Natal,
época de congraçamento e oportunidade para presentear os entes queridos. E tome
livros..., presentes não faltaram e a estante está abastecida por um bom tempo.
Mas, o que tem a ver isso com o título desta crônica? Com esse título acima, o
jornalista e escritor Nirlando Beirão, falecido em abril deste ano de 2020, aos
71 anos, vitimado por doença degenerativa, a Esclerose Lateral Amiotrófica- ELA,
escreveu parte de sua própria história. Mês seguinte a imprensa divulgou seus
livros. Em tempos de pandemia e quarentena de reclusão em casa, a leitura é o
melhor remédio. Logo adquiri esse livro recomendado, e tão bom, o reli nessa
semana. Nele, o autor conta a saga de seu avô, um jovem ex-padre português,
Antônio Beirão, que veio para o interior de Minas Gerais, cuidar das almas na
pacata cidade de Oliveira, bem próximo à minha cidade natal. Nem tanto cuidou
das almas, pois logo se apaixonou por uma bela donzela, cuja casa frequentava
para almoços dominicais. A jovem, Esméria Miranda, futura avó do autor do
livro, “se encantou pelo padre de batina preta e trocou o amor divino pela
paixão terrena”, desafiando a própria fé, conforme descrito no livro de seu
neto, curioso que pesquisou toda a sua vida. Belíssima história de amor que
venceu preconceitos, mas custou elevado preço social a toda a família. O casal
fugiu para o Rio Grande Sul, deixando para trás sua história, um segredo que
pairaria como uma sombra sobre as futuras gerações informa-nos o prefaciador da
obra. Assim, o autor já nos últimos anos de sua vida com finitude já
determinada pela cruel doença degenerativa, nos conta com detalhes aquela bela
história com incursões sobre o próprio passado, suas dúvidas e o pesado
silêncio imposto pela família em relação aos avós. Contou também de sua relação com a doença e suas percepções
sobre a vida, ainda que num momento muito doloroso do estágio degenerativo do
insidioso mal que minou sua saúde e o colheu prematuramente. De fato, uma bela história para ser lida e relida, o que,
aliás, fiz agora, apenas seis meses depois da primeira leitura do livro “Meus começos e meu fim”.
Se por um lado a história dos avós é bonita e
emocionante, por ter sido vivida no início do século passado, refletindo muita coragem
resiliência e imenso amor, não menos interessantes são as conclusões do autor
em meio a tantos conflitos sobre o segredo de família. Termina o livro com um
capítulo intitulado “Uma última mentira” e o abre com as palavras de Clarice
Lispector:
“Mentir
dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece.”
Nirlando Beirão explica que as palavras acima contêm um
silêncio. Ele próprio buscou frases que fizessem sentido à narrativa de fatos
que aconteceram com seus avós, mas foram apenas sussurrados em murmúrios de mistérios,
porém foram reais e ainda há testemunhas. Prossegue o autor..., “contei
mentiras ao longo da vida...”, e mais adiante explica que essas mentiras encobrem, entre o trapaceiro e o trapaceado, uma coisa
chamada Amor! E continua: “Mentiras, eu disse, mas, assim como vovó e vovô
se preveniram, escondendo a verdade de seus atos, também me alberguei no abismo
dos silêncios e no labirinto do subentendido”. Às vezes pensamos que enganamos
os amigos, ainda que em nome do amor, na ânsia de preservar-lhes um dissabor ou
decepção, mas, não, eles nos conhecem. Os amigos do Beirão lhe disseram:
“ah..., você não vai revelar nada de sua vida (no livro), você vai é se
esconder atrás da história de seus avós”. Humildemente ele reconhece que seus silêncios foram premeditados, lacunas de covardia,
omissões às vezes ignominiosas, mas, por outro lado e com magnanimidade na
alma, atribui às mentiras de seus avós, que chamou de silêncio ardiloso, o aval das circunstâncias. E num
gesto de plena e amorosa reconciliação consigo mesmo, explica que eles, os seus
avós, acuados pela verdade criada pelos
outros, criaram, portanto, a sua própria verdade – íntima, segredada, com
certeza doída, difícil de compartilhar, impossível de explicar, pois infringia
os costumes, “as verdades da época”, pois foi construída ao calor de cada dia
no improviso do amor.
Lendo uma
história assim, com profundas imersões nos conceitos filosóficos da vida e
crueza no tratamento literário de sua insidiosa doença, o autor nos leva a
acreditar que quando estamos acuados pelas “verdades
dos outros”, resta-nos agir com a mesma arma. Criar a nossa própria verdade
que, nas pessoas de bem, está sempre estribada no amor. Desde muito aprendi que
o homem é produto do meio – frase do filósofo Jean-Jacques Rousseau, um dos
maiores expoentes do iluminismo, que se baseou no princípio de que a natureza
humana é boa. Sim, nascemos puros, mas
nos tornamos escravos do nosso tempo, de seus costumes e circunstâncias, cheios
de hipocrisias, onde nem sempre as versões daqueles costumes de época refletem
a verdade, mas apenas uma convenção local.
Certamente deve ser por isso que há tantos
segredos de família, como esse do casamento de um padre, verdadeiro tabu,
sobretudo entre os imigrados de Portugal, último reduto europeu da associação
entre a Igreja e o Estado. Assuntos constrangedores, os ditos “Segredos de Estado”,
por exemplo, têm sua divulgação proibida por cinquenta anos, tempo suficiente
para que se sucedam gerações e os protagonistas já tenham nos deixado para
sempre. No âmbito familiar a demora pode ser um pouco maior. Eu mesmo só vim a
descobrir pequenos segredos de família aos 70 anos, quando iniciei pesquisas
genealógicas, chequei datas e entrevistei anciãos de mais de noventa anos de
idade. E com que prazer nos contaram histórias cabeludas, como a desatar um nó
atravessado na garganta, um segredo guardado consigo mesmo até as quase
finitude de seus dias. Mas não só os nonagenários gostam de nos contar os
causos e causos, pois os amigos de infância e juventude, também já calejados
pelo status quo que insiste em viver
na hipocrisia, sabedores de nosso projeto de escrever sobre as figuras e fatos
de nossa terra, enchem nos ouvidos com as mais estranhas e inesperadas
histórias de até então insuspeitos cidadãos e cidadãs. Parentes ou simples
conhecidos com inúmeras histórias de amor, disputas por heranças e até mesmo,
nesse campo, com pequenas trapaças de quem mais tarde passou a impressão de
cidadão mais probo do mundo. Pura hipocrisia. É compreensível, pois faz parte
da natureza humana.
O autor Nirlando Beirão acertou ao dizer que o
melhor caminho, quando se está acuado pelas “verdades dos outros”, é agir com a
mesma arma, criando a sua própria verdade que, nas pessoas de bem, está sempre
estribada no amor. Assim são os segredos de família. E devem ser respeitados.
Dar tempo ao tempo ainda é o melhor remédio nesses casos. Mas, há um limite e
no caso da história dos avós, descoberta e pesquisada com afinco pelo autor do
livro e já passados cem anos ele se viu premido pelas circunstâncias de seu
precário estado de saúde. Assim que recebeu o terrível diagnostico da insidiosa
doença, tratou logo de escrever a “sua” história, sua versão para publicá-la,
desvendando de vez o tão guardado segredo familiar – filhos e netos de padre.
Ainda pôde ver seu livro sair do prelo e receber a crítica elogiosa do publico
e colegas das letras. Atitude corajosa, pois a maioria prefere deixar
recomendação expressa aos parentes para só publicarem suas memórias post mortem. E quando alguém mais afoito
se atreve a publicar uma biografia não autorizada, principalmente quando o
protagonista ainda em pleno gozo da vida, o processo judicial é certeiro, seja
por parte do protagonista principal ou mesmo de alguém citado no enredo, nem
sempre muito santo, ou melhor, quase sempre. Pois bem, este Menino das Lavras
tem registros de sobra, desde criança, nas mãos do Dr Jacintho Scorza, que o
operou e salvou de uma gravíssima pleurite, aos dois anos de idade. Até os anos
atuais de 2020, lá se vão mais de setenta anos contados em crônicas (umas 200
já publicadas em blog e outras 300 aguardando a vez..., e quem sabe, talvez
esperar mais uns 20 anos após o post
mortem, especialmente os casos de espionagens estrangeiras na área de
recursos da fauna e flora amazônica, quando expulsamos de nosso país um espião
travestido de executivo universitário).
À parte os casos pitorescos, quanto mais
recentes, mais interessante se torna a história, pois, à moda de Rubem Alves e
do próprio Beirão, muitas delas incluem em cada etapa da vida, reflexões que
derivam de ligeiros ensaios sobre literatura, filosofia e história, sempre com
o foco na Vida. É interessante notar que muitos autores e em especial o
filósofo Rubem Alves, nos levam a concluir que a alma dos velhos e
das crianças brincam no mesmo tempo. As crianças ainda sabem aquilo que os velhos
esqueceram e têm de aprender de novo: que a vida é brinquedo que para nada
serve, a não ser para a alegria! Não à toa, quando distantes de sua terra, dos
doces anos da infância, todo velho almeja voltar para lá, ainda que em forma de
cinzas a serem semeadas sobre o solo natal. Não
permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá, cantou em prosa e versos o
poeta Gonçalves Dias, em sua belíssima Canção do Exílio. É a vida, e escrever
sobre o delicioso passado é o elixir que nutre nossa alma.
Assim
você poderá ir longe na vida, muito além do horizonte, batalhar, conquistar seu
espaço, mesmo que em algum desses lugares o céu não brilhe tanto para você e
pareça escuro. Mas, diz a sabedoria que às vezes a ausência de luz é necessária
para que a valorizemos. É na escuridão, no vazio do pensamento, que residem as
melhores reflexões que nos conduzem à valorização do amor, das amizades às
pessoas. Na solidão, o indivíduo entende
que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas dentro dele mesmo e
não a partir do outro. Ao perceber isto, ele se torna menos crítico e mais
compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um. O
certo é que nunca estamos sós. Embora distantes, sabemos que podemos voltar
para a casa. E sempre podemos voltar de onde quer que estejamos, para junto dos
entes queridos que, embora ausentes fisicamente, estão permanentemente em
nossos corações. Não há solidão quando se tem família e amigos. A boa companhia
de um livro também faz bem à alma. E agora, Natal, é época de celebrações e em
meio à atual pandemia, nada melhor que o seio da família, com os filhos, netos
e agregados. Tim-tim... à vida. Saúde..., e bons livros para enlevar a alma.
Um abraço
para os amigos e...
Feliz Natal!
Brasília, 25 de dezembro de 2020
Paulo das Lavras
Vamos embora, lá, pegar um livro...? Aproveite o isolamento em casa, o melhor lugar para se ler. Não tem ainda o livro desejado? As compras on line estão bastante ágeis, com entregas em até três dias.
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