A
foto desse histórico e bonito caminhãozinho foi publicada recentemente nas
redes sociais. O menino das Lavras logo o identificou e saudosas lembranças desfilaram
em sua memória. Além desse, que lhe “contou” doces recordações, havia outro
igual em que costumava andar bastante. Foi um modelo muito comum na década de
1950, com capacidade para quatro a cinco toneladas de carga. Importado da
montadora GM e comercializado em Lavras pela Agência Chevrolet, de Ciro Arbex
& Cia Ltda. Pertenceu a um importante fazendeiro, o Sr Toniquinho de Pádua
que, para nossa tristeza, nos deixou ainda cedo. Esteve guardado por trinta e
três anos na fazenda, depois de rodar por mais de 20 anos unicamente nas mãos
daquele renomado fazendeiro. Tinha um ciúme danado que se revertia em cuidados
especiais como só deixar as revisões a cargo da agencia autorizada. E mais, ali
havia, ainda, o mecânico João Foguete, mestre na arte dos motores Chevrolet e
somente a ele confiava a revisão de seu mimado caminhão. As peças tinham que
ser as originais, importadas. Nunca o emprestava, a ninguém. Precisou? Sem
problemas, ele mesmo ia pessoalmente atender ao amigo. Verdadeira joia
preciosa, cuidada com esmero. Só foi vendido, ainda assim para um colecionador,
depois que a matriarca da família também foi ao encontro do Sr. Toniquinho.
Ela, que amava a fazenda e a memória do esposo que partira bem antes, tinha
especial carinho por aquele veiculo que fora parte importante na vida da
família. Com ele foi construída boa parte da fazenda e as crianças cresceram
andando nele, quase que diariamente da cidade para a fazenda e vice versa ou em
passeios às fazendas vizinhas e tudo que demandasse qualquer deslocamento. Aliás,
não foi só o belo caminhãozinho que recebeu tratamento especial, carinhoso.
Tudo foi conservado por ela na ausência daquele se dedicou inteiramente à
família e à construção daquele patrimônio para que eles, esposa, filhos e suas
gerações desfrutassem. Tudo restaurado,
conservado de acordo com o original, de doces recordações. A fazenda, sua bela
sede com pinturas de paisagens bucólicas nas paredes da varanda, o silo aéreo,
grande novidade à época, os currais, galpões e arredores. Este autor a conheceu
muito bem na companhia de um dos filhos do casal, o inesquecível colega de
turma do curso de agronomia, Thadeu de Pádua. Por ironia do destino, logo no
início deste ano, quando o já tínhamos programado uma visita nostálgica àquela
bela fazenda, que se vislumbra da ponte sobre o Rio Grande, ele, o amigo,
decidiu partir subitamente. Deixou-nos, a todos desconsolados, doloridos com
sua brusca viagem, não naquele caminhãozinho, mas em carruagens celestiais,
escoltadas por anjos, ao encontro de seus pais na Glória do Senhor.
A
frustação do menino, por não ter podido realizar a visita em companhia do
amigo, tem sido minorada com a publicação de fotos da bela fazenda, dos
familiares e agora desse caminhãozinho. Este despertou-lhe a escrita destas
memórias, que são uma forma de terapia, dizem os especialistas. E haja história
para contar. Esse caminhão me falou das estradas rurais, íngremes e barrentas,
levando e trazendo cargas mistas. Cargas propriamente ditas e necessárias à
fazenda ou produtos desta para a cidade e...., pasmem, em meio à carga, uma
meia dúzia de passageiros, a filharada e contumazes caroneiros aboletados na
carroceria do faceiro Chevrolet. Linhas de ônibus? Nem pensar, pois as poucas
existentes passavam longe da fazenda Naqueles duros tempos dos anos 1950/60
havia pouquíssimos carros motorizados na cidade. Automóveis, sedãs como eram
chamados, eram mais raros ainda. Portanto, os caminhões ¾, como esse da foto e
as caminhonetes imperavam. Eram muito práticos e ideais para os serviços da
fazenda, atividade principal do município. Passageiros na carroceria do
caminhão? Sim era muito comum, pois o transporte público em jardineiras
(antigos ônibus sobre chassi de caminhão, próprias para as estradas de terra)
ainda era muito limitado. Havia certo risco para os passageiros na carroceria,
mas nem tanto, pois a velocidade média era apenas 20 a 25 km/h nas estradas de
terra, embora seus velocímetros marcassem até 120 m.p.h., aproximadamente 190
km/h.
Aquele
pesado veículo se prestava também ao papel de autoescola familiar. Os jovens, rapazes e moças, treinavam a
direção com o pai que, prazerosamente, os ensinava a dirigir, pois autoescolas ainda
nem existiam. Não era fácil o aprendizado naquele caminhão de volante enorme,
duríssimo, pesado, cambio seco, ou seja, para se trocar a marcha era necessário
debrear, puxar a alavanca do câmbio somente até o ponto morto (neutro), soltar
a embreagem, dar uma aceleradinha e em seguida debrear novamente. Só então se
podia levar a alavanca até à posição da marcha desejada. Coitado do caminhão,
passou pelas mãos aprendizes de todos os filhos. Uma das filhas, depois de
alguns treinos, parecia ir bem nas lições práticas de direção até que um dia,
ao tentar reduzir a marcha barbeirou feio naquele “cambio seco”. Apavorou-se com
o barulhão das engrenagens rangendo, arranhando como uma navalha mal afiada. O
nervosismo e desespero da aprendiz aumentaram diante do risco de iminente acidente.
Não bastasse isso e já quase em pânico, com o coração saindo pela boca, o pai
gargalhava como era seu costume em qualquer que fosse a situação, mesmo nas
mais adversas. Quanto mais força a mocinha apavorada imprimia mais o barulho
aumentava. Adrenalina nas alturas, pavor estampado na face, decidiu colocar
toda a sua força naquele traiçoeiro pedaço de ferro com uma bola preta de
ebonite na ponta (ainda não existia plástico nos automóveis) . O resultado foi
desastroso. Subitamente a alavanca de marchas, não resistindo, escapou
inteirinha na sua mão direita. Com os olhos arregalados, largou o volante, em
pânico, mão esquerda na cabeça e descabelando agitava freneticamente a
alavanca, mostrando-a ao o pai, como a perguntar... o que eu faço, agora? O
doce e tranquilo pai não parava de rir daquela inusitada situação e a cara de
pavor da filha. Na verdade estava quase desmaiando de tanta gargalhar.
Felizmente a moça obedeceu ao comando do pai que gritou, ainda meio sem fôlego:
pisa na embreagem e no freio, depressa! Não fiquei sabendo se a moça conseguiu,
depois, a carteira de motorista, ou se restou algum trauma...
Esse
caminhãozinho tem histórias. E ao vê-lo, na foto, contou-me outras. Sua
carroceria vivia repleta de jovens. Carregou sonhos e mais sonhos de uma
juventude sadia, ordeira que se reunia para diversão em atividades nas fazendas
e na cidade. Havia uma turma de rapazes muito espertos. De olho nas belas
meninas sempre arranjavam um jeito de pegar carona naquele caminhão. Sabiam a
hora certinha que o pai das garotas terminava os afazeres da ordenha do rebanho
e voltava para a cidade. Era hora de bater ponto na sede da fazenda para pegar
carona e, lógico ao lado das moças que sempre acompanhavam os pais nos fins de
semana. Chegavam de mansinho, cumprimentavam os pais, ganhavam lanche oferecido
por Dona Olga que, com seu carinho maternal se compadecia daqueles meninos que
passaram o dia pescando nas lagoas da fazenda. Coisas de mãe que sempre acha
que o filho precisa se alimentar mais e agasalhar-se. Na verdade os guapos
rapazes, e eu os conhecia, certamente estavam ali por outros motivos que julgavam
secretos, mas que não passavam despercebidos até porque as moças ficavam radiantes
com a “inesperada” visita. E eram em turma de três a meia dúzia a cada vez.
Havia
também outros grupos de jovens, os jogadores de futebol, do time chamado
“Fábrica Velha”. Esse nome era alusivo à Fabrica de Tecidos União que ali
existiu até o ano de 1925, na localidade de Dr Jorge, às margens do Rio Grande.
O caminhãozinho era o meio de transporte de boa parte dos jogadores. Sr
Toniquinho tinha prazer em ajuntar o time arregimentando os jogadores na
própria fazenda e na vizinhança, do Sr Américo Alexandre e Sr Zé Maria, tios
das moças. Os campeonatos rurais aconteciam nas Três Barras, Criminoso, Boa
Vista e até mesmo nas cidades de Perdões e Carmo da Cachoeira, onde este menino
até chegou a acompanhar uma comitiva em outro caminhão igual, o de seu avô.
Mas, aquela turma da suposta pescaria também se infiltrava no meio dos
jogadores para assistir aos jogos. Alguns até eram bons de bola e conseguiam
ser escalados no time. Esses gostavam de se exibir, pois ali na pequena plateia
estavam aquelas lindas meninas, donas do caminhão, ou melhor filhas do dono, o
que dá na mesma. E nas viagens elas faziam questão de ir na carroceria. Na
boleia, só os pais. Dona Olga, a zelosa mãe, não tirava o olho do espelho
retrovisor para ver o que se passava na carroceria. Ela própria, que antes
chegara a queixar-se de ligeiro torcicolo, mandara instalar o retrovisor
interno, na cabina do caminhão, pois mesmo os carros novos não tinham esse
acessório. Proporcionou maior conforto, mas logo ele afrouxou, de tanto que era
ajustado para pegar todos os ângulos da moçada lá atrás na carroceria. Coisas
de mãe, que deixava transparecer grande preocupação com as suas prendas, ali em
meio a tantos jovens, guapos rapazes. Chegava exausta ao destino, quase sempre
depois de uma hora inteira de viagem em estradas sacolejantes e sempre
movimentando ora o corpo, ora o retrovisor.
Diante da notória preocupação da zelosa mãe, o
sempre alegre e amoroso pai das garotas dava gargalhadas ao volante. Caçoava a aflição da mãe dizendo-lhe: que nada, não se preocupe minha querida,
eles estão apenas se divertindo e lá estão, também, os dois irmãos delas. Mas,
certamente, ele também disputava umas olhadinhas
pelo bendito retrovisor que a companheira mandara instalar. Talvez a frouxidão
precoce daquele acessório tenha sido mesmo antecipada em razão dessa disputa de
vira para lá, vira para cá a toda instante. É verdade que nessa luta a mãe
sempre vencia. Também como não se lembrar dos lindos versos da poetisa que
canta e decanta a essência do amor e os mistérios das mães?
“ É certo que as mães têm um mistério
Que as fazem nessa Terra tão
presentes!
Mesmo depois de transcender o
etéreo
Para habitar o Céu e as nossas
mentes...
São elas que ensinam, sempre a
sério,
A cumprir os deveres
prontamente.
São elas que nos legam o
critério
Da escolha. E o fazem
brandamente....
Mitiga a nossa dor, o medo
ancora,
Faz-nos dormir e ao leito nos
conduz...
Somos nós que a ajudamos em sua
hora
De adormecer nos braços de
Jesus...
Esse caminhãozinho me contou mais.... Alguns anos
mais tarde Sr Toniquinho pegava a netinha primogênita e a levava até a venda
das Três Barras, a uns quatro quilômetros pela Fernão Dias. Esse armazém, que
era conhecido por “Venda do Sr Júlio”, foi o embrião dos Supermercados Rex. Sr
Júlio Sales iniciou seu comércio ali na zona rural das Três Barras, nas terras
de seu sogro, João Pereira da Silva, o meu tio Nhô. Este menino frequentava a
“venda” quando passava as férias na fazenda do pai, logo ao lado. Funcionou ali
até os anos 60. Antes, em 1954, Sr Júlio abriu o Armazém Rex no antigo Mercado
Municipal e depois na Franciso Sales. Finalmente, em 1969/70 inaugurou o Super
Rex na Travessa Guadalupe, quando já havia fechado a “venda” das Três Barras.
Mas, voltando à viagem à “venda”, tive acesso pelas redes sociais a uma
postagem emocionada daquela netinha, hoje adulta, relatando a alegria que tinha
ao ser levada pelo avô, prometendo-lhe comprar sanduiche de pão com salame,
guaraná da marca 507, fabricado em Varginha e alguns docinhos de abóbora,
banana ou batata doce em tabletes. Ela preferia as balinhas de abacaxi-puxa,
aquelas que arrancavam dentes. Era a festa para a menininha que se encantava
com o avô e ainda hoje sente sua falta e se emociona diante das fotos dele e
desse caminhão. Coisas do Sr Toniquinho, pai e avô mais amoroso, alegre, sem
igual.
Sr Toniquinho e Dona Olga usaram esse caminhão para
espalhar o amor. O amor aos filhos, o amor aos vizinhos, aos conhecidos, aos
camaradas (empregados) da fazenda e a todos que precisavam de uma carona ao
longo da empoeirada ou barrenta estrada. Nem era preciso acenar. Certa vez,
voltando da fazenda para a cidade, ele parou no ponto da fazenda Retiro, nas
Três Barras e ofereceu para nos levar, a mim e meu pai que o chamava de
Tuniquinho de Pauda (assim mesmo, com inversão de letras, mas sempre
pronunciado com muito respeito). A atenção, o carinho, o sorriso permanente
daquele homem, pai, avô e amigo, eram os mesmos para quem quer que fosse.
Indistintamente. Ele tinha prazer em todos os seus gestos. Dava-se ao luxo de
passar em frente a um banco comercial, onde trabalhava uma de suas filhas, só
para acenar, dar um ligeiro toque na busina e esbanjar um largo sorriso para
ela como a dizer: oi, estou aqui, passei só para te ver, filha! Assim era o
dono desse caminhão comprado em 1949, há exatos 64 anos e ainda hoje
conservado. Jóias, o primeiro dono e o caminhão que me contou tudo ao revê-lo
na foto. Inspirou-me a escrever duas
crônicas. A segunda se refere à minha primeira viagem em outro caminhão,
igualzinho a esse. Mas essa é outra história. Hoje a homenagem é para esse
exemplar pai de família que só sabia semear o amor e deixou um abençoado
legado. Um legado que inclui até um caminhão que fala. E que só fala de amor,
tal qual aqui escrevi. Que seus filhos e todos familiares colham os frutos
desse amor.
Brasília, 24 de novembro de 2013
Paulo das Lavras
A família Pádua
A família e o caminhão sobre a ponte ao lado da fazendaSr Toniquinho de Pádua, sempre sorridente
Sede da Fazenda Bela Vista, no alto da colina.
Grandes lagoas na entrada da ponte da BR381
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