Noventa e três milhões de
milhas é a distancia do sol. A lua está a 240 mil milhas da terra e quando os
vemos e admiramos nos lembramos daquilo que os pais nos diziam:
“Oh, minha bela mãe..., ela me disse, filho, você irá longe na vida. Se
fizer tudo direito, amará o lugar onde estiver, mas tenha a certeza de que onde quer que vá, você sempre poderá voltar
para casa”. Coisas de mãe,
com certeza, pois sempre querem os filhos ao seu redor, mas, no entanto
compreendem que eles precisam voar, deixar o ninho. Já o pai dizia:
“filho, às vezes, pode parecer escuro, mas a ausência da luz é uma parte
necessária na vida. Apenas tenha certeza de que você nunca está sozinho e você sempre poderá voltar para casa.
Casa, casa..., você sempre pode voltar”.
E
lá fomos todos nós, eu você, os amigos “ganhar a vida”. Encontramos “a estrada que é uma subida escorregadia,
mas sempre pudemos, também, encontrar uma mão na qual podíamos nos segurar. E
então, ali, olhando profundamente pelo telescópio o distante sol ou a lua, você
pode perceber que seu lar está dentro de você”.
Belas
estrofes grifadas em itálico. São partes da letra da canção interpretada por
Jason Mraz, 93 Million Miles. Têm profundo e verdadeiro significado. Quando
menino deixei a casa de meus pais e fui, voluntariamente, para um internato, um
Seminário da igreja católica. Em poucos dias percebi, ao contrário do que disse
o poeta compositor, que o lar não estava dentro de mim, enquanto ali permanecesse.
Mas, a sabedoria materna não nos deixa errar. Eu ainda não estava fazendo a
coisa certa, pois era criança e prevaleceu a segunda parte: “... onde quer que vá, você sempre poderá voltar para
casa”. E definitivamente voltei para casa ao término do ano letivo e fui mais
feliz.
Mas,
anos mais tarde, em missões de longa duração, no exterior a milhares de milhas,
sozinho nos hotéis, pude sentir literalmente as palavras do cantor: “às vezes, pode parecer escuro, mas a
ausência da luz é uma parte necessária na vida. Apenas tenha certeza de que
você nunca está sozinho e você sempre poderá voltar para casa. Casa, casa..., você
sempre pode voltar”. Alma ferida, solitária, distante fisicamente e eis que
abate sobre mim o manto da escuridão. A escuridão da alma, quase um estado de
depressão. Foi assim nos EUA e também na França. Neste último, lá pelo quarto domingo de
demorada viagem, numa manhã fria, nublada, confinado em um quarto de hotel,
sozinho, a mais de 10.000 km de distância da família e amigos, sem ânimo nem
mesmo para sair para almoçar, atacou o pânico. Uma ansiedade sem igual com
sentimentos de medo e de solidão em ambiente desconhecido e imaginariamente
hostil, até mesmo pela paisagem urbana, da mais que milenar capital francesa,
em profundo contraste com a luminosa, espaçosa e verdejante capital de nosso
país, local de residência fixa havia longo tempo.
Conheci assim pela primeira vez a depressão, a
escuridão da alma, tal qual descrito na canção já citada: “às vezes, pode parecer escuro, mas a ausência da luz é uma parte
necessária na vida”. Que coisa mais cruel, pois, ironicamente a escuridão
me abateu ali, na conhecida e aclamada Cidade Luz, a olhar pela janela aquele
cenário sombrio, embaçado, de casario e prédios antigos, que aumentavam ainda
mais a angústia quando comparada aos amplos, modernos e ensolarados espaços de
Brasília, onde o céu mais parece um mar azul sobre nossas cabeças. Parecia um
exílio, forçado pelas circunstâncias do trabalho. Lembrei-me do ex-presidente, JK,
que descrevera essa situação de extremo desespero quando de seu exílio político
na França (1964/67). Disse ele:
“Não há
primavera nesta terra. As árvores estão verdes e as flores coloridas, mas o
sol, que é propriedade comum dos homens, se esconde sempre atrás de nuvens
carrancudas e hostis. Isso reflete na
alma da gente e só convida a pensamentos que trazem o tom das nuvens, cor
de spleen” (termo
de Baudelaire, que exprime profundo sentimento de desânimo, isolamento,
angústia e tédio existencial).
Bateu o desespero no menino das Lavras ao
relembrar as palavras de JK e se pôs a perguntar onde estariam as palmeiras em
que cantam os sabiás, as aves que gorjeiam nas copas das exuberantes árvores?
Ah... JK e o poeta Gonçalves Dias são sábios, vividos, experientes no exílio e
com amor incontido à Pátria, aos amigos, à família. A angústia, a dor da
saudade dos entes queridos, verdadeiro banzo, provocaram lágrimas num pranto
incontido no menino que suplicou, implorando a Deus para que aquele pesadelo ao
vivo passasse logo e que a paz para o espírito condoído voltasse à normalidade,
à razão. Coração disparado, respiração curta, suor, tontura, seria um ataque de
coração? A boca seca, uma onda de calor pelo corpo, e num gesto desesperado
abriu a velha janela, empoeirada por fora e o frio cortante do inverno
parisiense açoitou-lhe o rosto, num choque térmico que pareceu cortar a
respiração de vez. Parecia que a vida estava por um fio diante do ataque
incontrolado do pânico. Afinal, só restou mesmo o
gesto incontido da alma ferida, em verdadeiro desespero e num esforço físico e
mental extraordinário lançar mão do telefone, ali na cabeceira da cama e ligar
para a casa distante. Sim, a casa a que nossos pais se referiam, o lar onde
estão os entes queridos, esposa e filhos, a família. Com dificuldade, pois não
existia ainda a telefonia celular, juntou os lampejos de raciocínio que
afloravam e deu conta de discar o zero, outro zero, os códigos do país e da
cidade e os oitos dígitos do número de casa. Como foi bom ouvir a voz da
esposa, do outro lado do mundo e ainda o alarido das crianças correndo pela
casa. Parecia que estava retornando ao aconchego do lar. Porém, por mais que me
esforçara para dissimular e evitar maiores preocupações a ela, não foi possível
esconder o pranto angustiado, o descontrole de quem se julgava “perdido”, sem
ninguém para lhe dizer uma palavra, tirar-lhe daquela solidão abissal, pânico.
As palavras não se articulavam, pois o pranto dominava. Lembro-me apenas de ter
respondido que estava no quarto do hotel. Porém, ela tudo compreendeu, que
estava a salvo do acidente ou dano físico. O dano era outro e bem profundo, na
alma e então ela, calmamente, recitou o Salmo 23:
O Senhor é o meu pastor; nada me faltará.
Ele me faz repousar em pastos
verdejantes. Leva-me para junto de mansas águas;
Refrigera-me a alma. Guia-me pelas
veredas da justiça por amor do seu nome;
Ainda que eu ande pelo vale da sombra da
morte, não temerei mal algum,
porque Tu estás comigo; o Teu bordão e o
Teu cajado me consolam.
Preparas-me uma mesa na presença dos meus
inimigos,
unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice
transborda.
Bondade e misericórdia certamente me
seguirão todos os dias da minha vida; e
habitarei na Casa do Senhor para todo o
sempre.
Uma verdadeira
oração, bálsamo para consolar a alma dolorida, perdida, ofuscada pelas trevas
que me abateram, ainda que momentâneas. A oração proferida e atentamente
ouvida, ainda que à longa distância, deu-me confiança, tal qual ao salmista, o
rei Davi, em seus momentos de fraquezas. Confiei que nada me faltaria ali
naquele lugar distante, sombrio, desconhecido e solitário. Deus estaria comigo
e minha esposa passou-me essa certeza e foi o que me sustentou, retirando-me
daquele “vale da sombra da morte”, a morte da alma cujo consciente fugia ao
controle. Tudo se acalmou com a voz e a serenidade das palavras com seu
poderoso clamor invocando a presença de Deus e fortalecendo a alma. Caí em sono
profundo como que anestesiado pelas palavras do salmo e de conforto..., “tenho
uma casa, para onde voltarei”. Ainda não eram nem 11 horas da manhã e mesmo
assim, caí em profundo sono reparador. Acordei no final da tarde, me alimentei
levemente com frutas e derivados do leite e pude, assim, lá permanecer por mais
uma semana, em paz, até que terminasse a missão de trabalho naquele país.
Dia seguinte nada
mais havia, tudo normal, pois o menino engrenara no seu brinquedinho de segunda
a sexta – o trabalho intenso, típico dos workahollic.
Mas aprendi a lição, compreendi que as unhas do inconsciente, ocultas como as
dos felinos, podem aflorar repentinamente, ferir-nos gravemente e em certos
casos até provocar a loucura e a morte. Percebi que a loucura passou perto de
mim, ou em outras palavras, no jargão médico, foi um ataque de ansiedade ou de
pânico, que é mais comum do que se pensa. E isso tudo sem que nós mesmos
percebamos que estamos caminhando para tal.
Sábias,
muito sábias as estrofes cantadas por Jason Mraz. Não a toa ele repete: “Você sempre poderá voltar para casa,... Casa... Casa. Você sempre pode
voltar”. Mas, mais sábias ainda são as palavras do salmista.
Aprendi a lição e hoje um amigo paulista acionou o gatilho de meu subconsciente
ao postar aquela musica cujo link está indicado ao final. Verdadeiramente a
casa é o abrigo seguro nas horas de tempestades. E quando você está só, mesmo
perdido nas trevas e não souber o que fazer, a lembrança de casa sempre lhe
inspira e traz de volta o amor, a confiança de que tudo vai dar certo.
A distância e a solidão, juntas,
não são, efetivamente, boas companheiras. Aprendi isso duramente. Estudos no
campo da psicologia mostram que o corpo tem individualidade, o ego, enquanto o
espirito, a alma, não tem isso. O corpo sofre com a separação física e o
primeiro choque de separação foi quando saímos do conforto da barriga da mãe. E
elas, as mães sabem disso, sentem isso e são as primeiras a dizer “... filho, aonde
quer que esteja, saiba que aqui é a sua casa, volte...”. A separação produz o
medo, a fonte de todas as angústias. O espírito, a nossa alma, ao contrário,
não tem senso de individualidade e é comum até dizermos que nos irmanamos em
espirito às pessoas. Por isso sempre procuramos a companhia de amigos, que na
verdade nem sempre se trata da companhia física, mas, sobretudo pela palavra de
conforto estímulo ou até mesmo a crítica construtiva. Por outro lado,
considerando a magnitude da alma e se “olharmos profundamente
pelo telescópio”, como dito na música citada, “Você pode perceber que seu lar
está dentro de você. Apenas tenha certeza de que onde quer que você vá, onde
quer que você esteja você nunca está sozinho, não! Você
sempre voltará para casa”. Bastou um telefonem e minha alma
serenou, comungou o amor e reencontrei o lar, ainda que muito distante
fisicamente. Aliás, o melhor das viagens, sobretudo as longas e demoradas, não
é mesmo a volta para casa? Por isso digo que tanto faz estar num concerto de
rock no magnífico Red Rock Amphitheater em Denver, onde Jason Mraz encenou seu
clip, ou ainda no rigoroso inverno nublado de Paris, ou ali mesmo do outro lado
ou mais figuradamente dentro de um gigantesco telescópio, perscrutando a lua ou
o sol, posso plagiar o autor e dizer com plena convicção:
93 milhões de milhas de distância... e ainda em
casa! Mais que certo!
Brasília, 20 de maio
de 2017
Paulo das Lavras
https://www.vagalume.com.br/jason-mraz/93-million-miles-traducao.html
Jason Mraz, gravando o clip em Red Rocks – 93 Millions
Miles
Foto: internet
O belíssimo anfiteatro
Red Rocks, em pleno canyon, no Colorado
Foto: internet
Turistas apreciando
o espetáculo no Canyon de Red Rocks
Foto: internet
Jason Mraz- 93 Millions
Miles – a solidão no deserto... mas pensando na volta para casa
Foto: internet
Estando em casa, nos
tempos de faculdade, cercado de amigos... , não havia solidão
Frio de zero grau, tempo
nublado..., nem mesmo o belo cenário exibido em outras estações é capaz de
evitar aquilo que JK expressou: tem reflexo nas pessoas, deixando-nos com a
alma abatida
Não há maravilhas, nem a torre Eiffel e tampouco a beleza azul do rio Sena à esquerda da foto,
no bosque da região do palácio de Versalhes, que acabem com a solidão, o banzo,
a vontade de voltar para casa, o aconchego do lar e dos amigos.
Como diz a letra de Jason Mraz: “você sempre poderá voltar para casa,
ainda que seja bem sucedido lá longe”. Nada melhor que voltar de uma viagem a
tempo de participar da festinha de aniversário de entes queridos... Bálsamo
para a alma!
Belíssima crônica, Paulo. Verdadeira e emocionante. Abraço.
ResponderExcluirobrigado, Eugênio. Aquela música que você postou disparou o gatilho de minhas reminiscências sobre o tema tão bem interpretado por Jason Mraz. Um abraço
ResponderExcluirPaulo, você retratou bem o que é uma alma angustiada, linda mesmo sua crônica, delicada, terna e um bálsamo a quem a lê, porque há uma luz no fundo do túnel e com ela devemos contar sempre! Ressalvo, porém, que a depressão é uma doença, assim como a
ResponderExcluiransiedade e devem ser tratadas e acompanhadas por um médico. Sei bem o que é depressão e pânico, pois minha família paterna carrega no DNA essa doença e sou a única dos irmãos que sofre com ela. Por isso, às vezes, mesmo estando medicada, essa angústia aparece e só Deus nessa hora, porque é difícil controlar o sentimento devastador que se apodera da pessoa. Mas tudo tem seu tempo e sua hora e, felizmente, no meu caso também já passou. Obrigada e um abração!
Verdade, Tida, há casos mais sérios e que exigem intervenção médica. A presença dos entes queridos é de suma importância, em qualquer dos casos. Nada substitui a segurança, o amor que encontramos em casa, até mesmo num sentido mais amplo, incluindo os amigos. Que Deus continue lhe abençoando, sempre. Um abraço.
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