domingo, 30 de novembro de 2025

A matemática e minha resiliência


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Livro de matemática dos anos 60, PUC-PR. 
Tijolaço e raridade em Minas Gerais 
Foto: internet


Muitos amigos perguntam se tenho alguma explicação para estar no mercado de trabalho profissional e universitário por tanto tempo. Estou há 65 anos ensinando, pois desde os 15 comecei a ministrar aulas particulares de matemática para candidatos  ao Exame de Admissão. Sim, nos anos 60, o aluno ao terminar o curso primário (Fundamental I, assim chamado, hoje) e desejasse continuar os estudos no nível seguinte, o antigo Ginásio e hoje chamado de Fundamental II, teria que se submeter a uma espécie de exame vestibular, chamado de Exame de Admissão ao Ginásio. Era muito puxado esse exame, compreendendo provas de Português, Matemática, Geografia e História. Havia dois diferentes cursos de Admissão, o primeiro, com um ano de duração, destinava-se aos alunos de baixo desempenho nas notas do curso primário. O segundo, era compacto e ministrado nos meses de férias, de janeiro e fevereiro. Além disso, era comum os pais pagarem professores particulares, durante o último ano do curso primário, para reforço e preparação do aluno, que contava com apenas 10 ou 11 anos de idade e sem muito domínio de toda a matéria aprendida nos quatro anos do curso fundamental. Os exames ocorriam nos meses de dezembro e fins de fevereiro, de modo que em 1º de março, o aluno já poderia ingressar no curso ginasial.

Não era comum, naquela época, seguir a carreira de estudante, até porque não havia, nas pequenas cidades, o ensino público gratuito. Todos os colégios existentes eram particulares, pagos. Em Lavras havia quatro, o famoso Instituto Gammon, de missionários presbiterianos, norte americanos, fundado no longínquo ano de 1893, recebia apenas rapazes e sua filial,  o Colégio Carlota Kemper, era destinado somente às moças, separação rígida, respeitada até os anos de  1960 do século passado.  Em 1900, a Congregação das Irmãs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade, de  Caeté-MG, tratou de fundar em Lavras o Colégio N.S. de Lourdes, católico, que deveria concorrer com os presbiterianos. Este era exclusivamente para moças e somente  42 anos mais tarde surgiu o quarto educandário, o Colégio N.S. Aparecida (1942-85), de padres católicos e destinado a receber exclusivamente os rapazes. A sociedade lavrense se uniu e reuniu cidadãos dispostos colaborar nesse empreendimento educacional. Meu avô foi um dos fundadores desse colégio, que acabou encerrando suas atividades em 1985 e cedeu suas instalações ao Centro Universitário UniLavras. Pois bem, devido às dificuldades de se pagar mensalidades aos colégios, a maioria dos jovens encerrava sua carreira de estudante ali mesmo no curso primário. Ingressavam, logo em seguida, aos 12 ou 14 anos, no mercado de trabalho sem nenhum grau educacional complementar. Por isso, mais tarde, já em condições de pagar o colégio, alguns poucos retornavam aos estudos. Mas, havia um porém..., o difícil exame de admissão ao ginásio. E foi nesse nicho que o menino de apenas 15 anos iniciou sua carreira de professor, para alunos candidatos ao ingresso no colégio, antigo ginásio. E a maioria dos candidatos era de adultos, entre 20 e 30 anos de idade, já no mercado de trabalho e que precisavam de um diploma de curso secundário para galgar promoções.

Matemática era a minha matéria preferida, ensinava álgebra com frações, equações de segundo grau, regra de Bhaskara e a geometria já em outros níveis e neste caso, prevaleciam os alunos-colegas de turma, que tinham dificuldades no desenvolvimento das matérias de nível superior. Na faculdade ainda se acresciam às aulas particulares aos colegas, o assessoramento na elaboração de trabalhos de conclusão de curso, especialmente em topografia, irrigação e drenagem. Livros e mais livros, compunham minha estante, com centenas de “problemas” para exercícios resolutivos, às vezes difíceis, mas, quando resolvidos, nunca mais eram esquecidos. Aliás, os livros, fossem de literatura, idiomas, matemática, física, química, biologia, engenharia, todos, eram rabiscados, grifados com tintas de diferentes cores, destacando-se os pontos chaves da matéria. Comentários eram escritos à mão ou colados às páginas em pequenas tiras, concordando ou discordando do enunciado. Nunca dei atenção à recomendação de professores do curso primário, que recomendavam cuidado especial em não rabiscar os livros, talvez porque eram livros pertencentes à escola, ou ainda se cultivava o hábito de se repassar os livros aos irmãos mais novos. Em todos os meus livros havia sempre as marcas e a certeza de que a matéria foi aprendida e absorvida. Nunca empresto meus livros. Se necessário, compro um igual e ofereço ao amigo que solicitou.  Me lembro, por exemplo,  que na prova oral do vestibular de Agronomia (sim, naquele tempo o vestibular de nível superior, incluía prova oral, aplicada no quadro negro, diante de uma banca de examinadores), consegui resolver um problema dificílimo, obtendo a nota dez em pleno exame vestibular, ao vivo e sob o olhar um tanto quanto admirado da banca examinadora, composta pelos professores Wilson Ferreira, Márcio de Castro Soares e Weber de Almeida. Nota máxima, sem pestanejar, mas contamos com um pouco de sorte, pois um professor havia me emprestado um Manual de Matemática do autor Bezerra, da PUC-PR, chamado de tijolão, tal era o seu volume de páginas e complexidade dos exercícios. Nele havia um problema semelhante que, dias antes me propusera a resolver.

Minha experiência, como professor de alunos aspirantes ao curso de segundo grau, valeu, pois a prática constante da matemática  e o gosto pelos estudos, aceitando os desafios de problemas/exercícios difíceis, moldam o raciocínio lógico que sempre busca soluções racionais. Nunca deixava um problema/exercício sem resolução. Se empacava..., dia seguinte lá estava com os professores do colégio, especialmente os queridos Nelson Wilibaldo Werlang, Valdir Azevedo, ambos de Matemática, Russaulière Mattos, de Física e Química,  Canísio Ignácio Lunkes, de Geografia. Inglês e Francês e ainda Pe. Elói Dorvalino Kock, de Português, mestres excepcionais, que sempre nos dedicavam atenção especial e por que não dizer, nos inspiraram na carreira do magistério. Também aí, no aprendizado a resiliência do menino estava sempre presente. Nunca desistia de encontrar a solução do problema/exercício.

Mas, este foi apenas o começo, pois ao longo de minha trajetória, enfrentei desafios de toda natureza, pois sofremos críticas de colegas professores, por adotarmos métodos inovadores na formação do aluno, além de lidar com a  dificuldade natural dos estudantes quase sempre mal-informados, sem orientação alguma no campo da metodologia do aprendizado, da busca do conhecimento e do saber. Tudo isso exigia e ainda exige, muita força interior, paciência e capacidade de adaptação. Por isso, sempre respondo à pergunta dos amigos, a qual inicia e abre esta crônica:  

... simplesmente, tenho uma enorme energia. Desde menino tive mente agitada, desinquieta, curiosa, observadora ao extremo, hiper focada, inquiridora, e não se contentava nunca em ficar sem a resposta certa. Continuo, ainda hoje, do mesmo jeito, formulando perguntas e isto me leva a manter-me no mercado de trabalho.

Esta situação acontecia em tudo, não apenas nas matérias e disciplinas colegiais e da faculdade. O menino queria explicação de tudo, de coisas inusitadas, como por que as aves de rapina curvam as pontas e somente as pontas das asas, ao darem um voo em mergulho, ao tempo em que arrebitam a cauda. Por que isso? Estabilidade  no voo? Manter a direção certa sobre o alvo no chão ou no ar? Velocidade, ou ligeireza com dizíamos, as crianças? Caramba, essa pergunta martelou-me a mente boa parte da vida, por exatos 60 anos e toda vez que via uma ave em voo de ataque, vinham-me à mente aquelas perguntas formuladas aos oito ou dez anos de idade. Nenhum colega piloto de ultraleve, ou de grandes jatos e nem mesmos oficiais engenheiros aeronáuticos me explicavam. A resposta só encontrei, muitos anos depois, quando a EMBRAER, lançou, em 2014, o avião a jato EMB- 175, dotado de winglets, aquela ponta da asa, arrebitada para cima, tal qual fazem as aves de rapina. E qual a função dessa ponta terminal da asa virada para cima, quase em 90º?  Ensaios em túneis de ventos demonstraram que servem para diminuir a força de arrasto do ar, economizando combustível, aumentando a velocidade e propiciando maior estabilidade e correção no voo. E pensar que aves de rapina já faziam isto desde que o mundo é mundo e que o menino observava isto já em 1954 e os engenheiros aeronáuticos só descobriram isto em 2014, sessenta anos depois? Foi preciso, ainda, esperar 108 anos depois  da descoberta do avião para se chegar a esse resultado, que hoje é usado em todos os modernos aviões a jato. Maravilha que a mente inquieta, agitado do menino martelou e hibernou por seis décadas e cujo resultado se escondia nas leis naturais da Cinemática e Dinâmica, da Física.

Ah..., retrucavam os amigos, “energia’? Todos têm, crianças nascem e crescem assim, cheias de energia,  mas à medida que envelhecemos vamos perdendo energia, diminui a vontade de se movimentar, nos acomodamos, diziam-me. Não satisfeitos emendavam,  e como explicar esse seu “entusiasmo”, ainda hoje, aos 80?  Na verdade não foi isto que aconteceu, pois ainda me sinto aos 30, ou 40 e tenho forte motivos, vejam os três principais. O primeiro é inato. Nasci assim, fui criado assim. Logo aos dois anos de idade passei, literalmente, nove meses no colo de familiares, convalescendo de delicada cirurgia torácica. Vinte quatro horas ao dia sob cuidado pela família e agregados. Isto fez toda a diferença em meu comportamento, segundo os especialistas. A grande vantagem foi que naquela idade é que se desenvolvem os neurônios da criança. Fui estimulado ao extremo, pois tinham que me manter distraído para ignorar o incômodo de enorme sonda, um dreno nas costas que sequer podia ser tocado. Assim, desenvolvi o senso da curiosidade, do aprendizado, pois tudo que perguntava, obtinha pronta resposta do adulto cuidador. E mais, eram respostas amorosas, carinhosas, dirigidas ao menino frágil que teve a vida por um fio e ali estava a convalescer obra e graça da misericórdia de Deus. As respostas eram,  quase sempre, seguidas de histórias e contos que ilustravam a situação, provocando a imaginação do garoto. Me lembro de meu pai com sua canção de ninar (ainda sei a letra e ele a confirmou pouco antes de nos deixar, aos 101 anos de idade), passeando, à notinha entre a sala e o quarto, com o menino de bruços no seu ombro e agarrado ao pescoço, ouvindo o doce zoar de sua canção, seguindo-se leves embalos que colocavam o menino junto aos anjos do amor embarcando-o no sono profundo. A confirmação de meu pai, aos 101 anos, dessa maravilhosa prova de amor, foi a sensação mais sublime que tive e pude , então, reconhecer o quanto o amor e dedicação dos pais, da família e agregados, fazem diferença na vida e desenvolvimento intelectual da criança.

A ciência está aí e a todo momento as pesquisas revelam essa grande verdade e muito provavelmente minha pergunta sobre a ponta  da asa encurvada e arrebitada nos velozes voos de urubus e gaviões,  na captura de presas, deve ter surgido nessa época. Psicólogos e outros especialistas afirmam que, nessa faixa etária, os estímulos à criança fazem toda a diferença, aumentado o QI, pois além de ampliar o estoque de neurônios, formam as sinapses, agrupando e sistematizando a  hierarquia  mental. Dizem que a matemática é boa para a cabeça. Sim, desenvolve o raciocínio lógico. Mas de que adianta elevar o raciocínio, aumentar os neurônicos, se não houver resiliência? Isto se aprende, se adquire com assistência na infância. O carinho, o amor e a atenção na primeira infância é fundamental. A criança adquire autoconfiança, pois sabe que tudo que perguntar terá resposta correta e estímulo e buscar soluções. Adultos conscientes sabem que não há pergunta burra e sim resposta idiota. A criança precisa ser estimulada a desenvolver a mente, treinar habilidades, encarar pequenos desafios (lúdicos), mostrando a elas as vantagens de se conquistar/descobrir algo. Sendo assim educada, a criança terá maiores chances de crescer com mais tranquilidade, na certeza de que tudo se resolve com amor e atenção, o que lhe dá autoconfiança,  otimismo (orientação positiva para o futuro) e aceitação positiva da mudança. Ela tem certeza de que não será criticada por qualquer que seja a pergunta que ele venha a fazer. E isto desinibe, ou melhor, desenvolve o senso de curiosidade e a persistência em busca das reposta para encontrar soluções criativas e não desistir dos meus objetivos. Ou..., simplesmente resiliência.

 Ah..., a matemática ajuda , sim, e muito! E hoje, nem mesmo ensino a matemática, mas ministro palestras neste Brasilzão inteiro, sobre Engenharia e Agronomia, nas universidades, conselhos profissionais, associações de classe, centros-acadêmicos, sempre destinadas aos profissionais e sobretudo aos jovens. Quer coisa melhor do que falar, incentivar jovens cheios de vida, prontos para enfrentar o mercado de trabalho? A vida é aquilo que dela fazemos. Vivo em meio aos jovens, sinto neles a vontade de vencer,  a energia pulsante. Só me resta entrar nessa ..., de 30 anos no máximo e incentivá-los..., que sejam inquiridores e resilientes, sempre!!

 

Brasília, 30/11/2025

Paulo  das Lavras


A busca incansável pela resolução de problemas/exercícios 
em qualquer livro de matemática, ajudou o menino a 
desenvolver a lógica e a resiliência. 


 Prof. Russaulière Mattos, meu primeiro tutor, que a mim confiou a 
monitoria  de sua disciplina – Física, no curso científico 


 
Diretores do UniLavras em visita ao MEC, instituição que ocupou as instalações do   
Colégio Aparecida,  onde estudei, e lá contei, também,  com a tutoria do saudoso Prof. 
 Canísio Lunkes, genitor da Reitora Marília Lunkes, que aparece na foto  


 Com o colega Prof Laughlin, na Michigan State University 


 Com colegas professores da Universidade de Montpellier- França








 





domingo, 19 de outubro de 2025

Dia do Professor

 

 
Foto:  cortesia IStock


Ser Professor é ser um educador. E o que é um educador? Educador é aquele que é um facilitador do aprendizado. É quem inspira o aluno a buscar o conhecimento. É quem forma o cidadão ético, preparado para o futuro. Você foi assim preparado? Você é um bom “professor”? O que lhe inspirou e foi determinante para a escolha da carreira de professor?

Nesta semana, mais precisamente no dia 15  de Outubro, celebramos o Dia do Professor. As redes sociais e os jornais nos inundaram com carinhosas mensagens.  Agradeci a todas, como sempre faço, pois é uma maneira de se conservar os vínculos com os ex-alunos e isto, a gratidão dos alunos, é o maior tesouro de um professor. É a grande recompensa da vida, o reconhecimento por algo de bom que você fez e que deixou marcas. Marcas de puro amor que mesmo depois de 50 anos ou mais, os ex-alunos ainda as lembram.

Conta-se uma linda história de um ex-aluno que reencontrou seu velho mestre muito tempo depois e perguntou-lhe: lembra-se de mim, professor? Não, respondeu o mestre. Pois eu me tornei professor e a minha inspiração foi a sua atitude em relação a mim, seu aluno. E o que foi que fiz de tão especial que até lhe serviu de exemplo para também seguir essa carreira? O senhor não se lembra? Eu sou aquele aluno que um dia, em sua sala de aula, roubou o relógio luxuoso de um colega. Não, não me lembro, repetiu o velho professor. Pois bem, o senhor, ao receber a reclamação, trancou a porta da sala e disse: Todo mundo de pé, de olhos fechados, mãos sobre a própria escrivaninha, vou revistar os bolsos de cada um. Não se mexam. O senhor terminou a revista, e anunciou que já tinha encontrado o relógio e o devolveu ao seu dono. O senhor não se lembra mesmo disso, professor? Ah..., me lembro do caso, mas não do aluno que roubou, porque eu também estava de olhos fechados... Pois então, professor, aquela sua atitude, incluindo o fato de que nunca comentou com ninguém e nem mesmo me repreendeu, salvou minha vida, minha reputação, pois caso contrário eu seria mais um marginal, estigmatizado pelos colegas e quiçá por todo o colégio. Foi um ato impensado de um menino deslumbrado com a coisa alheia. Sua atitude foi a maior lição que recebi e prometi a mim mesmo que seria um professor como o senhor, para formar cidadãos, encaminhá-los na vida. Aquele meu ato impensado, pueril,  poderia ter arruinado a minha vida para sempre.  O senhor a salvou. Nunca me esqueci disso.

Antes de ser professor, a gente é aluno. Aliás, aluno a gente é sempre. Não se passa um dia sequer que a gente não aprenda algo. Aquele jovem professor da história acima, se tornou um professor porque foi aluno e se inspirou nas qualidades morais daquele  sábio mestre que cuidava de formar cidadãos para a vida. Também eu tive bons professores nos quais me inspirei. Mas o que mais me motivou foi um péssimo professor. Sim, péssimo, sem empatia e maldoso. Menino de 12 anos, da primeira série ginasial, assistia uma aula de Ciências Naturais. Encantei-me com a figura colorida, de linda pintura ou foto de um cachorro em esqueleto. Sua figura, estampada em grande quadro mural dependurado no quadro negro, mostrava apenas o esqueleto, o crâneo, a coluna vertebral, as costelas e os membros dianteiros e traseiros. Parecia um cachorro vivo, tal a sua disposição na pintura. Perfeito. Só que, ao descrever o conjunto de ossos do esqueleto, o professor mencionou as partes e a “coluna vertebral” . Ponto final. Curioso que era, conhecedor dos cães e outros animais domésticos vertebrados da fazenda, perguntei inocentemente: professor, e o rabo? A cauda  (em linguagem mais adequada) faz parte da coluna vertebral ou tem outro nome na anatomia do animal? Esta era a dúvida do menino. Ou você é burro ou quer bagunçar a aula e neste caso vai para fora da sala. Assim respondeu o irado professor, caminhando ameaçadoramente para meu lado, assentado, sempre, na primeira fileira das carteiras da sala de aula. O professor, todo vermelho, raivoso e ainda com aquela varinha de apontar no quadro negro, balançando-a ameaçadoramente, continuou com seu discurso contra o aluno “atrevido”. Restou-me apenas abaixar a cabeça  sobre a carteira escolar e chorar, de vergonha, humilhado perante toda a classe. Nunca mais me esqueci daquele terrível e dramático episódio em sala de aula. Uma curiosidade sobre o saber, se a cauda do cão fazia ou não parte da coluna vertebral e se assim poderia ser identificada, transformou-se em pornografia, na cabeça de um professor, que muitos achavam que tinha problemas inconfessáveis e talvez por isso tivesse a necessidade de negar sua condição. Situação incompreensível  para um menino de então, de uma sociedade conservadora que jamais discutia tais questões com os filhos. Tabu, tanto em casa como na escola.

Mas, a marca indelével ficou e pouco mais tarde foi transformada em desejo de ser professor..., diferente daquele de mente doentia e que não tinha empatia alguma pelos alunos ou pela Educação que deveria buscar a formação moral e ética dos jovens. Prometi a mim mesmo que seria um professor diferente, que buscaria entender os anseios do aluno e ajudá-lo a aprender, compreender a lógica das coisas e a buscar o conhecimento para que se transformasse num cidadão preparado para a vida. Aprender a aprender, sempre, e com empatia e respeito, ganhando, conquistando a confiança do aluno. Aprendi também, na Filosofia, que não existe pergunta "burra" e sim resposta idiota. Com certeza, aquela resposta idiota e a humilhação recebida, moldaram minha vontade de um dia ser um professor, diferente, com didática e métodos adequados para o ensino-aprendizagem. Durante a minha vida de professor e ainda como palestrante, sempre  vem à mente aquela resposta idiota de um professor despreparado para o magistério. Por isso, quando diretor de Ensino, no MEC, sempre financiamos cursos de atualização pedagógica para docentes do ensino superior em todas as universidades brasileiras.

Assim fui, pratiquei a arte de ensinar desde os 15 anos, quando dava aulas particulares de matemática para um senhor de 30 anos, trabalhador da Rede Mineira de Viação e que queria prestar o exame de admissão (exame vestibular) para ser aceito nos colégios. Sim, até os colégios exigiam tal exame de proficiência. Durante o curso de 2º grau fui monitor de Química e de Fitopatologia e Topografia na faculdade. Meu primeiro contrato de professor surgiu um ano após a formatura: Construções e Meio Ambiente, na ESAL/UFLA. Mais tarde, ainda no Ministério da Educação, em Brasília, acumulei a função de professor de Legislação e Ética para Engenheiros numa faculdade particular. Ainda hoje, orgulhosamente, ministro palestras em universidades, conselhos profissionais da engenharia e agronomia e órgãos públicos e privados em todo o país. Quando se abraça a profissão com amor, nunca se deixa de ser um profissional ético, que  respeita os alunos. Melhor que tudo é encontrar um ex-aluno e dele receber um abraço, relembrando seus dias de aula e o sucesso que ele, o ex-aluno, alcançou. Esta é uma das maiores recompensas que um mestre pode receber!

Orgulho de ser Professor. Meu abraço a todos os professores.

 

Brasília,18 de outubro de 2025

 Paulo das Lavras.


Com o colega Prof Charles Laughlin, defronte meu escritório na Michigan State University -1978


 
Paraninfando no UNILAVRAS - 1987 


 Com professores de Montpellier- França  - 1987 


 
Encontro Pedagógico/Redesenho Curricular – UniFor-CE 
Com Prof. Lúcia/AlmeidaFilho/ Sandra -  2012


 
Com alunos no Museu de Artes e Ofícios - Paris- 2013


 Com professores da UFLA - 2015 , celebrando 40 anos da PG 


 
Recebendo diretores do UniLavras no MEC - 2016 


 Palestrando na UFLA- 50 anos Eng. Agrícola – 04/09/2025
















 



sábado, 11 de outubro de 2025

Criança

 
O menino aos 10 anos, primeira comunhão, 
 um costume dos anos de 1950/60

 


 

A alma é movida à saudade, disse Rubem Alves. Para o poeta a alma não tem o menor interesse no futuro. "A saudade é uma coisa que fica andando pelo tempo passado à procura dos pedaços de nós mesmos que se perderam", completou o ilustre filósofo. Perderam? Será? Que nada, digo eu! O passado, a Criança que fomos, está bem aqui, nos escaninhos da alma. Criança amada, adulto feliz!

E como é bom ser criança! É tão bom que nós os pais e avós, desejamos que nossos filhos ou netos jamais crescessem e fossem eternas crianças. Elas, as crianças, passam o dia se divertindo, criando mundos mágicos sem as preocupações e aflições dos adultos e à noite, se aninham em suas camas e esperam que os pais ou  avós, venham lhe contar histórias, ganhar um beijo e o boa noite. Dormem o somo dos justos. Desconheço um pai que ao ver essa cena, ali ao lado da criança, piscando miudinho, sorrindo e caindo no sono,  não tenha derramado uma lágrima de amor e contentamento, agradecendo a Deus pela dádiva de ser o guardião do filho, aquela lama pura, inocente que sabe que tem a proteção dos pais. Criança é feliz, brinca, canta, grita o dia inteiro, numa algazarra que alegra o ambiente. Quem nunca passou defronte uma escola, na hora do recreio ? Quem nunca viu e ouviu isto num parquinho?

Ah... crianças são dádivas de Deus! Prolongam nossos dias na Terra. Cuidemos delas com muito carinho. Criança amada, adulto feliz!

Brasília,  12 de outubro de 2025

 

Paulo das Lavras



P.S - é fácil voltar a ser criança. Veja, num instante cheguei là:   

 http://contosdaslavras.blogspot.com.br/2016/07/um-seminario-na-decada-de-1950-parte-i.html 





 

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Paolinelli..., um sanfoneiro no MEC

 
Paolinelli, à direita, com o Chefe do Departamento, Carlos Eduardo Volpato e este autor, 
 comemorando o Cinquentenário do Departamento de Engenharia Rural, da UFLA, que 
ele fundou em 1966, quando ainda era professor de Mecanização e Máquinas  Agrícolas. 
Foto, do autor – UFLA, maio de 2016


           Uma missão de empresários percorria imensa plantação de soja na região do cerrado do norte de Minas. Alguém, maravilhado com a quele mar verde, disse: “... e pensar que essa maravilha verde, que revolucionou o cerrado, teve como maestro o então ministro Alysson Paolinelli...”. Este, que estava no banco de trás do veículo, reagiu pronta e humildemente: “Nada disso, eu fui apenas o sanfoneiro dessa orquestra”. O jornalista Silvestre Gorgulho conta-nos essa história, em artigo de jornal de grande circulação em Brasília, demonstrando o caráter humilde e de extrema competência daquela figura que marcou o desenvolvimento tecnológico da agricultura nacional, especialmente na conquista do cerrado, tornando seu solo produtivo, triplicando a produção nacional de grãos com aproveitamento  e melhoria dos solos do cerrado, sem necessidade de desmatamentos na Amazônia, principalmente.

            Na qualidade de diretor do ensino agrícola superior, no Ministério da Educação-MEC, intrigava-me o fato de que, em tendo o Ensino Agrícola Superior sido transferido para o MEC em 1961, por que foi rejeitado, recusado a ser acolhido na sua estrutura educacional por tanto tempo? A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 4.024/61) repassou para o MEC toda a responsabilidade pela administração do ensino superior. Este, o ensino agrícola superior, era até então, administrado pelo Ministério da Agricultura (Superintendência do Ensino Agrícola e Veterinário-SEAV, Decreto nº 16.826, de 13 de Outubro de 1944). Somente em 1973, onze anos depois, foi definitivamente instalado no MEC uma coordenação nacional daquele. Por que tanto tempo e tamanha resistência? Saímos a campo em busca de uma resposta satisfatória. No final dos anos 90, paramentado com luvas, óculos e máscaras especiais, equipamentos de proteção pessoal até então quase desconhecidos no país, pois seu uso só se tornou obrigatório em 2020, quando por aqui apareceu a pandemia do COVID, entramos no imenso prédio de arquivos do MEC e em meio às toneladas de pastas e caixas de documentos da antiga SEAV/M.A., algumas intocadas por quase 60 anos, desde que foram transferidas para o MEC. Ali encontramos os registros dos embates travados com a burocracia do Ministério da Educação. A análise daqueles documentos revelou o que já sabíamos por relatos orais do próprio Paolinelli e seus colegas Salim Simão e Almiro Blumenschein da ESALQ/USP e Fausto Aita Gai, da antiga Escola Nacional de Agronomia- ENA, hoje Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ. Travara-se uma longa batalha, com 12 anos de duração, entre os dirigentes de Escolas de Agronomia e Veterinária e o Ministério da Educação que se recusava acolher o ensino agrícola, despejado do Ministério da Agricultura, conforme disposto na LDB de 1961. Se Alysson Paolinelli foi o maestro da obra do desenvolvimento agrícola, como dito até mesmo pelo Nobel da Paz Norman Borlaug, também o foi na liderança e comando da “virada” do Ensino Agrícola Superior no Brasil. E não foi apenas um humilde sanfoneiro daquela orquestra do Agro, como ele próprio rebateu o elogio do gringo especialista em soja. Não, ali no MEC ele foi um refinado , insistente e persistente Maestro da Ciência e da Educação. Soube, com maestria convencer os especialistas educacionais do MEC sobre a importância de ali acolher o Ensino Agrícola Superior,  que, nos padrões modernos se sustentava na pesquisa de produtos e criação de animais adaptados às condições de país continental de clima tropical, sem igual no mundo.

Longa batalha no MEC, ou melhor, longo tempo  no figurado “Conservatório de Música”, diria ele que também amava ensinar em sala de aula. Esse “maestro” levou 12 anos de seu trabalho, junto ao MEC e ali afinou os ouvidos dos “músicos” , dirigentes e assessores da Educação  nacional. Venceu após 12 anos, quando o MEC, finalmente se rendeu e criou diretorias para o Ensino Agrícola. A ser assim, figuradamente, como maestro ou instrumentista, poderíamos dizer que desta vez ele não tocou a “sanfona da orquestra do cerrado”, pois ali no MEC, para os afinados especialistas, formados nas melhores universidades europeias e que dirigiam a Educação no Brasil, ele certamente buscou tocar outro instrumento, de orquestra sinfônica, talvez a flauta, de doce melodia tal qual o flautista de Hamelin encantou as crianças da cidade e todas elas o acompanharam. No MEC, os especialistas se encantaram e dobraram-se ao encanto da melodia do ensino agrícola superior com sua trilogia oriunda dos Land Grants Colleges americanos, implantada pela primeira vez no Brasil justamente na sua Escola Superior de Agricultura de Lavras, em 1908, e transformada em Universidade Federal de Lavras em dezembro de 1994. Ali, em Lavras se praticava a tríade que  associa o ensino à pesquisa e à extensão rural, para a formação de profissionais com qualidade adequada ao desenvolvimento agrícola de país tropical. Não se podia importar uma vaca dos EUA ou da Holanda, esperando que aqui produzisse os mesmos 50 kg de leite ao dia, pois seria atacada pelo calor, carrapato e outras pragas e doenças tropicais e não produziria 10 kg de leite e morreria em meses, com a dura alimentação de capins secos, difíceis de serem digeridos e muito diferentes de sua doce alfafa do hemisfério norte. Da mesma forma a soja importada nada produziria aqui, sob as condições de solos ácidos, pobres em nutrientes e calor de 40 graus. Tinha que haver pesquisas e experimentos para a adaptação à nossas condições de clima e solo. Paolinelli era um expert nesses assuntos.

Um ano e meio antes da aprovação da LDB/1961 já se falava da transferência do ensino agrícola para o MEC e os diretores dessas escolas, em número de 20 (agronomia e veterinária), decidiram criar uma associação para melhor representá-los junto ao governo e à sociedade. Assim, em 1960, reunidos em Piracicaba, foi criada, com a participação e liderança de Alysson Paolinelli, a Associação Brasileira de Educação Agrícola Superior- ABEAS. Por meio dela passaram a influenciar o MEC, que se recusava a aceitar a transferência do ensino agrícola para aquele Ministério. Foi uma luta pessoal de Paolinelli, que à época era o vice-diretor da antiga Escola Superior de Agricultura de Lavras, hoje Universidade Federal de Lavras- UFLA. Somente em 1967 o MEC capitulou e aceitou o ensino agrícola nos moldes dos Land Grant Colleges, com a trilogia Ensino, Pesquisa e Extensão.  Era caro demais, dizia o MEC, pagar professores em tempo integral, manter fazendas de produção e ainda ir às propriedades ensinar os agricultores... Caro, sim, pois até então O MEC adotava o sistema francês, de ensino academista, sem aquelas despesas adicionais.

Diante dos entraves impostos pelo MEC e ainda sob a alegação de que não dispunha de pessoal qualificado para gerir o ensino agrícola, foi aprovada em 1968 a criação, por decreto presidencial, a Comissão de Especialistas de Ensino de Ciências Agrárias- CECA, que seria responsável pela implantação, no MEC, das medidas necessárias à administração do ensino agrícola superior. Surpreendentemente o MEC novamente reagiu, alegando não haver condições para implantar o ensino agrícola nos moldes dos Land Grant Colleges americanos, que exigiam enormes despesas, transferências ou aquisição de fazendas, gado, benfeitorias, máquinas agrícolas e pessoal em tempo integral (na ocasião, os professores de universidades vinculadas ao MEC eram contratados em regime de hora/aula). O impasse perdurou por mais cinco anos até que, finalmente, em 1973 foi implantada a CECA que, felizmente iniciou rapidamente estudos aprofundados de diagnóstico das demandas no campo do ensino agrícola superior.

Alysson Paolinelli esteve à frente de toda essa luta de bastidores no Ministério da Educação e que durou cerca de 12 anos (1961/73). Enfrentou, em um jeep Willys, as péssimas estradas da montanhosa Minas Gerais até o Rio de Janeiro e Brasília, onde funcionavam repartições do MEC. O Brasil deve mais essa a Alysson Paolinelli, a implantação do ensino superior agrícola com a trilogia Ensino/Pesquisa/Extensão, numa luta sem trégua por longo tempo e que hoje resultou no melhor ensino agrícola superior, que tem formado técnicos com competência para nos alçar à condição de maior e melhor produtor de alimentos do mundo. Nada acontece por acaso. Não bastou Paolinelli ter sido Ministro da Agricultura, foi também o grande mentor do ensino agrícola superior brasileiro nos moldes hoje adotado pelas universidades. O Brasil muito deve a esse benfeitor da paz alimentar mundial e da excelência do ensino agrícola superior, mundialmente reconhecida.

De fato, além de “tocar uma sanfona” na orquestra da conquista do cerrado brasileiro, Paolinelli também foi um maestro, ou na sua sempre humilde interpretação, apenas um violinista ou pianista  no sofisticado “ Concerto das Sinfonias” de ideias que antes eram contrárias à aceitação do ensino agrícola no MEC. Sanfoneiro, de ritmo mais acelerado que desperta movimentos rápidos na dança ou um virtuoso pianista ou mesmo violinista de acordes mais sincronizados e melodiosos que incitam a meditação, Paolinelli, foi não apenas um instrumentista, foi de fato um grande Maestro no  MEC, onde ensinou e afinou a música do ensino agrícola superior, formando técnicos que ensejaram ao país a condição de potência mundial na produção de alimentos. Passei mais de 30 anos como diretor no MEC e a figura de Alysson Paolinelli sempre foi ali lembrada com respeito, tanto por ministros como dirigentes do ensino superior.  Um grande Maestro!

 

Brasília, 30de setembro de 2025

      Paulo das Lavras

 


 

terça-feira, 5 de agosto de 2025

50 anos em Brasília – a trajetória do menino

 

  
Um avião desenhado no chão, visto da janela de outro avião. 
Vista deslumbrante, cintilante de luzes amarelas da cidade de Brasília. Foi assim 
que a vi, na madrugada de 05 de agosto de 1975, quando aqui cheguei para ficar.


Cinco de agosto de 1975 e hoje, em 2025 o mesmo 05/08. Chorei..., naquele distante dia, tal qual o mesmo menino  de 12 anos que deixava a casa dos pais ao  embarcar para o internato, no Seminário de Itaúna, bem longe, a 16 horas de trem maria-fumaça. A cinquenta anos atrás, em 1975, a data era o dia 05 de agosto, quando chegava à Brasília, no escuro das cinco  horas daquela fria madrugada de inverno. Dirigindo o próprio carro, um Chevrolet-Opala/GM, quatro portas, novinho, silencioso e os dois passageiros dormiam tranquilos, Anizinho, meu irmão, com o qual revezava ao volante nas 12 horas de viagem (960 Km) e o Sr José, radiotelegrafista da ESAL/UFLA. Sim, radiotelegrafista, responsável pelas comunicações entre o MEC e as instituições de ensino federais, espalhadas por todo o Brasil. Era o canal direto do Ministério da Educação com seus dirigentes nas universidades, pois a telefonia interurbana era incipiente e ainda não existia a Internet que só apareceu 20 anos depois. Ele vinha visitar seu filho  João Chocolate e o amigo José Marcio de Carvalho, o “Tenório” ex-aluno do Gammon e chefe da Rede de Telecomunicações do MEC – RETEMEC. Viajamos a noite inteira, passando por Perdões, Campo Belo, Formiga, Bambui, São Gotardo, Patos de Minas, Paracatu e finalmente Brasília. Sozinho, com meus pensamentos, dirigindo calmamente pela madrugada e meditando sobre a importante guinada que dera em minha vida profissional, deixando a Universidade Federal de Lavras para desempenhar funções no Ministério da Educação. Deixava tudo, casa, fazenda, parentes próximos, amigos e as atividades de professor e Pró-reitor de Pós-graduação, O que me esperava aqui? Como seria esse futuro diferente. A família que chegaria de avião, logo mais ao meio-dia, procedente de Belo Horizonte, terra de minha mulher, iria gostar da cidade e se adaptariam ao novo e desconhecido ambiente? Mineiros gostam de viver em meio aos parentes e amigos e agora, ali, na cidade grande, capital política do país, como seria? De repente, deslumbra-se à frente, ainda na rodovia BR-040, um cenário maravilhoso. Do alto da região da cidade satélite do Gama, aparece Brasília, lá embaixo, fulgurante, deslumbrante, com seu formato inconfundível de asas de avião, toda iluminada com luz amarela de vapor de sódio. Um amarelo citrino, brilhante e cintilando na madrugada escura e límpida, do clima seco do mês de agosto.

Chorei..., mas não foi apenas naquela fria madrugada, com a bela vista da cidade a uns 10 km de distância. O dia anterior também foi duro para os sentimentos. Segunda feira 04 de agosto, foi o dia da aula inaugural do segundo programa de mestrado da ESAL/UFLA, o curso de Administração Rural, pioneiro no Brasil, destinado a estudar a gestão do agronegócio. Não existiam professores especialista no país e tivemos que buscar alguns no exterior. Me lembro do Prof. José Cal Vidal, pois, fui buscá-lo na Califórnia/Santa Clara, ao sul de San Francisco e assim obtivemos a aprovação da Capes/MEC.   Aula Magna, autoridades, convidados, discursos enaltecendo a iniciativa pioneira da universidade que certamente teria grandes impactos na agronegócio brasileiro, que já despontava no mundo, até mesmo com elogios de Norman Borlaug, o Nobel da Paz, na área da Agricultura com sua chamada “Revolução Verde” e que aqui esteve a convite do Ministro Alysson Paolinelli. Quase ao final da cerimônia, uma aluna do curso de mestrado de Fitotecnia, iniciado em março, cinco meses antes, como o primeiro mestrado da ESAL/UFLA, foi convidada à mesa da solenidade. Leu uma carta dirigida a mim, de agradecimento e despedida dos alunos daquele curso de mestrado. Foram as palavras mais carinhosas que recebi até então. Emocionado pelo reconhecimento ao trabalho que ali desenvolvemos para o progresso do ciência e do ensino agrícola superior, segurei as lágrimas, mas, poucos minutos depois,  e após encerramento da solenidade, deixei o local e em despedida fui até o estacionamento, ao lado do prédio da reitoria, estacionei o carrão sob uma árvore que ainda hoje lá está, contemplei o belíssimo cenário da cidade com a Serra da Bocaina emoldurando os seus arredores, tendo atrás de mim, o novo campus universitário de apenas cinco anos de existência, o qual ajudei a construir, desde a locação da principal avenida aos primeiros 10 prédios que serviram de início para suas atividades em 1970. E agora ali estava, pronto para partir, deixar aquela que ajudamos a construir e nela implantamos os primeiros cursos de pós-graduação, como parte de um plano maior de transformar aquela Escola em Universidade, o que aliás, se concretizou pouco tempo depois. E então, deixar tudo e enfrentar o desconhecido na distante Brasília, onde novos desafios nos esperavam. Abri a carta recebida na cerimônia, com a assinatura de todos os alunos do mestrado de Fitotecnia. Li, reli, desabei em choro, ali no silêncio de meu carro, tendo pela frente a majestosa Serra da Bocaina e a cidade, berço onde nasci e atrás, a poucos metros o primeiro prédio do campus, sede da administração da Escola,  construído em 1969 e com nossa participação. Ah... emoção demais. Não consegui segurar as lágrimas. Seis horas depois, já no final da tarde, dei partida no carro e ganhamos a estrada, para uma longa e demorada viagem para o novo destino, mas estava com a alma e os sentimentos divididos. Na chegada, ao avistar  a  fulgurante Brasília naquela madrugada de um dia como o de hoje, 05 de agosto, foi como um bálsamo para alma, um sentimento de “terra prometida” e que Deus estava no comando, presenteando-me com aquela bela visão de um cenário sem igual. E estava, Ele esteve comigo o tempo todo nesses 50 anos que aqui estou residindo!

Sozinho em meus pensamentos, reduzi a velocidade do carro, quase parando na rodovia ainda com pouco movimento e me extasiei com aquela bela e silenciosa visão quase fantasmagórica em meio à escuridão do cerrado do Planalto Central. Nunca havia visto aquele cenário dourado-luminoso, pois as viagens anteriores , sempre de avião, aconteceram durante o dia. Exclamei para mim mesmo: Eis a minha terra prometida. Que o Senhor abençoe minha vida aqui, ainda que fique por pouco tempo. Aqui cheguei com as bênçãos de Deus e hoje, no dia em que comemoro os 50 anos de estada em Brasília, acordei quase às mesmas cinco horas da matina, abri a janela, respirei o ar puro, um pouquinho frio e contemplei as luzes da cidade que, embora tenham sido trocadas há poucos meses pela cor branca do led, aposentando as luzes neon amarelas de sódio, ainda assim relembrei aquele dia 05 de agosto de 1975, a visão repentina e deslumbrante das luzes de neon dourado  e os sonhos que então imaginei..., como seriam meus dias por aqui, pedindo a Deus que abençoasse a mim e minha família naquela nova jornada que ora se iniciava. Sonhos de um jovem menino de trinta anos e hoje sou mais que grato a Deus por tudo que aqui vivi. Pois bem, chegando ao novo e amplo apartamento, que havia sido alugado  alguns dias antes, lá já estava o motorista da universidade, Sr Antônio Teodoro, que chegara com o caminhão de mudança poucas horas antes, ainda de madrugada. Acomodamos os móveis e antes de seguir para o aeroporto, parei na Igrejinha de Fátima e agradeci a Deus. Nos dirigimos para o aeroporto para recepcionar a família, a esposa, filhas, cunhada e a  babá, que cuidava das gêmeas desde novinhas. No desembarque e antes de todos os passageiros,  eis que surge à frente ninguém menos que o presidente JK que também viera no mesmo voo, procedente de BH. Sorridente, cumprimentou a mim e meu irmão e ainda lhe dirigi a palavra: “Então, Presidente, veio visitar sua filha-Brasília? Obrigado por nos dar essa maravilhosa cidade”. Agradeceu com um sorriso, sua marca registrada e caminhou apressadamente para o carro que já o aguardava. JK era proibido de se dirigir ao povo e frequentar a cidade. Tinha que ir direto para sua fazendinha a 50 km de Brasília. Pois bem, começávamos bem o dia com aquela inesperada alegria de cumprimentar Jk, o pai da cidade que nos acolheria.

 

Chegamos com a família ao Bloco I da SQS 308, a superquadra mais charmosa de Brasília, considerada quadra-modelo, com obras de arte de Niemeyer, Athos Bulcão e jardins de Burle Marx, um luxo.  Ali estavam, dentre outras,  a belíssima e histórica Igrejinha de Fátima, em forma de chapéu de freira, mandada construir por dona Sarah Kubistchek e inaugurada em  1958, em promessa pela cura de tuberculose de sua filhinha, ainda no Rio de Janeiro, antiga capital federal. Ali também havia o Clube Vizinhança, a Escola Parque – modelo, e a Escola Classe onde as filhas gêmeas, de apenas três anos de idade, frequentaram. Uma Escolinha diferente, que até recebeu a visita da Rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Nunca tínhamos visto tanto conforto na vida comunitária, com jardins caprichados e muito bem arborizada. Um paraíso para a família e em especial para as crianças. Foi dali, da janela daquele imenso apartamento que também  pude ver o féretro de JK, exato um ano depois daquela atenciosa saudação que dele recebi à chegada, no aeroporto. Esta foi uma das poucas tristezas que passei em Brasília, a despedida de Jk, que faleceu tragicamente em acidente de carro na via Dutra, em agosto de 1976.

Os primeiros dias e semanas em Brasília foram de outras e constantes explorações de seus amplos e ajardinados espaços. Muito diferentes de tudo que conhecíamos como cidades.  Árvores em todos os lugares, ao redor dos prédios bem espaçados, e enormes canteiros ao lado de avenidas. Aliás, ruas e avenidas sem nome. Sim, estranho para nós acostumados ao padrão brasileiro de suas cidades. Aqui,  os endereços são classificados pela orientação dos pontos cardeais, norte, sul, leste e oeste, sudoeste, noroeste, e outras designações em função da utilização, como Setor Habitacional, Setor Comercial, Bancário, Autarquias, Militar, Indústria, Ministérios, Três Poderes,  Residencial e tantas outras e sempre acompanhados da especificação local sul ou norte, sudoeste e noroeste. Apenas alguma avenidas são nominadas como a W3 (oeste 3) a L2 (leste 2) e diferenciadas com a localização sul ou norte. Mas e as ruas próximas aos prédio? Simplesmente não têm nomes. Aqui quem é denominado é o quarteirão, que se chama Superquadra. Estas são numeradas de 01 a 16 sul ou norte e se estiver do lado leste (L) seria 202, 402, 203, 403 e assim por diante até o numeral 16. Se a Superquadra estiver localizada do lado oeste (W) a numeração é 102, 302, 103, 303... E qual seria a linha divisória do L (leste) e do W (oeste)? É a linha que corresponde à nervura central da asa do avião que é uma enorme avenida de três faixas em cada sentido e uma faixa de metros de largura ao meio, chamada faixa presidencial. Asa de avião? Sim, a cidade foi projetada em forma de avião e temos aas asas Sul e norte, a parte dianteira do avião é a Esplanada dos Ministérios e a cabine do piloto seria o Palácio da Alvorada. Difícil entender e se locomover nesse labirinto sem nome de rua. A cabeça do motorista recém-chegado dá um nó, pois estava acostumado aos quarteirões e ruas retilíneas formando quadriculados, cheios de esquinas (Belo Horizonte tem uma esquina  a cada 20 metros nas confluências com a Avenida Afondo Pena). Aqui, não! Só linhas curvas  e o pior de tudo..., não há esquinas.... Sim não há esquinas, pois os cruzamentos são em forma de trevo de rodovia, com viaduto e tudo e são chamados de “tesourinhas”.   Meu Deus, é confuso demais para quem chega. Gatei mais de um mês para aprender a andar de carro próprio por aqui. Os domingos eram reservados para flanar de carro, errar muito os caminhos, manobrar e retornar, pois e entrarmos numa Superquadra... adeus, tem que manobrar e voltar pela mesma e única entrada. Privacidade, disse Lúcio Costa, só entram os moradores e não é caminho para ninguém. Quem ali entra tem que voltar pelo mesmo caminho, semelhante a um condomínio fechado. Mas, confesso, em pouco tempo me rendi, aprendi e sou, até hoje, um admirador da malha viária de Brasília, com pistas de 30, 60 e 80km/h e ainda conta com o Metrô. Apesar dos mais de 2 milhões de veículos em circulação, incluindo carros, motos, caminhões e ônibus, com índice de 1,3 habitantes por veículo, o maior do Brasil, ainda assim o trânsito flui bem, sem engarrafamentos e com razoável velocidade. Aqui ainda não se pode falar que chegamos atrasado a um compromisso por causa de engarrafamentos. Interessante notar que hoje a cidade conta com mais de três milhões de habitantes e quando aqui cheguei , havia apenas 600 mil habitantes e 120 mil veículos. Os jornais diziam à época, orgulhosamente, que em caso de catástrofe e necessidade de evacuação da cidade, todos os habitantes caberiam na sua frota de veículos. Coisas de Brasília, única no país, onde as pessoas têm cabeça, tronco e ... rodas.

Brasília , hoje, é uma cidade-parque, com mais de 6 milhões de árvores, muitas das quais são fruteiras que atraem pássaros e outros animais como saruês e micos. As Superquadras são verdadeiras quadras-parque, cercada de árvores em lindas alamedas, nas quais o pedestre pode caminhar sob sol a pino, porém desfrutando de passarelas e ciclovias sob sombras, protegido do sol, a qualquer hora do dia. Amo as caminhadas entre quero-quero,  curicacas, gaviões carcarás, maritacas sabiás e pasmem: araras canindé e tucanos. Verdadeiro paraíso da natureza. Nenhuma cidade do mundo tem essa qualidade de vida. Trabalhei em grande parte do mundo. Nova York, se quisermos caminhar temos que ir em busca do Central Park , Londres idem e em Paris tem que se pegar o metrô. Vancouver, Lisboa, Madrid e outras capitais europeias também não dispõem de áreas verdes como aqui. De meu prédio, na Asa Sul, ando apenas uns 10 ou 15 passos e já estou na alameda com passarelas para pedestres e sob sombra de árvores frondosas de 50 ou 60 anos de idade. Ar puro, flores e pássaros alegram a caminhada.  Sinceramente, além do sucesso profissional, que é outra história a ser contada, minha permanência em Brasília por esse longo tempo se deve, também, a esses fatores de qualidade de vida para a família, especialmente os filhos que aqui chegaram ainda no colo e encontraram espaço e excelentes condições de vida escolar e social.

Brasília..., vim para passar apenas três ou no máximo cinco anos, enquanto durasse aquele governo que me convidou para aqui estar e administrar um grande programa internacional para desenvolvimento da educação agrícola superior. Convites reiterados, com a concordância de minha Universidade Federal de Lavras, acabei sendo seduzido por essa cidade sui generis, planejada, ótima para se criar os filhos e campo de trabalho ímpar no Ministério da Educação. Os filhos cresceram, chegaram os netos..., agora é colher os frutos desse longo cultivo.

Valeu, Brasília..., 50 anos de convivência, completamos hoje. Amém!

 

Brasília, 05 de agosto de 2025

 

Paulo das Lavras

  

P.S.   O   menino só não fala da saudade da terra natal. No entanto, ela  está tão impregnada na alma quanto no pseudônimo de cronista, que gosta de contar as coisas da infância e da juventude ali vividas com muito amor, carinho, cultura e formação profissional, sem falar da Universidade  que ajudou a construir, auxiliando seu grande arquiteto Alysson Paolinelli. Mas estas são outras histórias, algumas já contadas neste blog.


quinta-feira, 31 de julho de 2025

O autista, mal-educado, esquerdista ou de direita. O que você foi, ou ainda é?

 

Sou autista..., eu disse recentemente, em alto e bom tom, ao iniciar uma palestra para alunos de graduação de uma universidade federal. Nem mesmo os cumprimentei, como de praxe fazem os professores ao iniciarem uma aula. Silêncio constrangedor. Chocados, todos me encararam. Propositadamente, também os encarei, em silêncio e com ar ainda mais sério, arrematei: também não sou esquerdista e nem de direita. Continuamos, todos, em silêncio por mais alguns instantes. Mas..., será possível que trouxeram para palestrar um doido, ou no mínimo um esquisito que não fala com ninguém, vai ficar mudo e de cara fechada...? Foi o que alguns pensaram, disse-me depois, no cafezinho, um dos alunos que também disse que ficou muito curioso para ver em que final aquilo chegaria.

A moda atual é o diagnóstico tardio de Transtorno do Espectro Autista – TEA, para qualquer um que tenha pelo menos uma das características desse mal do século XXI. Não bastam os diagnósticos para as crianças e adolescentes, os quais, diga-se, os pais não mais dão conta ou nunca as educaram o suficiente. Estavam muito ocupados com o trabalho fora de casa e terceirizaram a educação às creches ou babás mais em conta, de pouca ou quase nenhuma instrução, mas de tempo integral e ainda fazem outros pequenos serviços  da casa. É o “normal” dos dias de hoje, de uma sociedade ainda patriarcal, onde o marido machista não pode dividir as tarefas domésticas com a mulher. Esta, coitada, tem de cumprir jornada tripla e ainda estar à disposição do maridão que, tranquilamente assiste seu futebol na TV, o “descanso do guerreiro”, como gostam de dizer.  Pois bem, agora, não só os filhos, mas, também os pais recebem tal carimbo de autista. E parece que a moda pegou mesmo, pois o que ouço de amigos se “gabando”, sorridentes, ah..., eu também sou ou fui autista... Isto parece que alivia a culpa pelo mal que aflige o filho. Mas, pelo que fui e vivi na infância e juventude, tenho minhas dúvidas sobre tal diagnóstico para os adultos ou idosos de hoje. Não sou nenhum especialista em psicologia ou psiquiatria, mas tenho lá as minha observações, até mesmo para esses TEAs atribuídos às crianças, quando portadoras de algum problema comportamental. O problema está, na maioria das vezes, nas raízes. São mal-educadas e impõem vontades desmedidas, pois foram criadas sem a presença dos pais.

Outro dia assisti a um vídeo de um professor, relatando um caso interessante. Sua aluna norte-americana chegou mais cedo na sala de aula e foi conversar com o professor, pediu licença para fazer uma crítica aos brasileiros. Disse que estava assustada, porque aqui ninguém faz nada! Como assim, indagou o professor. Ninguém estuda, a sala de aula parece um mercado persa, uma vende trufas, outra, plano de viagem e outras, ainda, insistem para que compremos uma profusão de roupas, sapatos, e bijuterias de suas sacolas cheias e ainda organizam festas e vendem rifas. Nos Estados Unidos, quando eu não estava em sala de aula, estava estudando na biblioteca. Aqui, eu vou à biblioteca todos os dias e não encontrei um aluno. Ninguém faz nada aqui, não estudam! As pessoas falam sem saber o que estão falando. O professor simplesmente respondeu-lhe: bem-vinda ao Brasil! O que essa aluna norte-americana viu e sentiu é o retrato da realidade brasileira. Aqui, a realidade é o inverso da lógica, da seriedade, e é propagada pela TV, tornando-se um mote nacional: levar vantagem em tudo, na leveza e malandragem. Ninguém estuda, não cumpre sua obrigação, disse a garota norte-americana com a concordância do professor brasileiro. Mal sabe ela que o primeiro “civilizado europeu” que aqui pisou, no anos de 1.500, tratou logo de mandar ao “El Rei”, uma carta pedindo benesses para si. Outros vieram mais tarde para, literalmente, saquear o ouro, aproveitando também para amasiarem-se com as escravas índias e africanas e, assim, levarem vantagem em tudo, pois quem fazia o trabalho duro era o escravo. Tudo isso  ao contrário dos ancestrais da garota estrangeira, que chegaram de navio fretado, com a família e ao se instalarem nos Estados Unidos, a primeira providência foi construir uma escola para os filhos e uma igreja para a prática do culto de gratidão a Deus. Dedicaram-se à terra, derramando seu suor para conseguir o sustento de sua família. Esta é a diferença cultural, construir/fazer contra o levar vantagem em tudo, sem nada fazer. Uma garota estrangeira, com apenas alguns dias em nosso país, constatou isso. Por lá, existe um senso arraigado de se preparar para enfrentar os percalços da vida, trabalhar e produzir, com imenso sentimento de patriotismo. Numa uma rua em Nova York você pode contar dezenas de bandeiras americanas hasteadas nas fachadas dos prédios. Aqui em Brasília, a capital da república, contei apenas duas, fora da Esplanada dos Ministérios. Uma no início da W3 Norte e outra na L2 Sul – 613.

 

          Pura verdade o que a estudante estrangeira disse ao professor brasileiro. Aqui a regra é inversa à lógica e por isso, provoquei: “Sou Autista!”, reverberei aos alunos. Este teria sido o meu diagnóstico quando criança e adolescente. Com certeza, pois destoava de todos os demais. A moda era se enturmar, jogo de futebol, bola de gude, finca, ping-pong (tênis de mesa), natação nos riachos, caçadas de passarinhos e cavalgadas. Quando maior, as diversões em turma eram matar aula para jogar sinuca, fumar escondido (Continental mais forte ou Hollywood mais suave, eram os cigarros mais famosos, sem filtros nos anos 50 e com filtro nos 60 e eu os fumei bastante... rsrs). Lá pelos 17 anos, além das estrepolias mais comuns, apareciam as visitas a boates e as suas atrações de praxe. O menino que gostava de leituras e mais tarde metido a estudar, ler, compreender e absorver os conceitos de um tratado de literatura, química, física e matemática, ou aprender idiomas estrangeiros,  dedicava mais tempo a esses atividades em vez de enturmar-se em botecos e outros locais não muito recomendáveis. Assim, esses raros casos, atípicos entre a rapaziada, não raras vezes recebiam pechas de calados, entupidos, retraídos, caxias, cdf e outros qualificativos semelhantes ou piores. Tudo isso porque às vezes, ou quase sempre se recusavam a juntar-se à turma. Mas, o que faziam esses poucos “pirados” entre tantos outros? Ora, os “normais” eram os demais..., que nada faziam de produtivo para seu futuro. O “anormal”, pirado, encucado, meio tan-tan, seja lá que apelido recebesse,  cumpria sua obrigação de estudar, ir à biblioteca, pesquisar o assunto, matricular-se num curso complementar de línguas estrangeiras... “Normal” era mesmo não fazer nada e só flanar.

 

Tinha razão a estudante norte-americana ao criticar as colegas de sala de aula. Talvez nem soubessem, onde era a biblioteca da escola. Nos anos 60 eram poucas as escolas que mantinham biblioteca. No meu caso, na matemática, física, química, geografia e ainda nos idiomas inglês, francês e espanhol, me valia das bibliotecas particulares de cada professor. Além de atuar como monitor, ainda fazia, já no final do segundo grau,  traduções de textos técnicos de Física,  que eram distribuídos pelo professor Roussaulière Mattos aos alunos. De 250 colegas do segundo grau, somente um colega, Adelino Moreira de Carvalho, fazia o mesmo que eu e por isso, nos tornamos amigos desde então. Ele gostava e praticava o idioma alemão com os padres alemães do colégio, e também recebia livros emprestados dos professores. Na faculdade, apenas uma colega, Andirana Veiga, se aproximava desse perfil de interação com os mestres. Dos mestres, havia dois que se destacavam, os professores de Solos, Alfredo Scheid Lopes  e o de Fitopatologia, Paulo de Souza. Estavam sempre a nos incentivar e nos emprestavam seus livros particulares. Para o de fitopatologia, fiz traduções de artigos sobre doenças do tomateiro e da batata inglesa, retirados de capítulos de livros produzidos na Universidade da Carolina do Norte, onde o Prof. Paulo de Souza fizera mais tarde seu curso de doutorado (PhD). Lembro-me que, por ocasião se seu doutorado, eu trabalhava na Michigan State University,  na coordenação de 250 outros professores brasileiros em cursos de PhD espalhados por 32 universidades americanas e, de forma descontraída, brinquei: quer que eu ainda traduza artigos de fitopatologia, como nos meus tempos de seu aluno? Este e alguns outros, foram professores que fizeram diferença. Alfredão, de quase dois metros de altura, atleta medalhado no país e no exterior, especialista em Solos do Cerrado,  encaminhou-me para um estágio em São Paulo, em uma grande empresa produtora de fertilizantes e fali percorremos vários município produtores de hortifrutigranjeiros, cana de açúcar e café. Foi o maior aprendizado que absorvi na área do agronegócio.

 

Mas ainda no campo das bibliotecas, encontrei terreno fértil na USP, na Escola de Engenharia de São Carlos quando, no início dos anos 70, cursei pós-graduação na engenharia civil,  nas áreas de Hidráulica e Meio Ambiente. Nos conhecimentos biológicos dominava perfeitamente pois é parte essencial da agronomia, já na computação, aliás área emergente na ocasião, a dedicação precisou ser redobrada em Matemática superior, com Matrizes, Vetores, Probabilidades, Transformadas de Laplace, Álgebra Linear e outras que faziam parte dos  mínimos conhecimentos exigidos para se aprender Programação Computacional e criação de aplicativos. Não era fácil e o jeito era “morar, viver “ na biblioteca. Bibliotecárias qualificadas, experientes, bastava indicar o assunto e em poucos minutos retornavam com os principais títulos de livros e periódicos. Era só escolher os melhores, checando a ficha catalográfica que ficava na parte interna da capa e mostrava todas as consultas já realizadas  naquele título. Hoje temos o Dr Google que em segundos nos fornece o resumo de cada obra e mais, ainda, a inteligência artificial- IA que já compõe o texto desejado pelo cliente.  Mas, vejam, mesmo naquela Escola de Engenharia,  uma das melhores do país, a frequência à biblioteca não era como esperado, mesmo sem a existência da internet que hoje tudo resolve.  Já nos anos 90, passei a frequentar a biblioteca da UNB com maior assiduidade. Internet ainda engatinhando, uma novidade nos sistema de consultas e já me pareceu que os alunos a frequentavam com mais intensidade. Melhor assim, pois isto é o certo, como bem observou a estudante estrangeira que notou a falta de vontade de se dedicar aos estudos e apenas dará uma lida na matéria no dia da prova.

 

Mas, e a questão de se posicionar como de esquerda ou de direita? Ora, trabalhei no MEC por 35 anos, sendo trinta e quatro em tempo integral e mais um ano, anterior, como consultor eventual. Atravessei períodos distintos de governos de direita e de esquerda. Observei que a nossa Educação está impregnada das ideias do educador Paulo Freire que aliás, foi declarado, em 2012,  patrono da Educação Brasileira. Freire prega que a Educação deve ser um instrumento de libertação, conscientizando a população para uma transformação social, libertando o indivíduo da opressão, tornando-o participativo na sociedade. Para ele, o principal objetivo da Educação é criar consciência de classe. Educadores críticos à essa ideia, acham que Freire defende uma pedagogia doutrinária, que promove o comunismo, criando classes de cidadãos, tal qual na tese marxista, ao invés de se preocupar com a educação como instrumento de ampliação do conhecimento, para se formar cidadãos de fato, conscientizados, a serviço da produção e desenvolvimento da sociedade. Não se pode, como defende Freire, limitar a formação de massa de militantes da esquerda, pois no mundo inteiro os parâmetros de qualificação profissional são os do conhecimento das ciências. Por isso o Brasil é fraco, extremamente fraco, nos índices mundiais de classificação dos alunos, como o PISA-Programa Internacional de Avaliação de Alunos  e o IDEB, que é o índice de desenvolvimento medido nas avaliações de aprovação e desempenho no Sistema de Avaliação da Educação Básica no Brasil (Saeb). No PISA, a última avaliação, de 2022, o Brasil ficou, na área da Matemática,  entre os últimos colocados, com apenas 379 pontos, 93 abaixo da média (472 pontos). Em ciências, a pontuação foi de 403 pontos, 82 abaixo da média (485 pontos). Em leitura, o desempenho brasileiro foi de apenas 410 pontos, muito abaixo da média de 476,  dos países da OCDE. O PISA também avalia domínios inovadores como resolução de problemas, letramento financeiro e competência global.  Há algo de muito errado na Educação Básica brasileira e enquanto perdura a tesse esquerdista de foco na formação de classes sociais, ficará difícil  para o Brasil sequer alcançar os índices de seus vizinhos Chile e Argentina, por exemplo, sem falar de países mais desenvolvidos.

 

Por outro lado, aqueles que. aqui no Brasil, se preocupam mais com a qualidade da Educação nas áreas tecnológicas, são às vezes taxados de “direitistas” e acusados de ignorar a educação de classes de cidadãos, como massas sociais. Não se trata disso, a educação não pode ser dividida dicotomicamente e nesse sentido colocar o foco principal, como desejado por Freire, unicamente no social, para supostamente “libertar o cidadão da opressão”. Formação social? Sim, mas não se pode colocar em segundo plano o desenvolvimento científico e tecnológico . Precisamos melhorar em Ciências, Matemática, Física, Química, Computação, Inteligência Artificial e quantas mais necessárias ao progresso técnico, científico e social.  Felizmente, na nossa área de atuação profissional contamos com verdadeiras e avançadas ilhas de desenvolvimento tecnológico, em condições privilegiadas de competição mundial na Agricultura e algumas subáreas da Engenharia.

 

 

            Fanatismo e Inteligência  nunca moram na mesma casa, já dizia o poeta e pensador Ariano Suassuna. Mas, diante de tantas diversidades e adversidades, que atitude o jovem de hoje deveria tomar? Recomendo aquilo que eu e poucos colegas de faculdade fizemos e deu certo: fazer diferença. Ah..., e a diferença não é ser o mais inteligente da turma. Provavelmente pelo menos uns dez por cento tem QI igual ou superior ao seu. A questão é fazer diferença em outro campo: DEDICAÇÃO! Não fui autista coisa nenhuma, apenas fui focado nos objetivos e metas de estudar e me preparar profissionalmente. Talvez, possa ser admitido o caso de um TEA  bem leve, na categoria de alta performance, o que explicaria a facilidade que tinha para aprender matemática, física, química inglês e os idiomas francês, espanhol, italiano e até mesmo o Latim, língua que ainda era utilizada nos textos sacros. aprendido e utilizado no Seminário onde estudei por algum tempo. É bem verdade que tive dificuldades de me enturmar, jogar futebol e outras atividades comuns aos jovens, preferindo ficar só..., estudando, lendo ou ouvindo as rádios estrangeiras para praticar os idiomas. Confesso que me preocupava por conta desse comportamento, estigmatizado como “anormal” à época. Somente muito mais tarde vim a compreender que tenho o direito de ser do jeito que sou e sinto-me aliviado e contente por sido assim e pude “fazer diferença”

 

  

Por ser assim, focado nos estudos e na aprendizagem, não me sobrou tempo para ocupar a mente com bobagens dicotômicas de esquerdismo ou de direita. Apenas estudei com afinco. Hoje passaram a chamar isto de “hiperfoco” e está classificado como sintoma de autismo, mas não é o único. Nem sempre o isolamento, para se dedicar às tarefas, pode ser classificado como autismo. Na maioria das vezes passa-se apenas como sujeito mal-educado, que só estuda, mas, lembrado com “distinção” nos dias de provas, quando aqueles seguidores da lei do Gerson, corriam a reservar para você um lugar bem ao lado deles, no fundos da sala de aula. Identificada essa “distinção” interesseira, tratávamos de ser o último a entrar na sala de aula e ocupava os lugares vazios, bem na primeira fileira,  ignorando os chamados despistados: seu lugar está reservado aqui, lá no fundão.  

 

Façam diferença, estudem muito! Desenvolvam suas habilidades e talentos. Educação faz diferença e um bom começo é meio caminho andado para o sucesso. E o sucesso vem mesmo! Eu garanto, pois ele não vem por acaso.

 

Brasília, 31 de julho de 2025

 

Paulo das Lavras



 Foto: Senado Federal