Infância feliz! “Guardo as
memórias que me trazem riso,
as pessoas que tocaram a minha alma e
que, de alguma forma, me mudaram para melhor.
Guardo também a infância toda tingida de giz.
Tinha jeito de arco-íris a
minha”.
A vida dá muitas voltas, diz a primeira frase
do título acima e é de uma profundidade imensa. Ela abre a crônica do Dr Howard Kelly, que recebi de minha filha. Uma linda
história. Respondi a ela lembrando um fato semelhante
que acontecera comigo. Ainda hoje, passados muitos anos eu relembro o ocorrido,
contando-o aos meus filhos e enfatizando o prazer, a alegria de se ter a
oportunidade de se corrigir um erro cometido, ou simplesmente retribuir um
mimo, uma graça recebida de outrem. O Dr Howard Kelly, protagonista da crônica
em questão, não cometera nenhum ato que merecesse reparo, mas, guarda muita
semelhança com aquilo que se passou com este menino travesso, que gozava de plena
liberdade em sua chácara a 300 metros de uma das principais ruas da cidade. Ao
contrário do menino travesso, o Dr Kelly ganhou um copo de leite, quando ainda
menino e faminto, foi bater à porta de uma senhora para lhe vender algo. Veja
sua história:
“... O maior erro do ser humano é tentar
tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...". Assim começa a crônica, descrevendo a vida
de um rapaz pobre
chamado Howard Kelly que vendia mercadorias de porta em porta para pagar seus estudos.
Um dia, viu que só lhe restava uma simples moeda de dez centavos e tinha fome.
Decidiu que pediria comida na próxima casa. Porém, seus nervos o traíram quando uma encantadora
mulher jovem lhe abriu a porta. Em vez de comida, pediu um copo de água. Ela
pensou que o jovem parecia faminto e assim lhe deu um grande copo de leite.
Ele
bebeu devagar e depois lhe perguntou: Quanto lhe devo?
-
Não me deves nada - respondeu ela. E continuou - Minha mãe sempre nos ensinou a
nunca aceitar pagamento por uma oferta caridosa.
Ele
disse: - Pois te agradeço de todo coração.
Quando
Howard Kelly saiu daquela casa, não só se sentiu mais forte fisicamente, mas
também sua fé em Deus e nos homens ficou mais forte. Ele
já estava resignado a se render e deixar tudo.
Anos
depois, aquela mulher ficou gravemente doente. Os médicos locais estavam
confusos. Finalmente a enviaram à cidade grande, onde chamaram
um especialista para estudar sua rara enfermidade. Chamaram
o Dr. Howard Kelly. Quando escutou o nome do povoado de onde ela
viera, uma estranha luz encheu seus olhos. Imediatamente,
vestido com a sua bata de doutor, foi ver a paciente. Reconheceu
imediatamente aquela mulher. Determinou-se a fazer o melhor para
salvar aquela vida. Passou a dedicar atenção especial aquela paciente. Depois
de uma demorada luta pela vida da enferma, ganhou a batalha.
O
Dr. Kelly pediu a administração do hospital que lhe enviasse a fatura total dos
gastos para aprová-la. Ele a conferiu e depois escreveu algo e mandou
entrega-la no quarto da paciente. Ela tinha medo de abri-la, porque sabia que
levaria o resto da sua vida para pagar todos os gastos. Mas finalmente quando
abriu a fatura algo lhe chamou a atenção, pois estava escrito o seguinte:
Totalmente
pago há muitos anos com um copo de leite (assinado). Dr.Howard Kelly.
Lágrimas
de alegria correram de seus olhos e seu coração feliz rezou assim:
Graças meu Deus porque teu amor se manifestou nas mãos e nos corações
humanos.
"Na
vida nada acontece por acaso."
Com esse adágio o cronista
encerrou a história vivida pelo Dr Kelly. E é verdade, concordo inteiramente
que nada acontece por acaso em nossas vidas. Eu próprio tive uma
experiência em tudo semelhante à relatada acima. Morava numa grande
chácara com mais de 20 hectares (mais de 20 campos de futebol ou 200.000 m² ), com enorme
casarão de seis quartos, casa de empregado, plantações diversas, um grande
pomar, córrego, mata nativa, vacas, cavalos, etc., etc., situada praticamente
dentro da cidade e hoje se transformou em Vila Cruzeiro do Sul. Era muito
freqüentada pelos amigos de infância que ali se sentiam no paraíso,
pois, desfrutavam de tudo, futebol, cavalgadas, touradas (com bezerros,
lógico) adestramentos de animais, pescaria, natação, caçadas nas
matinhas e melhor de tudo, da fartura das frutas do variado pomar que
tinha pêssegos, marmelos, cana de açúcar, bananas de diversas variedades, ameixas,
goiabas, laranjas, jabuticabas e muitas outras, de modo que se podia
saboreá-las em todas as estações do ano. Um paraíso para crianças de dez
anos que querem liberdade para inventar suas próprias brincadeiras.
Certa vez, esses amiguinhos, incluindo também meu
irmão mais novo (ele também se lembra do ocorrido e não economiza gargalhadas
quando rememoramos o caso), inventaram de praticar estilingadas em todos os
pintinhos de uma galinha que ciscava por perto. A galinha não era nossa e também
não sabíamos a quem pertencia e, por isso, concordei e ainda participei da
matança, embora não tenha acertado nenhuma estilingada. Além de ruim de bola
(era dono da bola e do campo de futebol) era também péssimo no estilingue,
talvez pela deficiência visual, pois havia perdido a visão direita em acidente
aos cinco anos de idade. Mas, foi uma diversão e tanto e parecíamos um bando de
malvados, avalio hoje, pois a cada alvo abatido em plena correria e vôos
desesperados das vítimas, comemorávamos a vitória daquela “tropa” de elite que,
ao final, abatera todos os inimigos – os indefesos pintinhos - que eram em
número superior a 10 ou 12.
Mais
tarde, naquele mesmo dia, uma pobre viúva andou procurando os pintinhos,
já que a galinha chegara à casa sozinha, sem eles. Minha mãe, que era muito
caridosa (sempre tinha um velhinho ou criança amadrinhados para ajudar ou
criar), foi procura-los no nosso enorme quintal. E, nada! Os malfeitores, muito
ladinos, já haviam dado sumiço nos pintainhos mortos a estilingadas. Não me
lembro exatamente se os enterramos ou jogamos na matinha que existia ao lado do
curral, onde a galinha estava ciscando os restos de ração caídos no chão e
alimentando a sua prole.
Ao lado de minha mãe e da dona dos pintinhos, “ajudei” a procurá-los,
caladinho, desconfiado que só, com medo da surra certa se descoberta fosse a
arte do menino custoso.... Procuramos no curral, na matinha, no paiol, no
galinheiro, pomar e..., obviamente, nada encontramos...! Enquanto procurávamos,
a pobre ex-dona contava que aqueles pintinhos se destinariam, no futuro, à
venda dos frangos e as frangas seriam reservadas para produção de ovos.
Quanto mais ela falava mais eu me sentia culpado, com um remorso condoído
de saber que aqueles pintinhos se tornariam sustento para seus filhos.
Tive vontade de confessar para minha mãe, ali mesmo na presença da viúva, com a
esperança de que, talvez, ela a recompensasse em dinheiro ou
com outros franguinhos. Mas, o medo, natural de crianças travessas, foi
mais forte. A pisa certeira com a vara de marmelo era mais temida que o suposto
assombração, que aparecia na mata nas sextas feiras da quaresma. Era aterrador
e portanto, compreensível que tivesse faltado coragem para a confissão.
Ficou apenas o remorso de ver a tristeza daquela pobre mãe que estava
cuidando de encontrar o que era seu e que, inexplicavelmente, desaparecera.
Ficou apenas o mistério, pois galinha alguma abandonaria sua prole de mais de
dez pintinhos e voltaria sozinha para a casa.
Carreguei esse pesado remorso em segredo, sem contar a ninguém, até que
um dia, passados mais de 10 anos, uma das filhas daquela viúva bateu à
porta de nossa casa para pedir algum dinheiro emprestado para pagar o médico e
os remédios necessários para a sua mãe. Ao chegar a casa após o trabalho tomei
conhecimento do pedido e exultei de alegria. Pensei comigo mesmo, chegou a hora
de retirar aquele pesadelo de minha consciência. Pedi à minha irmã que avisasse
à viúva que eu iria providenciar o dinheiro no dia seguinte.
Quando a garota voltou, na hora aprazada,
para buscar o dinheiro, fiz questão de fitar bem o seu semblante humilde e
até mesmo acanhado e dizer-lhe: Diga à sua mãe que o dinheiro não é emprestado,
pois, estou pagando a ela aqueles 10 ou 12 pintinhos que há muito tempo
desapareceram aqui no nosso quintal. Diga, ainda, que eu e os amiguinhos, todos
nós muito travessos, havíamos dado cabo a todos eles, praticando a pontaria com
estilingue. Peça-lhe também que me perdoe por não ter confessado isto a
ninguém, nem mesmo à minha mãe que falecera, prematuramente, pouco tempo
depois do ocorrido. Diga-lhe, finalmente, que o valor daqueles pintinhos, que
agora está sendo resgatado, está multiplicado por muitas vezes, mas, ainda
assim acho que está aquém do peso do remorso que carreguei por todo esse tempo.
Portanto, leve o dinheiro suficiente para pagar a consulta médica e os remédios
necessários e que ela se restabeleça logo.
Ao tomar
conhecimento da história do Dr Howard Kelly, veio-me
à memória esse caso semelhante que se passou comigo. Para ele foi uma enorme
satisfação ter tido a chance de retribuir, com valor financeiro infinitamente
maior, um ato, um simples copo de leite recebido, que foi um gesto de amor daquela
senhora, havia muito tempo. Para mim também foi uma chance de ouro
poder corrigir a estripulia de garoto, que me pesava na consciência por
longo tempo e, melhor ainda, ter podido retribuir na hora certa e com
valor muito acima do prejuízo material causado. O meu alívio foi
multiplicado pela sensação de ter feito uma ação caridosa, no momento certo, socorrendo
a quem muito necessitava.
Acho mesmo, como
disseram ao final daquela mensagem, que "na vida nada acontece por
acaso". Deus faz com que as pessoas “apliquem” algum tipo de
capital na hora certa, pode ser um copo de leite ou os franguinhos supostamente
perdidos ou, quem sabe, apenas uma palavra de conforto a uma pessoa necessitada
e, algum tempo depois, elas o recebem de volta, em dobro ou multiplicado muitas
vezes. Sim, mas quando receberemos de volta a boa ação que viermos a praticar?
Isso não importa. Pratique-a sempre! Basta lembrar o velho adágio: Os filhos
colherão os frutos que seus pais plantarem, ou seja, mesmo que a recompensa não
seja percebida por você, seus filhos estarão sempre colhendo o reconhecimento,
a gratidão daqueles que conhecem ou conheceram as boas ações de seus pais.
Mais, ainda, os próprios filhos reproduzirão aquele modo de vida que sempre vivenciaram...,
o amor ao próximo, numa vida sadia e emocionalmente equilibrada, de bem consigo
mesmo e com a vida ao redor. Mas, por que assim? O cronista que escreveu a
história do Dr Howard também tem a resposta: “... O maior erro do ser
humano é tentar tirar da cabeça aquilo que não sai do coração...”.
Ora, vejam a frase
do poeta e pensador Caio Fernando de Abreu, acima destacada em epígrafe:
“Guardo as
memórias que me trazem riso, as pessoas que tocaram a minha alma e que, de
alguma forma, me mudaram para melhor. Guardo também a infância toda tingida de
giz. Tinha jeito de arco-íris a minha”. E ainda acrescento: A vida
foi justa comigo, pois o que é plantado
no coração jamais sairá. Permanece ali para sempre. As fotos de minha a
infância, que ilustram o texto, são em preto e branco, mas as lembranças são coloridas
e plagiando o citado poeta, também têm as cores dos arco-íris, bem coloridas. Paguei
os franguinhos com amor no coração, em dobro e grato a Deus por ter tido uma
infância feliz e ter-me concedido à oportunidade de retribuir a alguém que
necessitava de ajuda. Tudo na hora certa. Assim é a vida de quem tem a boa
semente plantada no coração, ainda que às vezes erremos, mas sempre haverá a
chance de se corrigir e este ato nos redime a alma.
E Salve o dia de hoje, o Dia da Criança!
Brasília, setembro
de 2002/ outubro de 2019
Paulo das Lavras
O menino, em 1948, quando deixou a fazenda aos três
anos de idade e mudou-se para a cidade.
A escola já esperava as irmãs mais velhas.
Ali foi morar numa enorme chácara, verdadeira fazendinha,
seu paraíso, onde
recebia os amiguinhos e faziam muitas travessuras.
A casa da chácara, na cidade de Lavras, emoldurada
pela belíssima Serra da Bocaina e pelos
ipês amarelos.
O menino deixou a fazenda, mas apenas mudou de endereço,
pois ali também era uma fazendinha. Doce infância em
meio à natureza e vários
amiguinhos que ali frequentavam e também desfrutavam das
delicias daquele paraíso.
Na primeira comunhão, aos dez anos. Nos anos da década
de 1950 os meninos usavam
terno completo,
com gravata e sapato de verniz, impecáveis, para toda e qualquer
solenidade, até mesmo para as missas de domingo.
Adorávamos usar
calça comprida,
imitando os adultos, pois durante a semana inteira
predominavam as calças curtas.
Vinte anos depois, os filhos também
adoravam os fins de semana na chácara,
onde inventavam os próprios brinquedos.
As crianças de hoje são mais conscientes
no trato com os animais e a natureza em geral
Mesmo mais grandinhos, ainda brincam com
os franguinhos, mas com cuidado,
devolvendo-os ao seu ambiente
Brincar com os netos é reviver a
felicidade, a alegria da infância.
Tirar os sapatos, sentar no chão é como se
nos tornássemos crianças novamente.
O poeta e filósofo Rubem Alves tem razão,
pois “os velhos se tornam
crianças e sabem que a vida é alegria”
Infância feliz é um alimento para toda a nossa vida! Muitos detalhes em sua crônica me remetem ao meu passado. Não nas travessuras, claro! Fui quase uma "santinha", apesar de brava e um tanto birrenta! O estilingue me lembrou meu filho mais velho, já falecido, que,certa vez, mirou numa rolinha, no nosso quintal, acertou e pôs-se a chorar, pois tinha certeza que iria errar, não queria matá-la. A vara de marmelo é inesquecível! Em nossa casa, por muitos anos, havia sempre uma bem preparada, guardada no alto de um armário na cozinha. Era uma das grandes ameaças de meu pai, em especial para os 3 irmãos que não eram nada santos, principalmente o loiro que você conhece bem. Mas havia também outros instrumentos de tortura prontos para ação: chinelos de alpargatas Roda que deixavam marcas de corda em círculos, um amolador de navalha e a tradicional correia! Engraçado! Nada disso fez os 6 filhos amarem menos o pai zeloso, cheio das melhores intenções que apenas repetia um tradição das famílias antigas. Afinal, ele nascera em 1912! Outros tempos! Um grande abraço e a minha admiração pelo grande escritor que você se tornou, meu colega dos anos dourados!
ResponderExcluirLindo e emocionante! Escrito num dia especial. Dia da criança, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia de Canonização da Santa Dulce!
ResponderExcluirLindo e emocionante! Escrito num dia especial. Dia da criança, Dia de Nossa Senhora Aparecida, Dia de Canonização da Santa Dulce!
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