O cantor e compositor Biafra expressou muito bem o sentimento de voar
que povoa a mente humana. Voar é um sonho que cultivamos desde criança!
O menino que habitava o campo mudou para a
cidade, passando a morar próximo ao aeroporto. Desde então passou a admirar os
grandes aviões da época, os DC-3 das empresas aéreas Nacional e Real Aerovias,
que pousavam na cidade de Lavras todas as manhãs com destino ao Rio, São Paulo
e Belo Horizonte. Era mesmo fascinante ver e sentir aquelas enormes aeronaves
passando a pouco mais de 200
metros de altura e a menos de dois km da cabeceira do
campo de aviação, rugindo seus motores e zunindo as hélices. O menino parava o
futebol ou qualquer outra brincadeira e ficava extasiado, de queixo caído a
contemplar os pousos daqueles enormes pássaros prateados. Em dias de neblina
matinal o prazer da contemplação era maior, pois os aviões eram obrigados a
sobrevoar (ciscar) as imediações do aeroporto por muito tempo até que a
cerração se dissipasse. Como podem voar? Que tamanho teria ele? E o piloto? Quantas
pessoas caberiam lá dentro? Como seria voar nele? Eram perguntas que aguçavam a
imaginação do menino sonhador, tal qual o mitológico Ícaro.
Contemplar as aves de
rapina que habitavam os altos da Serra da Bocaina e de lá vinham planando nas
correntes ascendentes dos ventos sudeste e depois em mergulhos rodopiantes e
certeiros sobre as presas incautas, era também outra forma de apreciar e
invejar os voos nas alturas. Aliás, o sonho das alturas foi anterior aos
aviões, pois o menino contemplava, desde tenra infância, as montanhas que
circundam sua casa na fazenda. Pela janela da cozinha, especialmente durante o
café da manhã, ao lado do fogão à lenha, ficava a imaginar, desejando uma
escalada àquela enorme montanha que se antepunha, ali bem perto. Queria satisfazer
sua curiosidade e fértil imaginação, buscando respostas para: que teria lá, do
outro lado? Que se poderia ver lá de cima? A vista alcançaria muito longe? Haveria
um rio? Uma cidade ou somente matas cheias de bichos? Tudo intrigava o menino e
todos os dias ao ver as aves de rapina descerem em voos, planando suavemente,
imaginava que ele também pudesse fazer o mesmo se conseguisse atingir o topo
daquela enorme montanha rochosa e com algumas árvores, isoladas, majestosas que
se despontavam contra o céu azul. A montanha era um desafio, uma cortina para o
horizonte do garoto inquieto, ansioso e desejoso de “ver o outro lado” do seu
mundo e arriscar um voo com as asas de sua imaginação como no sonho de Ícaro.
Mas a vontade e o desejo incontido de voar
permaneceram guardados no seu imaginário por muito tempo, numa longa espera.
Somente muito mais tarde experimentou o seu primeiro voo, e para sua
satisfação, num belo e prateado DC-3 da Varig, igualzinho àqueles que tanto
cobiçara quando criança. Quanta emoção para o jovem recém-formado engenheiro,
decolando da cidade de Montes Claros, onde fora a trabalho, para Belo
Horizonte, sua base e residência. Uma hora de pleno êxtase a observar o
interior da aeronave, as aeromoças bonitas, bem maquiadas e com uniformes
impecáveis. Chamava a atenção o rugido ensurdecedor dos motores na decolagem,
velho conhecido desde a infância e então, pela primeira vez, a sensação de
flutuar, a ascensão, a paisagem que se tornava cada vez menor em seus detalhes
e ao mesmo tempo gigantesca na distancia alcançada pela vista. O fascínio da navegação
ao identificar rios, montanhas e cidades conhecidas, agora vistos do alto em voo
de cruzeiro, a aproximação do aeroporto da Pampulha em Belo Horizonte e o
pouso suave, perfeito, para completar aquela experiência tão sonhada e
cultivada na infância foram realmente marcantes.
Logo em seguida o jovem
engenheiro, professor e executivo universitário e gestor público da área da
educação superior, passou a realizar trabalhos e missões em todo o território
nacional e boa parte do mundo, América do Norte, Europa, América Central e do
Sul. E tome aviões Douglas - DC 3, Convair, Electra, Viscount, Avro, Focker 27
Focker 50, Samurai, Navajo, Cessna King Air, Cessna 172, Cv 580 Allegheny/USA, Sikorsky Helicopter S 69, , Caravelle, BAC- One Eleven, Focker 100,
DC-8, DC-9, DC-10, C-95 FAB- EMB-20
Bandeirante, FAB- EMB 120- Brasília, ERJ 145 e 170-Jet Class, Boeings 707, 727,
737, 757, 767, 747-Jumbo de 400 passageiros ( o must dos top line), Tristar/British
Airways, Airbus A-300, A-319, A-320, A-321, FAB – Jet BAC- HS 111, Lear Jet, ATR-40,
LET–410, Bombadier, Fairchild, Piper Paulistinha - PA-18 Piper Cherokee, Beechcraft-Baron,
Aeroboero e tantos outros em viagens cruzando continentes e oceanos, ou apenas
fazendo piruetas nos céus de Lavras, São Carlos ou Brasília. E hoje... são quase
de 2.500 horas de voos ... o bastante para satisfazer os sonhos do menino
fascinado pelos pássaros de prata que passavam sobre sua casa pousando no campo
de aviação logo adiante.
Freud tem razão... os sonhos da infância,
quando realizados mais tarde, têm um significado especial para a alma. A
compulsão de realizar os sonhos acalentados todos os dias da infância não teve
limites. Além dos voos comerciais e fretados, o esporte de aeromodelismo foi
praticado em pistas de Lavras, no campo de futebol do Colégio Aparecida, em
frente ao Tiro de Guerra e em Brasília, no parque da cidade e no centro
esportivo ao lado da torre de TV e na pista do final da Asa Sul. Visitas foram
realizadas ao Museu Air and Space em Washington, com fotos da cápsula do
primeiro astronauta americano e ainda voos panorâmicos sobre a baía do rio
Hudson, em Nova York
e Nova Jersey, a bordo de enorme helicóptero Sikorsky S 69, de 20 passageiros.
A fábrica de modernos jatos da EMBRAER, em São José dos Campos também mereceu visita, como
também a Base Aérea de Anápolis com seus Super Mirage III, com direito à
demonstração de manobras reais e fotos com o piloto herói que interceptou um Ilyushin
cubano, intruso nos céus de nosso país em 1982, quando em voo clandestino para
apoio ao governo argentino contra os britânicos na guerra das Malvinas. Nessa
base aérea o jovem sonhador pôde pilotar o super Mirage III no simulador com pouso acidentado no Galeão
(faltou habilidade ao curioso aprendiz de piloto de caça). Não faltou também a
foto com o astronauta brasileiro Marcos Pontes, ao lado de um protótipo do 14
BIS.
Essa vazão
dos sonhos era intensa e por isso a frequência aos aeroclubes de Lavras, São
Carlos e Brasília era ilimitada. Ali se realizavam manobras radicais de
loopings e “perdas” (stall) de tirarem o fôlego. Também não faltou uma visita ao
Museu de Santos Dumont, na Fazenda Cabangu, entre Juiz de Fora e Barbacena. A
satisfação de ver, sentir e o prazer de tornar realidade um sonho tão intenso,
cultivado a vida toda, proporciona-nos a sensação de uma felicidade infinita, mais
profunda e gratificante, enlevando nossa alma que, literalmente, flutua nas
nuvens. É nos voos em cruzeiro dos modernos jatos, a 10 ou 11.000 metros de
altura que, em completo estado de meditação a contemplar o espaço, usufruindo
do silêncio a bordo, que tenho tido as melhores inspirações para escrever algo
sobre a beleza e o valor da vida.
Sou grato a Deus por ter me proporcionado
pequenos prazeres gestados na infância e que servem para valorizar a vida,
tornando-me mais feliz, em harmonia com tudo e todos. Sobre isso, disse um
poeta que “ser feliz não é uma fatalidade
do destino, mas uma conquista de quem sabe viajar para dentro de seu próprio
ser. É também não ter medo de seus próprios sentimentos. É saber falar de si
mesmo. Ser feliz é deixar agir a criança
livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós” (*). E
literalmente é isso que faço quando estou nas nuvens a bordo de aviões,
buscando inspiração no sonho daquela criança que fui, que não desgrudava os
olhos dos céus, dos aviões que povoavam seus planos de um dia voar. Posso,
portanto, dizer que entro em total estado de felicidade, até mesmo por estar
ali, anonimamente entre tantos passageiros da mesma aeronave. Sim, ser feliz
não é apenas ficar contente e orgulhoso pelos aplausos dos alunos ou das plateias
lotadas de PhDs e top of minds em
São Paulo , Paris ou Washington, no Departamento de Estado Norte-Americano,
onde já ministrei palestras, mas é também encontrar a alegria no anonimato,
sozinho, no silêncio reconfortante da alma. E na maioria das vezes isso
acontece quando estou realizando o sonho do menino que queria voar como os pássaros
e depois nos aviões.
O cantor
Biafra parece ter tido a mesma sensação quando compôs a letra de sua música
“Sonho de Ícaro”, de quem plagiei o título desta crônica e que transcrevo a
seguir:
Sonho
de Ícaro (Música- performance de Biafra)
Voar, voar, subir, subir, ir por onde for.
Descer até o céu, cair ou mudar de cor
Anjos de gás, asas de ilusão
E um sonho audaz feito um balão
No ar no ar eu sou assim, brilho do farol
O que sai de mim vem do prazer
De querer sentir o que eu não posso ter
O que faz de mim ser o que sou
É gostar de ir por onde ninguém for.....
Descer até o céu, cair ou mudar de cor
Anjos de gás, asas de ilusão
E um sonho audaz feito um balão
No ar no ar eu sou assim, brilho do farol
O que sai de mim vem do prazer
De querer sentir o que eu não posso ter
O que faz de mim ser o que sou
É gostar de ir por onde ninguém for.....
Do alto coração mais alto coração
Viver, viver e não fingir esconder no olhar
Faça o sinal cante uma canção
Sentimental em qualquer tom
Repetir o amor já satisfaz
Dentro do bombom há um licor a mais
Ir até que um dia chegue em fim
Em que o sol derreta a cera até o fim
Do alto coração mais alto coração
Viver viver e não fingir esconder no olhar
Viver, viver e não fingir esconder no olhar
Faça o sinal cante uma canção
Sentimental em qualquer tom
Repetir o amor já satisfaz
Dentro do bombom há um licor a mais
Ir até que um dia chegue em fim
Em que o sol derreta a cera até o fim
Do alto coração mais alto coração
Viver viver e não fingir esconder no olhar
Brasília, 25/10/2009 a bordo do Gol 737-700, PR-GOU, POA/BSB
Paulo das Lavras
_______________
(*) Diz a Bíblia que precisamos nos tornar crianças
para ganhar o Céu. Hoje, na convivência maior com os netinhos, pude compreender
melhor esse ensinamento bíblico. Elas, as crianças, são puras, inocentes e
estão sempre a sorrir, estampando a felicidade e nos contagiando. Certamente é
por isso que o poeta descreveu o que é “ser feliz”.
Janeiro
1951 – dois aviões da Nacional Transportes
Aereos
no antigo aeroporto de Lavras.
Foto:
arquivos de Eduardo Cicarelli - in Memórias de Lavras
1989
- Mirage III na Base Aérea de Anápolis em
Operação
de carregamento de canhão e míssil
Embarcando
no Sikorsky S-69, no aerporto de Newark,NJ
New
York Airways-N620PA, novembro de 1977
Centenbário
do 14 Bis, Maceió, outubro de 2006
Paulistinha
no Aeroclube de Lavras
Foto: arquivos de Renato
Libeck
Voar...voar..., subir, subir, ir até o céu....,
como no sonho de Ícaro da música
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