor mostrados em sonho. E se as
lágrimas não puderem ser contidas, que sejam de alegria, sabendo que ali estar,
no solo materno, foi meu último desejo, de puro amor. E desta vez, ainda que eu não sinta mais o
abraço e seja apenas cinza cremada, deitem-me para sempre à sombra daquele belo
ipê amarelo ao lado da janela do quarto onde nasci. Doces reminiscências da infância.
Doce repouso à sombra dos ipês amarelos de minha terra natal. Gratidão pela vida feliz. Ela nada me deve. Amém!
Brasília, 28 de abril de 2018
Paulo das Lavras

A janela do quarto
onde nasci. Fazenda Retiro dos Ipês - Lavras
Foto: Dilma de
Abreu
Estação Costa Pinto, em Lavras.
Ali desembarcou o menino
de 12 anos, ao reencontro da
família
Foto: acervo de Renato Libeck
A família de sete irmãos, o
menino com 11 anos.
Dois anos depois foram reencontrá-lo na Estação Costa Pinto
O menino aos 11 anos, pouco antes de ir para o internato no distante Seminário.
Ali permaneceu apenas um ano. A saudade apertou. Sonhava todos os dias com a casa
onde vivia com a família. Voltou para casa sob grande emoção e tão grande que, 60 anos depois, sim sessenta anos, teve uma sonho maravilhoso retratando a alegria da volta.
O menino de 12
anos no Seminário de Itaúna. Semblante triste, sorriso forçado.
Distante de
casa, dos entes queridos, nada tinha graça. Voltou para casa no final do ano.
A emoção do
retorno foi tão grande e marcante, no aconchego da família, que ainda hoje,
mais de 70 anos depois, seu subconsciente
relembra o episódio em sonhos oníricos,
coloridos de
pura alegria e amor à família.
Foto: Itaúna-MG , março de 1958
Cidade de Lavras, década de 1950.
Trezentos metros adiante da estação estava a casa do menino.
Percurso assinalado em
azul, pela estrada que ligava Lavras, à Serrinha e Três Corações,
passando em frente à casa grande da fazendinha, onde residia a família.
Incrível realidade do sonho,
mostrando aquele antigo caminho que contornava
a matinha da fazendinha, local de
aventuras dos meninos e amiguinhos da região.
Foto: acervo de Renato Libeck.
O segundo portão do caminho, ao
lado da casa do chefe da estação era a Cerâmica.
Sr Custódio e seu filho, Tiãozinho Alvarenga
(cunhado de minha mãe) também
eram comerciantes de fumo de rolo. No meio do
ano era época de colheita e
havia mutirões para “destalar” as
folhas verdes recém-secadas á sombra.
Tarefa para todos, inclusive para
os meninos com direito a receber pagamento.
Foto: acervo de Renato Libeck
Logo, logo, a casa grande da
fazendinha era avistada, tendo ao fundo
a imponente serra da Bocaina. O
ipê amarelo à esquerda e casa anexa,
deram lugar à rua Progresso, justamente na
esquina com
a rua Lazaro de Azevedo Melo. A casa ainda
hoje se encontra preservada
Fazenda Retiro dos
Ipês em foto de agosto de 2014. Casa de um século de existência
Sob a sombra de seus ipês, ao lado da janela
do quarto onde nasci,
a família me
receberá novamente e ali as cinzas repousarão
para sempre, junto
ao cordão umbilical que ali também adormece.
O pó retornará ao
pó, diz a Bíblia.
Foto: Dilma de
Abreu