Têm nomes, sobrenomes e prontuários de entrada em pronto-socorro
as crianças agredidas e levadas ao Hospital Regional da Asa Norte, de Brasília.
Têm nomes, sobrenomes e endereços os índios que portavam tacapes, lanças,
bordunas e arcos de flechas com pontas de metal, guerreando ferozmente contra
as forças policiais. Tem nome e patente o militar da cavalaria que foi ferido
com uma flechada na virilha. Tem nome e CGC as entidades não governamentais e
associações regionais que trouxeram os índios, de avião e ônibus fretados para
as manifestações, do dia 27 de maio de 2014, aqui na capital federal. Idem para
os ativistas do MTST e dos Quilombolas. Onde estavam as autoridades da
segurança pública que foram incapazes de proibir o porte dessas armas de guerra
usadas pelos índios? Afinal, não é proibido portar mochilas, paus, pedras e
estilingues em manifestações públicas? Armas de guerra, ainda que indígenas,
mas com considerável grau de letalidade podem?
Infelizmente só sabemos onde estavam nossas crianças,
centenas delas..., sob as tendas armadas ao lado do Estádio Nacional Mané
Garrincha, admirando a Taça da FIFA que ali estava exposta. Meninos e meninas de
seis a doze anos que merecidamente foram levadas para realizar um sonho. Entraram
em verdadeiro pânico ao serem surpreendidas pelas bombas de efeito moral e gás
lacrimogênio que as forças policiais tiveram que deflagrar para conter a turba
de índios e mais de 2.000 manifestantes, incluindo os do MTST, Quilombolas e
vários outros grupos que ameaçaram invadir a Exposição da Taça. Foram contidos
a poucos metros de distancia das tendas onde estavam as crianças. Seria o caos
total se a polícia não tivesse usado a força necessária para impedir a invasão.
Ali estavam cerca de 7.000 visitantes, incluindo as crianças. Ainda assim,
diante de bombas e o efeito asfixiante do gás lacrimogênio, os motoristas dos
ônibus e monitores, em desespero, correram a abrigar as crianças nos veiculos.
Providência mais que acertada diante das circunstâncias de incerteza se seria
possível conter a massa invasora com probabilidade de os índios continuarem na
fúria de espetar suas lanças e atirar flechas aleatoriamente. As crianças ficaram
em pânico, se desesperaram muitas chorando, algumas desmaiando intoxicadas pelo
gás lacrimogênio e rapidamente levadas aos hospitais. Outras machucaram as
pernas e braços na correria descontrolada. Pais relataram os traumas dos
filhos. Alguns sequer puderam retornar às aulas no dia seguinte, tamanho o
trauma, como foi o caso da menina Emanuelle Reis, de 12 anos, que ficou entre o
fogo cruzado. Afora isso, havia a frustação de terem estado tão perto da taça e
não puderam sequer vê-la e fotografar. Além da frustação as crianças se
assustaram muito, pois a toda hora eram alertadas para evacuarem o recinto
rapidamente, pois os índios iriam invadir o local. Cena que os pais jamais
imaginaram para seus filhos e pior foi real. Um crime que precisa ser apurado.
Vergonha
nacional! Desnecessário dizer que a FIFA suspendeu imediatamente as visitas à
Taça. Um país que se diz civilizado, mas que se presta a oferecer um show que
só se vê em cenas cinematográficas de Hollywood retratando o General Custer,
precisa ser repensado. Índios com
pinturas de guerreiros flechando soldados, a cavalaria recuando e se
defendendo, cavalos e soldados feridos por lanças e flechas, baderneiros
atirando tampas de bueiros e pedras. Não acreditei no que vi, surreal demais. Até
mesmo as fotos anexadas a este texto, retratando um índio em frente ao Estádio
Nacional, sentado para melhor tensionar o arco para lançar a flecha contra a
cavalaria, me fez lembrar, além dos filmes hollywoodianos, das pranchas 5 e 18 do
1º tomo da publicação, de 1834, da Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, de
Jean Baptiste Debret, o célebre pintor da missão artística francesa, que o
Conde da Barca trouxera ao Brasil nos tempos de D. João VI que daqui reinava
Portugal, Algarve e Colônias. Se as gravuras pintadas por Debret, há 200 anos (chegou ao Brasil em 1816)
receberam o nome de pitorescas, a foto de hoje poderia ser classificada como
surreal ou bizarra, embora real, objetiva e eficaz, pois o índio acertou a
virilha do cabo da cavalaria, Cleber Ferreira, que foi socorrido imediatamente.
Só restou mesmo lançar bombas e gás contra a turba. O gás lacrimogênio foi, para os
telespectadores, a única e diferença entre os filmes de antigamente e a batalha
presente. Espetáculo bizarro, exibido pelas TVs do mundo inteiro. O mesmo amigo
francês que me ligou há uns 20 anos dizendo-se “encantado” com a performance do
cacique Raoni em Paris, para onde fora levado como peça publicitária
exibicionista do cantor Sting, ligou-me novamente: vamos ter Copa, mon ami? Os selvagens nativos invadiram
o Estádio Nacional? A flecha que atingiu o soldado estava envenenada? ...
Vergonha nacional, até porque o risco de uma tragédia de proporções maiores parecia
iminente. Ironicamente respondi ao amigo de Paris que aquilo era apenas uma encenação
pré-Copa, a la hollywood, imitando as gravuras pintadas pelo seu compatriota
francês Debret, as quais inclusive decoravam seu gabinete na cidade luz (regardez, mon ami, le Voyage pittoresque et historique au Brésil, le séjour
d'un artiste français au Brésil, depuis 1816 jusqu'en 1831). Acostumado com
os desfiles do cacique Raoni em Paris, ao lado do cantor Sting e outros
manifestantes em prol da Amazônia, achou graça da piada, mas deve ter se
lembrado da famosa frase de seu ex-presidente Charles De Gaulle: “O Brasil não
é um país sério”... De qualquer modo ele não viria mesmo para
Copa.
Mas
a nossa vergonha não é dos índios que temos e seu protagonismo nesses episódios.
Ao contrário, sempre o protegemos como dever de Estado. Aqui nunca houve
general Custer dizimador e sim General Rondon, o protetor dos indígenas. E
agora, o que temos? Se o índio é considerado incapaz e sucumbe como indivíduo,
pois sua identidade está na tribo, nos seus costumes, na natureza, é dever do
Estado tutelá-lo e protege-lo de todo o mal. E onde estava esse Estado que não
só permitiu como financiou a sua vinda, a estada, alimentação e locomoção pela
cidade? A vergonha é o tratamento que nós, os chamados civilizados, damos a
eles, abandonando-os, deixando chegar a essa situação humilhante. Incrível! Índio
não é arruaceiro. É incapaz, tutelado do Estado. Arruaceiros são aqueles que se
aproveitam da situação para faturar algo inconfessado, mas que sabemos o que é
e a quem serve. Messias Cassemiro relatou ao Correio Braziliense (29/05/2014, p. 21)
que depois da manifestação interrogou, na rodoviária, mais de dez participantes
da baderna. Nenhum soube explicar os motivos da manifestação. Claque paga? Como
aquela em que cada participante foi flagrado, no gabinete do deputado Nelson Marquezelli,
recebendo R$ 70,00 para bater palmas para o deputado na votação da lei que
regula o descanso dos motoristas de caminhão? Baderneiros de aluguel, muito
comuns aqui em Brasília..., é possível.
Os
políticos dos três poderes da república, embora tenham afirmado em discursos que
leram e entenderam os recados das manifestações de rua de 20 de junho de 2013,
acontecida em Brasília e outras cidades do país, parece que não foram capazes
de criar mecanismos suficientes para por fim a essas manifestações. Naquela
data, participei, ao lado de estudantes, das manifestações de rua que
protestavam por melhor educação, saúde, segurança e transporte público, tendo
como mote o aumento de tarifas. Já quase chegando ao Congresso Nacional
encontramos muitos índios provenientes de diversas e diferentes etnias.
Conversamos com eles e até os fotografamos de tacapes lanças e flechas nas
mãos, mas não as usaram. Reclamação deles há um ano? A mesma de hoje, a PEC 215,
sobre demarcação de terras indígenas. Naquele dia a manifestação perdeu o
controle, vândalos depredaram prédios públicos e 127 feridos foram levados aos
hospitais. Todos os políticos e dirigentes dos três poderes correram às TVs e
dispararam declarações que hoje sabemos foram demagógicas. O deputado André
Vargas (recentemente
flagrado em transações ilegais com doleiros, teve que deixar a vice-presidência
da Câmara e também o seu partido) então Presidente em
exercício da Câmara, recebeu delegações indígenas após nova manifestação e
quase invasão do Congresso, em outubro de 2013. O cacique Raoni, de dedo em
riste disse-lhe muitas verdades e promessas não cumpridas pelos políticos.
Mesmo assim foram poucas as ações por parte dos governantes e políticos. O
próprio Congresso Nacional continua a “cozinhar” a PEC 215, mesmo depois de um
ano da primeira manifestação indígena. Novamente, agora, depois dessa quase
tragédia no Estádio Nacional, lá estavam, dia seguinte, as lideranças
indígenas, quilombolas e MTST sendo recebidas, em separado, pelos ilustres
presidentes das casas do Congresso Nacional. Certamente “novas” promessas foram
feitas sobre a tramitação de seus projetos de leis que visam colocar fim às
respectivas contendas.
A
tentativa de invasão do Estádio Nacional foi crime contra nossas crianças e num
espectro mais amplo, contra toda a Nação, contra nós que delegamos aos
políticos o direito de legislar, julgar e administrar o nosso país. Os índios,
que vieram a Brasília reclamar seus direitos, não podem ser considerados
baderneiros. Os nossos governantes, nos três poderes, são os causadores daquela
baderna que nos envergonha. Na medida em que não agiram o bastante para evitar
ou impedir tal ato, motivaram-no. Que os poderes constituídos investiguem,
processem e julguem os políticos e dirigentes detentores de cargos e que têm se
omitido na resolução das injustiças sociais. Agora extrapolou, muito além do
tolerável, pois foram quatro crimes ao mesmo tempo: a agressão às crianças, a
exposição de índios a situações perigosas, servindo de massa de manobra a
interesses outros, a omissão nas ações de demarcação de terras indígenas e
suposto motivo de tais manifestações e por último, o financiamento das
manifestações com dinheiro publico, no mínimo para transporte, hospedagem e
alimentação dos manifestantes. A sociedade financiando um ataque a si
própria.... É legal, moral, justo?
Não
se pode culpar, pelos tumultos, as forças policiais que vivem o eterno dilema
de dosar a força para não incorrer em excessos. Agiu moderadamente. Se prendesse
o índio que feriu o soldado com sua flecha ou ainda se morresse um
manifestante..., não haveria Copa...! E sempre haverá os que acham que a
polícia deveria reprimir com todo rigor os arruaceiros. Por outro lado é
verdade também que instituições não cometem crimes. Quem se incrimina é a
pessoa que viola as leis seja ela do povo, político ou detentor de cargos na
administração pública. Reivindicar e manifestar são direitos de todos, mas,
transgredir as leis, depredar o patrimônio público ferir e prejudicar não só as
crianças aqui ali estavam, mas também toda a população que teve as ruas
bloqueadas e só puderam chegar às suas casas três ou quatro horas depois, é
crime que não pode mais ser tolerado, pois assume características de atentado à
sociedade cujo direito maior deve ser respeitado. E cabe ao Estado defender a
sociedade sem abrir mão do uso da força, se necessário. Embora justas as
reivindicações expressas pela coordenadora do movimento Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara, afirmando que foram investidas vultosas
quantias em obras para a Copa enquanto que as aldeias estão abandonadas,
demarcações paralisadas, caos na saúde indígena, ainda assim não se justificam
as manifestações de caráter violento.
Tomara
que manifestações baderneiras não aconteçam durante a Copa e possamos todos, e
principalmente os turistas, usufruir um pouco de entretenimento sem
sobressaltos como esse acontecido com nossas crianças e índios no Estádio
Nacional Mané Garrincha.
Brasília,
31 de maio de 2014
Paulo
das Lavras.
Manifestação de maio de 2014. Cena igual
a 200 anos atrás
Será que Debret se inspirou nessa foto de
27/05/2014? Veja a seguir a tela que aquele artista pintou
Impossível! Ele pintou esta em 1816, no
tempo de D. João VI no Brasil
A cavalaria de hoje não quis seguir o exemplo da
cavalaria Guajajara de 200 anos atrás, conforme pintura de Debret, a seguir
Talvez assim o soldado de hoje não tivesse sido
flechado
Um índio
Kayapó acertou cavalos e um policial da cavalaria montada. E também.....
atingiu em cheio o cavalo mecanizado, ou melhor, a moto da PM
Participando, com os estudantes, da manifestação
(pacífica) de 20 de junho de 2013
Etnia Kayapó, pedindo fim da PEC 215-
demarcação de terras, junho 2013
Bordunas, tacapes lanças e arcos com
flecha . Grito guerreiro, Kayapó: Morrer pela terra.
Porém pacíficos, não fizeram uso de suas
armas na manifestação de junho de 2013, por isso fotografei.
Um cartaz na manifestação de 213, mas bem atual
Cacique Raoni passa sermão em André
Vargas então presidente em exercício
da Câmara dos Deputados (em 02/10/2013). Nada
feito até agora pela PEC 215.
O mesmo Raoni, exibido em Paris pelo
cantor Sting, no final dos anos 1980. Exotique!
Raoni e Sônia Guajajara, recentemente
exibidos em Paris. Tem razão os franceses ao perguntarem: haverá Copa?
Sim, haverá e vamos receber muito bem a
todos os estrangeiros que aqui vierem! Uma pena o que fazemos com
os nossos indígenas.
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