Certa
vez escrevi uma crônica com o título “Reflexões sobre a morte”, mas na verdade
discorria mais sobre a vida que a morte propriamente. Hoje, embora o título
faça referencia à vida, falarei mais sobre os perigos dela e das inesperadas visitas
do fantasma da morte. O menino das Lavras recebeu pelo menos seis visitas daquela
que se fantasia de velha, estilo caveira, vestida de preto e portando uma foice
às costas. A primeira vez que “recebi” sua visita foi aos dois anos de idade. E
foi bem demorada, pois a “velhinha da foice” ficou nove meses me namorando
enquanto me recuperava de delicada e complexa cirurgia torácica. Livrei-me dela
graças aos cuidados intensivos da família que, literalmente, carregou-me no
colo 24 horas/dia/09 meses, quando em recuperação com sonda de dreno cravada
nas costas.
Na
segunda vez a convivência com a tal velhinha, que vem buscar as almas sem aviso
prévio, foi bem mais curta. Apenas uns dez minutos, tempo suficiente para a
retirada do menino de quatro anos do fundo de um reservatório d´água e os
procedimentos de salvamento com massagens cardíacas e respiração forçada até a
ressuscitação. Dez minutos são muitos, mas muito menos tempo do que aquele
namoro de nove meses da primeira vez que a conheceu. Mas, porém, todavia,
entretanto, contudo, não obstante e ainda assim, “apenasmente”, como diria
Odorico Paraguaçu, foi tempo bastante suficiente para que o menino travesso
atravessasse a ponte do infinito para o outro mundo, abraçado à dona que
carrega uma enorme foice nas costas... Porém, a rapidez com que a mãe o pescou
do fundo do reservatório d´água e os imediatos procedimentos de salvamento em
casos de afogamento, foram como um puxão para trás, pela ponta da longa saia
preta, ou quem sabe pelo cabo daquela foice em arco, que ela carrega em seu voo
em direção ao infinito. E foi um safanão enorme naquela bruxuleante figura,
atrevida, que sempre nos espreita, ansiosa para nos levar para o além. Digo
grande porque nada se compara à força do amor de mãe, ainda mais quando
acompanhado do desespero, da luta pela volta à vida. Ao final da peleja, 2 x 0
do menino sobre a dona morte, graças ao infinito amor de mãe e seus clamores a
Deus, sempre atendidos.
A
terceira vez foi em BH, a capital mineira onde o jovem engenheiro trabalhava.
Menino franzino, um workhaolic sem igual, morador das proximidades de grande
centro hospitalar, bairro São Lucas, onde se situa a Santa Casa e vários outros
hospitais, área de elevado índice de contaminação do ar. Plantava florestas
pelas serras geladas de Ouro Preto Mariana, Caraça e também na Serra do Cipó, um
pouco mais longe, pelas bandas de Diamantina. Nesses ambientes em que vivia, adquiriu
grave doença pulmonar que quase o entregou à velha da cara de caveira e foice a
tiracolo. O médico chegou a prognosticar para a pessoa da família que o
acompanhava: “Leve-o para morrer em Lavras...”. Matei o prognóstico equivocado,
enganei novamente a velhinha de preto e mandei-a esperar mais um pouco com a
sua foice ceifadeira de vidas. E não é que ela, a velhinha da foice, com seu
espírito vingativo armou outra contra mim? Foi à forra, pela quarta vez, ali
mesmo em BH, de onde eu me mudara havia 20 anos. Ela não se esqueceu e talvez
para se vingar dos 3 x 0, espreitou novamente o menino que chegava de Brasília a
bordo de um Boeing 737-300, novinho em folha. Surpreendido por grande
tempestade de chuva e vento, a aeronave foi derrubada ao se aproximar da pista
de pouso em Confins. Com o choque direto no solo partiu a asa esquerda, trem de
pouso e turbina, espalhando combustível, no qual todos caímos e nos encharcamos
de querosene. Em segundos poderíamos ser transformados em “homem-tocha”. Por
ironia, a própria tempestade d´água evitou o incêndio e explosão, pois turbina
incandescente riscava a pista e soltava um turbilhão de fagulhas como se um
esmeril fosse. A própria enxurrada por sobre o asfalto, com quase meio metro de
altura, apagava as fagulhas antes que subissem à tona e encontrasse o mar de
querosene, o combustível que flutuava por sobre a água. Salvamo-nos todos, apenas com ligeiros
ferimentos. 4 x 0 na caveira da foice ceifadeira de vidas. Outros dois
acidentes aéreos, nos quais se encontrava o menino, aconteceram nos EUA, em Washington
e Las Vegas, com pane hidráulica no primeiro e incêndio a bordo no segundo. Felizmente,
em ambos, foi possível se desfazer do combustível e realizar pousos de emergência,
sem vítimas.
É
ou não é para se namorar a vida, com gosto, muito mais gostoso, com sabor de
vitória? E no dia em que ela me vencer de nada adiantará o futuro escore de 4 x
1. Prevalecerá a única vitória dela e nem terei o direito de pedir revanche,
lógico. O jogo da vida não é como nos esportes ou nas disputas humanas. Fosse
assim eu seria sagrado campeão por ter vencido a maioria dos jogos, 4 x 1. Mas
não é assim, pois terei perdido para sempre, mesmo com uma única derrota depois
de quatro vitórias. Mas, levarei vitórias muito mais importantes que essas
quatro, que impus à velha da foice, ao longo de sete décadas e meia.
Primeiramente, e a maior delas, a lição aprendida com essas escaramuças que
enfrentei. É preciso encarar a vida com alegria na alma, responsabilidade
social, muito trabalho e sobretudo amor. Essa é a receita que penso ser
essencial para, ao fim, colher os louros da vitória, o sucesso e poder dizer,
na despedida: vivi a vida, de bem com ela e nada me deve. Mas o que é mesmo o
sucesso? O sucesso nada mais é do que
viver com alegria. Então posso afirmar com convicção que sou muito bem
sucedido, pois veja o que disse um filósofo:
Aquela
lúgubre velha senhora de capa preta ainda não conseguiu levar-me, mas também
não avisou quando virá e por isso trato logo de deixar registrada a minha
última vontade nesta vida de sucesso: que minhas cinzas sejam dividas e a
primeira parte semeada sob o belíssimo pé de ipê amarelo, defronte à janela do
quarto em que nasci, na Fazenda Retiro dos Ipês, em Lavras, onde sempre viveram
meus pais. Daquele solo retiraram o nosso sustento e ali crescemos felizes,
crianças a brincar por toda parte. Sejamos, pois, também gratos ao solo, pois
ele nos alimenta na vida e nos acolhe na morte, seja ele, o solo roxo, vermelho
que produz alimentos ou o amarelo da bauxita (alumínio), marrom e azul dos
minérios de ferro e manganês. É dele, do solo, que também brota a água que
sacia nossa sede e faz fluir o sangue em nossas veias.
Outra
parte das cinzas também deverá ser semeada sob o enorme ipê rosa que plantei
nos jardins de minha casa, em Brasília. Cidade onde tenho vivido a maior parte
de toda a minha vida, desde o ano de 1975, quando aqui cheguei para missão
oficial no Ministério da Educação. Percorri meio mundo de Europa e todas as
Américas em demoradas missões de trabalho e não encontrei cidade como a capital
de nosso país. Planejada com amplos espaços setorizados, certinha e com belíssimos
prédios públicos que mais parecem esculturas. Seus parques, jardins
maravilhosos e mais de 120 quilômetros de alamedas arborizadas que circundam as
residências, verdadeiros bosques recheados de árvores frutíferas. Neles pode-se
caminhar à sombra, mesmo com sol a pino, por entre flores e pássaros que se
deliciam com os frutos, se acasalam e nidificam. E caminhar, sentar-se à sombra
de uma árvore para apreciar essa beleza natural é como estar num clube da vida.
Não há solidão ali, nunca, pois as próprias plantas criam seu ambiente, se
multiplicam, criam sombras, frutos e convidam os pássaros e também a nós para o
seu derredor. É nesse silêncio, sob uma árvore e à vista dos jardins de flores,
que somos convidados a meditar, a pensar nessas maravilhas e encontrar caminhos
e agradecer pela vida, pelo solo, a natureza-mãe que nos sustenta e por último
nos acolhe para sempre. Por isso, ao dar uma parada sob uma delas e tudo
contemplar, ali, sozinho, não tenho medo de contrariar Aristóteles. Este, dizia
há mais de 2.300 anos, na antiga Grécia, que aquele que encontra prazer na
solidão ou é fera selvagem ou é deus. Nem um nem outro, apenas tomo a palavra
“selvagem” para transforma-la em “natureza” e dizer que ela é o paraíso. Nela
vivi em harmonia e assim quero que minhas cinzas repousem sob duas de suas imponentes
árvores.
Namorei
a vida com muito gosto e sucesso, mas com a humildade de reconhecer o valor da
família, dos amigos e a maravilha da natureza que nos cerca com alimentos para
o corpo e a alma, com seus campos cobertos de plantações, florestas, rios e
jardins floridos, belos ipês, cássias e flamboyants, dentre tantas árvores que
servem de descanso e repouso para a vista e a alma. Por isso a razão de minha
última vontade, devolver as cinzas aos belíssimos cenários daqueles locais que
me viram nascer e me acolheram por toda a vida, proporcionando-me a alegria do
viver, com pleno e muito sucesso, na definição filosófica já citada. E quanto
aos cenários, posso dizer que lhes tratei com muito carinho e amor, pois
plantei por onde passei muitos jardins, literalmente, e neles minhas cinzas
retribuirão o pó da terra que sempre fomos, conforme dito bíblico: tudo veio do
pó e ao pó voltará.
O
sucesso, repito, nada mais é que viver a vida com alegria. Isto é o que faz a
diferença e assim, os tais 4 ou 6 x 0 que supostamente representariam minhas vitórias,
nada mais são do que uma forma de relevar e tratar os percalços de forma
positiva e deles tirar proveito. Não importa, portanto, se a vida é ou será
curta ou longa, pois o que vale mesmo é que ela “seja intensa, verdadeira,
pura... enquanto durar”, como bem escreveu a poetisa Cora Coralina. Ninguém
gosta de falar de morte, inclusive eu. Minhas crônicas são de puro louvor à
vida, mas, quando chegar a hora nada de UTI para prolongar a sobrevivência por
alguns dias. Quero apenas a medicina paliativa, ou seja, alivio da dor, mas que
deixa o organismo agir por si próprio. A falência geral dos órgãos é natural,
inevitável e devemos estar preparados para isso, aceitando a lei da vida. E
nessa hora, estar rodeado pelos entes queridos, ou no aconchego do lar, é o
mais importante para quem parte. Mas, vivamos a vida com intensidade e a
compartilhemos com todos, pois só assim a felicidade é verdadeira.
Devemos
viver cada dia como se fosse o último, alegre, feliz consigo, seu ambiente e
com todos. E se eu partir logo e alguns amigos vierem contar algum fato a meu
respeito, ou mesmo uma fake news,
ouça e acrescente a sua versão. Se me elogiarem demais, corrija o exagero e se
criticarem muito, defenda-me. E como disse o poeta, acho que não vou estranhar
o céu, pois, ser seu amigo já é um pedaço dele.
Tim-tim,
saúde! Namoremos, pois, a vida!
Brasília,
04 de fevereiro de 2017
Paulo
das Lavras
Sob esse belo pé
de ipê amarelo, minhas cinzas repousarão
bem em frente à
janela do quarto onde nasci, na fazenda de meus pais,
há mais de sete
décadas. Certamente ali também foi
enterrado
o umbigo, como mandava a tradição.
Uma parte das
cinzas será depositada aqui, sob o enorme ipê-rosa
que eu mesmo
plantei em minha casa, ao lado de um rego d’água
e um pé de pera portuguesa que, aliás, aparece
carregado de frutas,
atraindo pássaros e até o cavalo que gosta de
aparar o gramado.
Apreciar esse tapete
rosa das flores do ipê é a pura felicidade.
Venda do Zeca na
Serra do Cipó. Tradição centenária. Naquela serra gelada,
em plantios
florestais, contraí uma séria doença pulmonar, vencida em seguida.
Foto: Cida
Barboza
Sejamos gratos
ao solo, ele nos alimenta em vida e nos acolhe na morte.
Tomar um café
super-selecionado, produzido e colhido com especial cuidado...
não tem preço. É
como namorar a vida, só alegria, alma leve, em harmonia
com a natureza,
na chácara que construí.
A harmonia de
uma cidade-parque, com suas enormes áreas verdes e
belíssimos
monumentos arquitetônicos, aqui presentes: o conjunto de prédios
do Congresso Nacional, ao centro e o mais belo
de todos, a Catedral,
que aparece no
retrovisor da janela do carro, são convites para a contemplação
e admiração, prazer repetido diariamente, por
quase quatro décadas,
ao nos
dirigirmos pra o trabalho, bem ali, na Esplanada dos Ministérios.
Nunca pensei que
a goiabeira que plantei na quadra residencial, para
deleite das
crianças, fosse também servir de atração para bandos de
curicacas,
enormes aves de bico longo, até então nunca
vistas em pleno centro urbano. Vida pulsante,
alegria sem fim
no verde da cidade parque
Os frondosos
bosques cercam as quadras residenciais. 120 km de
passarelas para
pedestres e outro tanto para ciclistas. Harmonia
com a natureza nos traz felicidade Verdadeiro clube da vida.
Um “chega pra
lá” naquela velha senhora, de preto e que vive a correr atrás
da gente com uma
longa foice nas costas. Pistas para a gente correr não faltam por aqui...rsrs
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