Saudade é um negócio que desperta
na gente uma vontade de encontrar não sei o que... não sei onde... para
resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem sei onde perdi... Assim
escreveu, com muita sensibilidade Clarice Lispector. E sensibilidade é coisa
inata em alguns poucos privilegiados. Tenho um amigo mestre em fazer a gente
sentir saudades. O amigo, Chico do Vale, esse é seu nome, é um fotógrafo
profissional que ensina a arte a quem quiser, sem nada receber a não ser o puro
prazer de repassar o saber. Tem a capacidade e sensibilidade de captar detalhes
e assim provocar os mais variados sentimentos de saudade e amor pela natureza,
coisas vividas e pessoas com as quais convivemos. Suas fotos, ao contrário dos
dizeres da escritora, provocam saudades bem definidas, sejam da infância na
roça ou dos tempos de faculdade e das atividades profissionais. Às vezes nos rememoram
locais pelo nosso imenso país ou no exterior, principalmente Estados Unidos e
França, paises que tanto ele como eu
frequentávamos por ofício. Essas fotos de lugares e pessoas nos levam ao
mais profundo e gostoso sentimento de saudade e amor aos bons momentos da vida.
Foi bem assim quando fui a uma
exposição de fotos promovida pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia – Confea.
Lá estavam as fotos de Chico do Vale. Foi o primeiro contato com o artista e
ex-aluno. Sim, embora eu não goste de dizer e espalhar isso para não denotar tanto (nem sou tão velho
assim...rsrs), ele foi meu aluno no curso de agronomia da antiga Esal/Ufla,
quando ali ministrava a disciplina de construções e saneamento rural. Durante a
exposição contei-lhe que havia adorado a foto da Maria Fumaça na estação de
Tiradentes - MG e que a mesma fazia-me recordar as longas viagens que fiz, a
partir da Estação Costa Pinto, em Lavras, à Itauna onde estudei num seminário.
Eram dezesseis horas de viagem percorrendo 510 km serpenteando as serras, rios
e o cerrado do sul e oeste de Minas. Para minha surpresa ganhei-a, ao final da
exposição, com uma carinhosa dedicatória. A partir de então
tenho apreciado várias outras fotos postadas em sua página nas redes sociais. Sempre
as copio e guardo com pura nostalgia de lembranças que nos enlevam a alma.
Mas hoje vamos falar de sua mais
recente “provocação saudosa”, o fogão de lenha. Mas, antes de discorrer sobre o
fogão propriamente dito cabe dirimir uma dúvida semântica. Seria fogão a lenha ou fogão de lenha? Tanto
faz, pois o uso consagrou ambas as formas e modernamente ainda criou-se outro
termo, embora glamorizado para fins comerciais, fogão caipira. E eis que nosso
amigo publicou a foto de Dona Edna, sua querida mãe, sentada ao lado de um belo
e decorado fogão de lenha, em sua casa na cidade de Itumirim, vizinha à minha terra
natal, Lavras. Na ocasião postei o seguinte comentário: “Meu caro amigo, aquela
baciinha que aparece tampada com um prato, em cima do fogão, fez-me lembrar o
meu prato de comida que era assim acondicionado. Explico. O costume na roça era
almoçar 10:30h ou no mais tardar 11:00h , o qual foi trazido para a cidade.
Como eu só retornava da escola quase ao meio dia, não alcançava mais o almoço
servido à mesa. Naquele tempo não havia o forno de micro-ondas e a solução era
fazer o prato, cobri-lo com outro e deixar sobre o fogão, do jeitinho que Dona
Edna colocou aquela bacia que aparece na bela foto. Assim o prato permanecia
sempre quente, qualquer que fosse a hora, pois o fogo nunca se apagava e
melhor, nunca ressecava a comida, como acontece
hoje no micro-ondas, pois ficava coberto com outro prato”. Não bastasse aquela foto o artista nos brinda,
mais recentemente, com outra do mesmo fogão de lenha. Desta vez com a presença
de Maria do Carmo a cozinheira “de mão cheia”, como dizíamos em Lavras. E então
pedi licença para usar as fotos nesta crônica inteiramente inspirada no fogão
de Dona Edna.
Quer coisa melhor que sentar-se à
beira de um fogão de lenha e aquecer nossos corações com recordações, viajar no
tempo retornando à infância, ouvir o barulhinho do moinho de café afixado no batente
da porta da copa para a cozinha da casa da fazenda? E o cheirinho gostoso e quente do “cafezin” coado
as 5:30h da matina, pouco antes de nossos pais iniciarem a jornada com a
ordenha das vacas? Ah... que saudade daquilo que um dia pudemos desfrutar e nem
nos demos conta de quão gostoso era. Dizem que a saudade que sentimos nem seria
das coisas passadas, mas da infância, da juventude que um dia tivemos. Não
importa. Doces tempos. Quaisquer que sejam as lembranças elas se tornam mais doces com as delícias das coisas que nos
serviram à época e hoje, portanto, maior é o prazer em recordá-las. Clarice Lispector tinha razão quando disse em
seu poema: “sinto saudades de tudo que marcou minha vida. Quando vejo retratos,
quando sinto cheiros, quando escuto uma voz, quando me lembro do passado, eu
sinto saudades... Sinto saudades de amigos que nunca mais vi, de pessoas com
quem não mais falei ou cruzei... Sinto saudades das coisas que vivi e deixei
passar sem curtir na totalidade”.
Ao ver as fotos postadas pelo
amigo parei no tempo. Como seria possível não recordar tudo que vivemos e
convivemos ao redor do fogão de lenha? São histórias e histórias. Impossível
não relembrá-las, a começar pela figura de uma doce mãe e das marias do carmo
que também passaram por nossa vida. E o café coado naquele imenso coador de
pano de saco alvejado, suportado por um jirau de madeira, feito ali mesmo na
fazenda e que chamávamos de estandarte? E o bule de alumínio ou latão pintado
invariavelmente de verde ou quando não, de branco, esfolado e todo enfumaçado
sobre o fogão sempre fumegando? E o café da manhã ao lado do fogão ou assentado
numa banquinha estrategicamente colocada em sua enorme plataforma posterior que
servia de apoio para as lenhas que crepitavam sob a trempe? E até me lembrei do nome impresso
na trempe de ferro fundido: “Usina Queiroz Junior” e que um dia, à caminho de
Belo Horizonte para Ouro Preto, não acreditei no que vi: a tal fábrica, Usina
Queiroz Junior. Pedi ao motorista para parar no acostamento. Desci e soletrei
gostosamente aquele nome, tal qual fazia aprendendo a leitura naquelas letras gravadas
em relevo na chapa de 5 bocas do enorme fogão de lenha da Fazenda Retiro dos
Ipês. Como não me lembrar do café da manhã, ali defronte àquela trempe, com
gostosas broas de fubá assadas no forninho do próprio fogão de lenha, muitas pamonhas,
biscoitos de polvilho ou, na falta dessas quitandas caseiras, uma deliciosa
farofa de farinha de milho com muitos ovos, mais parecendo uma omelete? Sim, o
café era farto, saboroso e nutritivo, pois além das quitandas havia queijo, requeijão,
frutas e leite à vontade, fresquinho, recém chegado do curral.
Mas, para que houvesse o café da
manhã, prontinho ali à mesa à beira do fogão, havia antes um detalhe muito
importante que os meninos jamais poderiam se esquecer. E como não se lembrar
disso ao ver um fogão de lenha crepitando e fumegando? Os meninos tinham a
“obrigação”, na tarde anterior, de ajuntar gravetos ou sabugos e palha de milho
para que na madrugada seguinte nosso pai pudesse acender o fogo. E ai de quem
se esquecesse. Imagine o pai saindo pelo terreiro, no escuro da madrugada (não
havia energia elétrica, ainda) e à vezes com chuva, para procurar gravetos e
palhas... Sem chances de escapar de um severo castigo dos tempos em que não
havia a lei da palmada...rsrs. Mas, continuando com o café da manhã, se quiséssemos engordar ainda mais a
farofa/omelete bastava pegar uma linguiça defumada no varal, vergado pelo peso logo
acima do fogão. A fumaça se encarregava de conservar o produto por meses. Isso
era muito importante, pois não existiam geladeiras e menos ainda o freezer para
congelar as carnes de porco, tão comuns naquela época. As linguiças bastavam
ser penduradas acima do fogão e as carnes bem fritas e apuradas eram colocadas
em latas de 18 litros, onde se despejava a banha derretida que esfriada se
consolidava e conservava por meses. Ah... essas carnes que os cariocas chamam
de “carne de lata” e a produzem para venda em todo o país, ainda hoje é servida
em Brasília em alguns restaurantes, uma
delicia, sabor de infância. Essas carnes assim armazenadas na despensa da casa
grande serviam também para traquinagens
da meninada. Juntos com os amiguinhos visitantes, passávamos na despensa para
surrupiar um baita pedaço daquela carne e come-la ainda lambuzada pela
branquíssima gordura de porco. Tudo isso longe e escondido dos adultos... Doce
farra infantil... Bem, mas essas carnes e a banha de porco eram também
preparadas em enormes fogões de lenha, em tachos de cobre de quase 100 litros
de volume. Havia toda uma técnica para não se queimar com os “espirros” da
gordura escaldante. Coisas que só os adultos podiam fazer, pois aos meninos
cabia apenas olhar de longe e cobiçar o dia do “assalto” à despensa na busca de
lombo, costelinha, suã e tudo mais que fosse possível pescar em meio à banha
branquinha. Esses fogões maiores, para os tachos, serviam também para se fazer
as deliciosas goiabadas, bananadas, doces de
cidra, de leite, figo e marmeladas. Nesta tarefa os meninos eram apenas intrusos
caroneiros por sobre os arreamentos e jacás ou cestos atrelados às cangalhas
dos cavalos, que seguiam em fila, conduzindo as goiabas colhidas nos pés nativos
das pastagens.
E assim vão surgindo, brotando em
gostoso deleite as reminiscências da infância ao lado do fogão de lenha que
servia também para nos aquecer nos dias
friorentos do inverno do sul de Minas. Nas altitudes de 800 a 1.000
metros as temperaturas beiravam o zero grau com constantes geadas. Aliás, por
falar em aquecer, as serpentinas embutidas no fogão de lenha aqueciam a água 24
horas ao dia. Tomar banho, lavar as louças ou simplesmente escovar os dentes
nas friorentas manhãs eram atividades bem mais agradáveis com aquela água
quentinha. Ah, ainda me lembro daquele conforto quase indispensável nos frios
invernos serranos. Acho mesmo que quem não tem saudade não viveu ou já morreu
por dentro, o que é pior. É bem assim mesmo e busco apoio para essa afirmação
no poeta Bastos Tigre, que escreveu:
Infeliz de quem vive sem saudade,
Do
agridoce pungir alheio às penas,
Sem
lembranças de amor e de amizade,
Hoje
vivendo o dia de hoje, apenas.
Feliz você, amigo Chico que, além de registrar com
fotos, pode ainda usufruir desses doces prazeres. E mais doce que tudo é o amor
que Dona Edna pode lhe dar e por cima, o
carinho da irmã de coração, Maria do Carmo. Imagino, com sincera admiração que ambas
aquecem mais o seu coração do que as chamas daquele tradicional fogão de lenha
que também nos aqueceu por tanto tempo. Obrigado por nos
proporcionar essa oportunidade de relembrar os doces tempos da infância,
como bem cantaram e prosearam o escritor Marcel Proust em sua obra “Em busca do
tempo perdido” e o poeta Mário Quintana. O primeiro, Proust, disse
que "os verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o poeta
Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha casa em que
nasceu". Certamente foi por
isso que construí inteiramente uma chácara na zona rural de Brasília, com
montanhas ao redor, coisa rara no planalto central, mas que faz parte da alma e
do sentimento dos mineiros das alterosas. Construída e enfeitada com bonitos
jardins, lagos, água corrente e até carro de boi e arado de aiveca trazidos do
torrão natal. Não faltou nem o moinho de brinquedo movido pela bica d´água. O
café mereceu destaque especial com vários pés em franca produção, maquinário de
pequeno porte para beneficiamento dos grãos, torrefação e moagem. Há também um
antigo torrador manual usado em fogão de lenha, tal qual aquele fumegante de
sua foto artística. Tem ainda a máquina manual para moagem da cana e produção
do caldo tão apreciado pelas crianças após uma pescaria nos lagos cheios de
lambaris e piabinhas.
Aqui deixo o meu abraço ao eminente
amigo que com suas belas fotos tem produzido o mesmo efeito que Proust narra em
sua obra acima citada. Nela o autor come um bolinho “madeleine” molhado no chá e este faz sua consciência mergulhar no
passado e esquecer a dura circunstância de que o tempo, com suas horas e dias
passam inexoravelmente. Não tem como fugir do ontem e do amanhã... Porém, o
bolinho madeleine lhe dera força para
sentir-se “acima do tempo”, com uma
pderosa alegria que o arrebata e o faz reconstituir toda sua vida,
desde a remota infância até a maturidade.
Assim como o elixir madeleine transportou
e fixou Proust na infância e na adolescência, tenho agora as fotos do amigo Chico
que me levam à essas mesmas reminiscências dos tempos que não voltam mais. Sim,
não voltam, mas a gente os reconstrói a cada momento com a velha casa em que
nascemos e que carregamos para sempre, onde quer que estejamos, em Viçosa,
Itumirim, Lavras ou Brasília.
Também abraço Dona Edna e a
madrinha da culinária no fogão de lenha, Maria do Carmo que por mais de 50 anos
integra sua família. Encerro com a frase que abre esse texto e que fora
quebrada várias vezes com as fotos feitas pelo amigo Chico do Vale que tem nos
mostrado o contrário, como a dizer: bem
sei o que lhe faz recordar coisas e pessoas com as quais vivemos, envelhecemos
e muitas delas desapareceram sob nossos olhos tomando outros rumos.
Saudade, repito, é um negócio que
desperta na gente uma vontade de encontrar não sei o que... não sei onde...
para resgatar alguma coisa que nem sei o que é e nem sei onde perdi... Por
isso, Mário Quintana recomenda que nada melhor do que carregar na memória a
velha casa onde nascemos... e o fogão lenha vem junto!
Brasília, 24 de junho de 2014
Paulo das Lavras
D. Edna, mãe do amigo Chico do Vale
e seu fogão à lenha.
“...ôh, Chico, aquela baciinha que
aparece tampada
com um prato me fez lembrar da infância...”, disse o
Menino das Lavras.
Chico Do Vale escreveu: “Obrigado aos
amigos, pelos comentários, o carinho pela Maria do Carmo. Paulo Roberto, a Maria do Carmo é uma exímia cozinheira, amiga
da nossa família, que sempre está conosco nos melhores momentos que passamos em
Itumirim. Quando nos reunimos sempre é ela que é chamada para fazer uma comida
deliciosa para nós. Tem sido assim há muitos anos. A Maria do Carmo nos
acompanha há mais de 50 anos, desde quando eu era menino. São ótimas lembranças
e por ela temos o maior carinho e amizade...”.
O aroma
do café coado naquele enorme coador de saco alvejado tomava conta de
toda
a casa e nos despertava, ainda que muito cedo, como era o costume nas fazendas.
(Foto
de Chico do Vale)
O
torrador de café, manual, chiava e fumegava exalando um aroma inigualável
do
“cafezin” do sul de Minas. Prática que o meninopara Brasília. (Foto: Chico do Vale)
Grande
Chico do Vale – recebendo a Medalha de Ouro 2013
Confea - Mérito por Serviços Relevantes prestados à
Nação.
O café arábia,variedade “Rubi de
Lavras”, produzindo
em Brasília, para não “perder o
costume” mineiro.
Foto da Maria Fumaça, com
dedicatória de Chico do Vale. À direita, na tela do computador, a
Estação Costa Pinto, onde o menino embarcava para a longa viagem até o
Seminário
O menino
no Seminário no dia em que o Brasil foi campeão na Suécia. É o terceiro em pé
na escadaria
à esquerda. Na foto à direita, é o primeiro à esquerda, de costas, com o braço
levantado. Camisa xadrez, blazer de brim cáqui e corte de cabelo à Príncipe
Danilo, moda nos anos 1950/60. Praticamente ficavam só os cabelos da parte de cima
da cabeça, com as laterais totalmente cortadas à máquina. Hoje, 56 anos depois,
alguns jogadores da Seleção Brasileira estão usando o mesmo corte, entre eles,
Oscar e Thiago Silva. Os padres
holandeses eram os maiores incentivadores da prática de esportes. Futebol à
frente. Padre Luiz Turckenburg, de batina branca, era nosso goleiro.
A casa da fazenda Retiro dos Ipês,
em Lavras, lembranças da garupa do
cavalo com os jacás de
goiabas, o café com quitandas, os doces,
carne na lata e linguiças penduradas no fogão
Doces de goiaba e de...
...figos, feitos no fogão de lenha
carona no cavalo com os jacás
de goiabas,
As carnes mergulhadas na gordura
de porco solidificada
Carne na lata, comercial
Forninho e serpentina, com o
cilindro de água quente ao alto.
Água
quente no banho e na pia, 24 horas
Varal de linguiça à defumar
O bule sobre a trempe, café
quente o dia todo
Meu amigo Paulo Roberto, sua crônica me encheu os olhos d'água. Obrigado. Só mesmo um amigo como voce pra me brindar com esse texto maravilhoso de forma muito especial o carinho que voce dedicou à minha querida mãe e à Maria do Carmo, nossa querida amiga. Vou reproduzir esse texto e enviar para minha mãe, para a Maria do Carmo, enfim para toda a família. Tenho certeza que todos vão adorar. Abraços do amigo Chico do Vale.
ResponderExcluir