Proust
disse que "os verdadeiros paraísos são os que perdemos" e o
poeta Mário Quintana ensinou que "a gente continua morando na velha
casa em que nasceu" então, deve ter sido por isso que construí
inteiramente uma chácara na zona rural de Brasília, onde há montanhas ao redor,
coisa rara no planalto central, mas que faz parte da alma e do sentimento dos
mineiros das alterosas. Inconscientemente o adulto a construiu ao longo tempo.
Ali a enfeitou com bonitos jardins, lagos e água corrente, carro de boi e arado
de aiveca trazidos da fazenda onde nasceu, nas Minas Gerais. Há, ainda, um Jeep
Willys antigo, reformado e em plena forma para fazer trilhas nas montanhas,
matas e no lago feito especialmente para essa finalidade. Inúmeras fruteiras,
galinhas, cavalo marchador, cães de diferentes raças e até um moinho de
brinquedo que é movido pela bica d´água. Há, também, pequenas plantações de
hortaliças, milho, cana, mandioca, bananas e variado pomar. O café mereceu destaque
especial com vários pés em franca produção, contando ainda com todo o
maquinário, de pequeno porte e original da Pinhalense, para beneficiamento dos
grãos, torrefação e moagem além do antigo torrador manual usado em fogão a
lenha. Há também a máquina manual para moagem da cana e produção do caldo tão
apreciado pelas crianças após uma pescaria nos lagos bem ao lado.
Certamente tudo isso que ali fora construído confirma
os dizeres dos autores citados. Ali, naquele lugar dei asas aos meus sonhos e pude
reconstruir e recuperar, literalmente, o verdadeiro paraíso referido pelo
escritor francês Marcel Proust e assim “continuar morando” na velha casa em que
nasci, conforme a prosa e versos do grande poeta Mário Quintana. A casa onde
nasci, aliás, foi também reproduzida em um belo quadro pintado por encomenda e
que agora enfeita a parede da sala. Nela eu lanço diariamente o meu olhar
contemplativo sobre a janela cortinada do quarto onde nasci e um filme de
reminiscências roda sem parar na minha mente em deleite. Começa invariavelmente
pelas brincadeiras de roda em frente àquela janela, lideradas por nossa mãe e
tias (sempre havia uma por perto e acho que era para ajudar a olhar a meninada,
pois éramos sete irmãos e, mais os agregados, chegando a mais de dez crianças).
As brincadeiras de roda e outras além das cantigas folclóricas ocorriam
diariamente e eram sempre após o jantar que era servido rigorosamente entre quatro
e 4:30 horas da tarde. Às sete da noite todos já estavam prontos para dormir
depois de um bom copo de leite quente.
Não
havia energia elétrica naquela velha fazenda e a iluminação era muito precária,
à luz de lamparina de querosene. Depois melhorou com o lampião Aladim de camisa
incandescente. Na verdade até existiu uma pequena hidrelétrica com gerador
monofásico que deixou de funcionar antes que eu nascesse. Assim, devido ao
recolhimento logo que escurecia, levantava-se muito cedo. Os pais já estavam de
pé às 5 horas, com os primeiros acordes dos galos, quando então faziam o café,
com o pó moído na hora. O barulho do moedor manual de café era o nosso
despertador, pois, afixado no portal da cozinha ressonava em toda a casa no
silêncio da madrugada, juntando-se à gostosa entonação dos cantos dos galos e
da passarinhada. Entre seis e seis e meia da manhã todos já estavam de pé para
o café com leite, queijo (preferíamos o queijo cabacinha que vinha da fábrica
de queijos, onde era entregue a produção de leite), requeijão e manteiga
caseiros, broas de fubá, bolo de mandioca, biscoitos de polvilho e bolachas
(biscoitos de trigo) feitos no forno à lenha acoplado ao fogão. Todos esses
alimentos eram simplesmente chamados de “quitandas”. Meu pai não dispensava uma
farofa especial que ele próprio preparava com farinha de milho da marca
Elefante (só servia essa tradicional marca, cuja fábrica se localizava na Rua
Progresso, em Lavras) e muitos ovos mexidos em grandes pedaços. Mais parecia
uma omelete, mas, ele a chamava de farofa. Sempre a fazia, especialmente quando
já morando na cidade íamos, os meninos, passar as férias com ele na fazenda.
Era o nosso paraíso. Ali havia de tudo com fartura, sem contar as frutas da
estação, legumes, milho verde com pamonhas e curau.
E o filme da velha casa continua a rolar na
imaginação com cenas das caronas no carro de bois carregado de café cereja,
seguindo-se as imagens das estripulias do garoto galopando nos cavalos
preferidos, os mangas-largas marchadores Rosilho, Queimadinho e a égua Mineira,
de grande porte e inteiramente de cor preta. Desfilam ainda as imagens marcantes
pela perigosa aventura nadando no ribeirão Água Limpa que transbordava e nos levava
pela correnteza abaixo, boiando com duas cabaças amarradas sob os braços. Só
mesmo o anjo da guarda dos meninos para salvá-los de acidentes como a queda na
cachoeira de pedras, situada depois da segunda curva do turbulento riacho que transboordava nos meses de
chuvarada e férias escolares. Graças a Deus que encalhávamos propositadamente
na última curva de onde éramos resgatados pelos camaradas (empregados da
fazenda) que lá estavam com uma vara de bambu para nos resgatar no paredão do
barranco. E as aventuras continuam com as caçadas aos passarinhos, jogando bola
no terreiro, subindo nas árvores imitando Tarzan ou simplesmente buscando as
mais doces mangas, laranjas, figos, araticuns, goiabas e outras frutas. Também
era comum, ao cavalgar pelas trilhas, matinhas e riachos, dar tiros imaginários
com Colt 45 ou Winchester 44 nos bandidos em fuga como nos velhos filmes de
far-west ou alvos diversos, geralmente grandes pedras no alto das serras ou nos
paturis que povoavam as lagoas à beira do Rio Grande, juritis e aves de rapina
como as corujas e gaviões muito espertos a nos amedrontar com seus vôos rasantes
e piados característicos. Esse filme daqueles doces tempos não tem fim. É puro
deleite, agora, ali no novo paraíso que construí e onde também cantam os
sabiás, bem-te-vis, juritis, canários da terra, rolinhas, tizius, anus,
quero-queros, paturis e até um belo casal de tucanos do bico amarelo e preto.
Toda essa passarinhada em sinfonia se alimenta e reproduz ali mesmo no extenso
e variado pomar que foi plantado justamente para atraí-los.
Hoje, na chácara, costumo trabalhar
duro nos finais de semana na capina e jardinagem, no trator aparando grama, no
plantio, nas colheitas de café e outras tantas atividades próprias de uma
propriedade rural, porém nada com fins comerciais, apenas por puro lazer. Não há momento em que não me recorde da figura
de meu pai na constante lavra da terra, o mais honesto dos trabalhos onde o
suor do trabalhador lhe remunera diretamente com a colheita farta do alimento,
sustento da própria vida e de sua família. Não há prazer maior para um
agricultor do que ver toda a família reunida à mesa, juntamente com os
agregados e convidados saboreando os frutos de seu trabalho, servidos em abundância. Tranqüilo
e grato a Deus ele pensa nos seus celeiros e paióis cheios, com a colheita
farta e garantida para a alimentação da família e dos rebanhos até a próxima
estação de chuvas. Assim era a vida no campo. Simples, mas enchia de orgulho
toda a família que participava e desfrutava dos prazeres proporcionados pela
natureza.
Quem
diria, tive que aprender as lições de um escritor francês e de um dos poetas
brasileiros mais admirados, para encontrar, somente agora, a explicação para o
fascínio que tenho pelo paraíso perdido representado pelas casas onde nasci e
me criei até me formar na faculdade. A segunda casa, localizada na cidade,
também pintada e decorando a mesma sala mostra, ao fundo, a imponência da Serra
da Bocaina com indescritível beleza no horizonte. Proust e Quintana me fizeram
entender esses sonhos inconscientes. Além disso, o novo paraíso, que reproduz
os locais vividos no passado, é o refúgio onde posso contemplar a natureza em
toda a sua dimensão – homem, terra, água, ar, fauna e flora. É ali que me
reencontro como “pessoa” em minhas reflexões
sobre os valores da vida, da família e dos amigos. Esse “retiro” na calmaria e
beleza da natureza também se faz necessário devido à agitação da vida em
grandes cidades, sobretudo na capital federal onde as relações, inclusive de
trabalho, perpassam pela vertente política. É uma verdadeira selva de pedra e
com todas as demais mazelas próprias como trânsito caótico e crescente
violência que nos deixam estressados e até neuróticos. Por outro lado, o
trabalho demasiadamente intelectual e desenvolvido com elevado padrão de ética
exige profunda e completa imersão nas questões, o que nos leva à exaustão. É
comum gastar-se 50 ou 100 horas de efetivo trabalho para a produção de uma tese
inovadora e que demanda múltiplas pesquisas bibliográficas. Não bastasse a
exaustão mental, as intensas demandas profissionais como conferencista em
estratégias para a formação em Engenharia e Agronomia, nos empurravam, quase
sempre, para o isolamento do convívio social. Assim, diante do esgotamento
mental só mesmo a construção daquele novo “paraíso” quintanense/proustiano para recarregar nossas
baterias.
Também
já aprendi que à medida que os anos passam a gente vai se tornando mais
sensível, amoroso, saudoso e respeitoso em relação ao passado, à infância,
juventude e aos valores inestimáveis dos amigos de infância, de nossos pais,
irmãos e especialmente dos filhos e netos. Neles, os jovens, vemos a
continuidade de nossas vidas. Portanto, acho mesmo que é natural que tenhamos
em meio a essa vida agitada de hoje, esses surtos de saudosismos. Digo “surtos”
porque não sou saudosista de desejar que o tempo retorne e que se volte à época
dos arados de aiveca, dos carros de bois, dos cavalos como meio de transporte e
a iluminação à lamparina, a pena e o tinteiro com o mata-borrão para escrever
cartas a serem levadas por mensageiros ou, ainda, passear no duro e
desconfortável Jeep Willys. Não há nada mesmo, com certeza, que eu desejasse
hoje como era antigamente. A tecnologia e a modernidade aí estão para nos proporcionar
maior conforto e bem estar. Melhor viajar num jato de seis ou 400 lugares,
jantando em Nova York ou Paris e tomar o café da manhã no Rio de Janeiro. Ou
então rodar num SUV importado, com ar condicionado, mídia e GPS, usar o celular
ou a internet para se comunicar com o mundo inteiro por áudio, mensagem ou
vídeo, ao vivo, instantaneamente. Muito melhor e mais confortável que esperar o
mensageiro a pé, a cavalo ou de trem e barco, ou andar léguas para se encontrar
o interlocutor. Mas, devemos olhar o passado com respeito e admiração, pois se
constitui em verdadeiro aprendizado que valoriza o progresso de hoje e nos
impulsiona para o amanhã. Portanto, devemos ter os olhos sempre voltados para o
futuro, mantendo-se no coração os sentimentos ligados ao passado.
A
propósito de paraísos e da casa onde nascemos, há coisas mais doces e puras do
que a infância e a juventude? Melhor se vividas num imenso ambiente cheio das
mais variadas e prazerosas atividades, cercados de verdadeiros amigos que
cresceram juntos no amor e toda a harmonia que a natureza nos oferece.
Proust e Quintana traduziram magistralmente
esse sentimento e abaixo reproduzo as fotos e pinturas desses paraísos – o
perdido e o reconstruído.
Brasília, 2006/2012
Paulo das Lavras
A velha casa da fazenda onde nasci, em Lavras, no Sítio Retiro dos Ipês,
nas Três Brarras.
A casa da cidade em extensa área de 20 Ha da Chácara, onde hoje é a Vila Cruzeiro do Sul,
com
vista para a Serra da Bocaina. A casa ainda se encontra´á, na esquina de Rua Progresso
com Lázaro de Azevedo
com Lázaro de Azevedo
O paraíso reconstruído
em Brasília: a casa, o carro de boi...
... O arado de aiveca que pertenceu a meu pai, trazido para
o novo paraíso
o Manga Larga Marchador, como nos tempos da
fazenda.
A pescaria dos netinhos...
O velho Jeep Willys para trilhas no barro e montanhas... , crianças
a bordo e travessia
de lagoa..., adrenalina a mil
A secagem do café recém-colhido! E, acreditem, e no cerrado de
Brasília
Subir
na jabuticabeira e se fartar... sabor de infância que nunca
esquecemos, mesmo depois de mais de 60 anos e a
1.000 km de distância
O
cheiro adocicado do café, vermelho e do
amarelo bourbon, faz brotar a
reminiscência
da infância vivida na fazenda, pegando carona no carro de boi
carregado de café cereja recém-colhido. Proust
e e Quintana têm razão... continuamos
a
morar na velha casa onde nascemos. Verdadeiro paraíso perdido, mas que mora
eternamente
na alma da criança que nunca deixamos de ser.
E
tem nome... : Felicidade!
Parabéns Paulo! Muito bonitas suas palavras..
ResponderExcluirObrigado, Ederson. Quando se escreve com o coração conseguimos expressar os verdadeiros sentimentos gravados na alma
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