Era
uma noite de sábado do mês de fevereiro de 1962. Havia caído, à tarde, uma
chuvinha fina típica de final de verão, mas nada que afugentasse os jovens em
seu habitual programa de footing pela praça, aliás, jardim. O “jardim” estava
apinhado de gente. Jardim, era como os lavrenses chamavam a sua principal
praça, Dr Augusto Silva, o coração da cidade. Ali aconteceria o encerramento de
um evento ciclístico que ficou famoso na cidade. Tão famoso que, mesmo depois
de exatos 53 anos, dois protagonistas daquele evento se encontraram na distante
Brasília e o relembraram com alegria, como a dizer: nós estávamos lá, você se
lembra? Assim são os amigos. É o mesmo que estar em casa sempre, pois são como
irmãos, garantindo-nos que a sua infância e juventude também estão guardadas no
coração deles. Alegria em dose dupla.
E
Brasília às vezes surpreende a gente. Mais de meio século depois, entrando numa
loja comercial da capital federal, eis que de repente e surpreendentemente,
alguém em meio a centenas de pessoas estranhas (é sempre assim em cidades
grandes, você é apenas mais um anônimo) gritou meu nome e esboçou um largo
sorriso de satisfação. Era o amigo dos tempos de juventude em Lavras, José
Alcides Alvarenga. Estudamos no mesmo colégio, frequentamos os bailes do Clube
de Lavras, as sessões de fins de semana do Cine Brasil, cada qual com sua
namorada e por fim, ele como aluno na ESAL/UFLA e eu como professor. Desde
então não mais nos vimos. Alegria sem fim no reencontro. Deixei as compras e
passamos logo a conversar sobre os bons tempos passados em Lavras. Marcamos
outro encontro, visitamos a chácara, meu refúgio e finalmente fui despedir-me
dele, na casa de sua irmã, Lenita, onde se hospedara, a poucas quadras de onde
moro. Foram horas de conversas sobre a cidade e sua gente, os familiares e
amigos, principalmente dos tempos de estudante e primeiros anos de profissão.
Lennon e McCartney foram muito felizes na
canção “In My Life”, quando disseram que há lugares, coisas e pessoas que a
gente se lembra pelo resto da vida. Embora algumas tenham mudado e outras até desapareceram
de nossas mentes, muitas permanecem indeléveis. E desses amigos e lugares, os
melhores são aqueles com os quais compartilhamos a vida, os tempos dourados da
juventude. E eles sempre serão relembrados, onde quer que estejamos ou os
reencontremos. Amigos são mesmo flores plantadas ao longo do nosso caminho e
assim a vida será eterna primavera.
Mas, certa vez, muito marcante, e
não era primavera em Lavras, e sim final de verão daquele ano de 1962, relembrou-me
o dileto amigo José Alcides e emendou: “tenho uma foto em que você aparece ao
meu lado, naquela noite de encerramento da prova de resistência de um ciclista
profissional, que pedalou por três dias consecutivos, sem descer da bicicleta e
eu estava, com uniforme militar do Exército, guarnecendo a área de isolamento,
pois prestava Serviço Militar Obrigatório, no Tiro de Guerra da cidade”. Incrível, memória de elefante,
lembrar-se de um evento de 53 anos atrás e com detalhes de imagem na memória...
O Menino das Lavras nem acreditou quando, poucos dias depois da viagem de volta
do amigo, dele recebeu e-mail com a referida foto. Ali
estávamos os dois e outros amigos de colégio. Também não era primavera, nem em
1962, em Lavras e tampouco em Brasília naquele ano de 2015, quando nos
reencontramos. Ainda assim, Lennon e McCartney estavam certos em sua bela
composição musical “In my life”, pois
o Menino pôde viver “eterna primavera” com as “flores” rememoradas pelo amigo.
Ciclismo era coisa rara, tanto
pela época como pelo costume local. Cidade montanhosa de difícil pedalar, Lavras
não tinha muitas bicicletas como a cidade de Governador Valadares e outras. Mas
havia, sim, na década de 1960, algumas delas de marcas alemãs, como Göricke e Mercswiss, a polonesa Gulliver e
as recém lançadas no Brasil, Caloi e Monark. Em casa havia uma Mercswiss, na cor vermelho-goiaba,
aro 26, própria para meninos, muito resistente. Havia, também em Lavras algumas
bicicletarias, onde se faziam a manutenção e comercialização de bicicletas
usadas, de marcas estrangeiras. A Bicicletaria Ferreira era a mais importante da
cidade e até tinha propaganda pela ZYI-6, Rádio Cultura de Lavras. Após o surgimento das bicicletas nacionais a gurizada passou a preferi-las pois havia
maior quantidade de modelos e tamanhos. Outro detalhe era que as bicicletas
estavam sempre equipadas com campainhas, dínamo gerador e farol. este era necessário porque as cidades do interior, além
de muito mal iluminadas, não dispunham de iluminação em mais da metade de sua
área. A bicicleta, em muitos casos, era o único meio de transporte para aqueles
que residiam mais distantes do centro da cidade, daí a necessidade de farol.
Pois essas e outras
reminiscências, sobre as bicicletas da década de 1960, foram gostosamente
relembradas pelos dois amigos e aqui as compartilhamos com todos.
Brasília, 15 de
outubro de 2015
Paulo das Lavras
José Alcides Alvarenga e Paulo das Lavras, em
Brasília, outubro de 2015,
53 anos depois do evento ciclístico em Lavras, cuja
foto, ele próprio enviou-me.
A alegria do reencontro casual, depois de tanto
tempo, até nos fez rejuvenescer e nos
sentirmos como naqueles idos de 1962.
José Alcides, com uniforme militar, guarnecendo o
cordão de isolamento
da prova ciclística de três dias, sem descer da
bicicleta.
O menino das Lavras aparece de paletó cinza, camisa branca e calça
clara, ao lado de outro com
terno escuro, ao centro da foto. Também aparece na
foto, a meu lado, de camisa xadrez,
o garoto Nilton José Arruda que, mais tarde,
tornou-se professor em colégios da cidade.
Foto: cedida por José Alcides Alvarenga
Caro Paulo,
ResponderExcluirO reencontro de amigos, muito bem narrado na crônica acima, com meu tio José Alcides, teve grande repercussão familiar. Com muita alegria e satisfação ele contava o acontecido.
Agradeço em nome da nossa família a homenagem e a deferência de publicar a crônica.
Grande abraço,
Renata Alvarenga Fleury Ferracina
Prezada Renata, junto-me à família nessa hora de dor pelo passamento do querido e inesquecível José Alcides. A crônica já estava escrita há tempo, aliás, desde setembro de 2015., logo após ele ter me enviado sua própria foto, com uniforme militar do Tiro de Guerra e que ilustra o texto. Era, sim, uma homenagem ao amigo que transbordava doçura no coração. Você nem imagina a alegria que fui tomado ao ouvir alguém, em meio a muitas pessoas numa loja, aqui em Brasília, gritando meu nome e esboçando largo sorriso. Foi como reencontrar um irmão, sumido havia quase cinquenta anos. E a alegria foi recíproca, conforme você mesma relata-me. E note que a foto em que aparecemos juntos, foi tomada na sala da casa de sua saudosa mãe, Lenita, quando lá estive, para as despedidas de retorno de viagem de José Alcides.
ResponderExcluirPoucos dias depois, naquele mesmo setembro de 2015, ele retornou à Brasília, mas, infelizmente, para os funerais da saudosa irmã, Lenita, que vem a ser tua mãe. Acompanhei seu tio por todo o tempo, até o jazigo da família na Ala dos Pioneiros de Brasília, no Campo da Esperança. Só então vi e soube que ali também jazia o companheiro de Lenita, Everardo Curado Fleury, teu pai, pioneiríssimo e muito querido em Brasília.
Assim é a vida, Renata, os entes queridos partem, mas deixam marcas em nossa alma que os tornam imortais e sempre serão lembrados por aquilo que nos legaram, o amor. Por isso, somos todos gratos à sua memória e a essa maravilhosa família. Um forte abraço para você e toda família.
EVERARDO PT2EF faleceu? Como? Aonde?
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