quinta-feira, 1 de maio de 2025

Enquanto eu voava só, você criou raízes

 

Vovô viajava muito, mas agora tem mais tempo para os netos. 
Lazer e companheirismo, criando raizes 


           Eu partia, deixava você. Você ficou em casa, levei apenas meus sonhos profissionais, meus projetos de trabalho na Educação Superior e constantes viagens às universidades de todo o Brasil e boa parte do mundo. Um workhaolic. Duzentos dias fora de casa, Rio, BH, Brasília e São Paulo eram constantes, além de temporadas nos EUA, França, México, Canadá e tantos outros países. Os outros 165 dias encerrados nos gabinetes e salas de aula. Férias? Há quando puder..., porém, levava a família para uma praia em Guarapari, Caraguatatuba ou Búzios, Natal, Maceió e outras brazilzão afora. Lá os deixava por duas ou três semanas, mãe filhos e agregados, em confortáveis casas ou apartamentos de temporadas. Pegava o avião de volta à Brasília e se engolfava no turbilhão de afazeres e viagens às universidades brasileiras. De outras feitas, já com a família em casa, partia para longas e demoradas viagens internacionais, especialmente para Estados Unidos e França, onde permanecia por mais de mês a cada semestre.

Sim, duzentos dias ao ano fora de casa, asas que voaram mais de 3.500 vezes sim, três mil e quinhentas. Partia, deixava mãe e filhas, mas levava profunda saudade no coração e ao voltar, como na fábula do pássaro encantado, chegava carregado de penas reluzentes(presentes e mimos) como a expressar a alegria de estar de volta. Colegas de viagem ao verem-me “carregado” de mimos para a família diziam, em tom de blague: “é..., o peso da consciência está grande...”, ao que de pronto retrucava: “sim, é proporcional à saudade, a dor da ausência, o amor que fica em casa, o qual carrego no coração e sempre está presente, principalmente quando distante. Me lembro até mesmo a data, 1983, e o nome do colega, Hércio Ladeira, professor da Universidade de Viçosa, que me acompanhava em voo de Pelotas-RS para Porto Alegre e Brasília, por ocasião do Congresso Anual de Educação Agrícola Superior  e celebração do centenário de fundação da faculdade de Agronomia da UFPEL. Demos boas gargalhadas no avião por conta dessa piada ao ver-me carregando no colo, espremido na poltrona, uma enorme caixa de presente super frágil, uma especialidade daquela culta e histórica cidade gaúcha. Sempre que a comissária de bordo passava e olhava com pena para aquela grande caixa no colo, até impedindo-me de aceitar a bandeja de lanches, o prof. Hércio dizia-lhe: "Coitado..., não se preocupe, Srª aeromoça. Ele está com a consciência pesada e fez promessa de carregar essa carga para a família e se abster de comer qualquer lanche até chegar em casa e ser perdoado, em segredo. Essa caixa está muito pesada e  é proporcional ao peso da consciência...". Só me restava rir, mas tive, de fato, que recusar e agradecer o lanche oferecido.

      Eu parti em constantes viagens mundo afora, mas carreguei um enorme fardo, o da saudade, a falta dos entes queridos. Saudade que por duas vezes me derrubou, literalmente, fui ao chão, e paradoxalmente, fiquei sem chão, em profunda angústia e depressão, em San Franciso, na Califórnia e em Paris na França. Na primeira ainda tive tempo de me assentar no meio fio da rua e fui logo socorrido. Já em Paris, caí ao chão mesmo, semi-inconsciente, com a lufada de ar gelado  de inverno de temperatura abaixo de zero graus, quando abri a janela do quarto para respirar ar mais puro e já quase em pânico na solidão de uma manhã de domingo. 

          Cidade nublada, sem luz do sol, contrastando com sua fama de Cidade Luz, contestada até por JK que ali penou seu exílio político. Disse ele que “Isso (o tempo nublado e gelado de Paris, ao contrário da radiosa e verde Brasília) reflete na alma da gente e só convida a pensamentos que trazem o tom das nuvens, cor de spleen". Atacou-me o pânico,  ansiedade sem igual, beirando a depressão e que me levou a quase perda da consciência.  Fins de semana sozinho eram terríveis. O banzo atacava e inevitavelmente vinha a pergunta inicial: o que estou fazendo aqui a 10.000 km, tão distante de casa, dos entes queridos por tanto tempo e sozinho? Com esse gatilho disparado e durante dois dias a cada final de semana, encerrado num quarto de hotel.... Os transtornos psicológicos durante as viagens já foram objeto de estudos e teses universitárias em centros de pesquisas. Uma recente pesquisa entre 500 profissionais, realizada pelo instituto britânico Help Musicians, revelou alguns dos males que as frequentes viagens podem causar.  Cerca de 60% têm depressão quando estão longe de casa e 75% dos entrevistados declararam sofrer de ansiedade crônica quando estão em viagem. 84% disseram, ainda, ter tido dificuldades de convívio com outras pessoas, especialmente no exterior, com idiomas diferentes.

      No way..., e assim passei minha vida profissional inteira, viajando pelo mundo. Em compensação a esposa criou raízes, criou vínculos indeléveis com os filhos.  Levava e os buscava na escola diariamente, visitas aos médicos que, no início eram muito frequentes para debelar crises de asma nas filhas. Me lembro que algumas vezes, diante do simples anúncio de que o pai iria viajar, desencadeava-se crise asmática em uma das filhas gêmeas. Quando retornava... passava a crise. Aliás, a crise já aliviava um dia antes da chegada, pois ouvia os telefonemas do pai anunciando para o dia seguinte  hora de chegada no aeroporto. Era a senha da felicidade, sorrisinhos, expressão de alegria  e adeus asma. Incrível, porém era um fato que se repetia e ainda hoje as irmãs da menininha asmática se lembram desses acontecimentos frequentes. Quando soube disso pela primeira vez, fiquei chateado comigo mesmo e passei mais de um mês sem viajar, embora passasse mais de 200 dias ao ano fora de casa. Mais uma vez a fábula “A menina e o pássaro encantado” (Rubem Alves) provou ser verdadeira, onde não apenas a menina que ficava sem o pai durante suas viagens, chorava de saudades, mas, também o pai sentia saudades da filhinha de seis anos, que reclamava de suas longas e demoradas ausências. “Eu também terei saudades — dizia o pássaro (o autor da fábula). — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.”

          Mas, chegou a hora de parar com o trabalho, aposentadoria á vista,  mais tempo em casa. Tempo para reflexão, a falta do ambiente de trabalho, colegas, viagens..., um choque brutal. Hora de planejar outro estilo de vida. Leituras, produção de textos em crônicas e livros e, principalmente dedicação à família, aos netos que já em fase escolar, do maternal ao segundo grau, nos renovaram e revigoraram o gosto de vê-los a progredir nos estudos e, pela primeira vez, seria parte constante, presente de corpo de alma daquele maravilhoso processo educativo. No âmbito doméstico acompanhamos e participamos da rotina da casa e até nisto aprendemos a valorizar o trabalho de quem a vida inteira se dedicou a criar raízes, como diz o título dessa crônica. E o aprendizado principal não foi apenas das tarefas de governança da casa, administrar empregados, supermercados e provisão da despensa, manutenção de equipamentos, de roupas de cama e mesa, limpeza e conservação predial, locomoção dos filhos/netos, escola e seus compromissos... O aprendizado maior pode ser resumido numa pergunta que sempre  faço a mim mesmo: Como pôde uma única pessoa, a esposa, sozinha e sem a ajuda do marido que vivia a viajar ou metido 24 horas no trabalho fora de casa? Não me canso de contar isso aos amigos, como se fosse um ato de penitência. Mas, infelizmente, não poderei mais telefonar para o saudoso amigo Hércio Ladeira e contar-lhe que aquela caixa de presentes que deveria pesar bastante e que eu carregava no colo, no avião, em longa viagem de quase três horas, não pesava um milésimo do peso que  me deparei ao me estabelecer em casa. E ainda completaria..., como pôde a esposa suportar com galhardia tudo isso, sozinha? Tenho a resposta. Ela soube plantar amor, com tanta  dedicação, criando profundas raízes que sustentam a família e a mantêm unida. Mas, sequelas são inevitáveis e  embora o pássaro tenha sido “encantado” para os filhos, agora ele sente a falta que fez sua presença, restando a sensação de que perdeu oportunidades de criar raízes mais fortes com os filhos que lamentavam sua ausência na infância. No entanto, Rubem Alves, o filósofo e poeta, soube traduzir muito bem esse sentimento quando disse para a menina: 
“...o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar”.

          Sinto que hoje, passados mais de quatro décadas, o amor dos filhos é maior e permanece mais forte. Adultos e também pais, sabem melhor avaliar o valor dessas experiências da infância. Sabem que a saudade criou expectativas pelo pássaro encantado, que chegava com as penas douradas e imaginavam que ele voltou definitivamente para o ninho, sequer pensando que poderia haver novas viagens. Certa vez, ao chegar de longa e demorada viagem, correram para os apertados e chorosos abraços, depois de invadirem o portão que separa a área de recepção de bagagens e o hall público, no saguão do aeroporto. Mesmo agachado, à espera dos abraços e pensando que assim poderia diminuir o previsível impacto físico, fui derrubado ao chão, literalmente. Vieram correndo para o abraço e conferir as penas douradas do pássaro encantando. Foi um espetáculo à parte, com todos os demais passageiros contemplando aquela inusitada cena de um pai, de terno e gravata caído, esparramado no chão  e os filhinhos de  menos de dez anos em cima, na maior alegria, em gritaria e chororô. Tratei logo de, pelo menos, me assentar ali mesmo no chão, antes que alguém chamasse um socorrista. Foi uma cena comovente, pude perceber nos olhares daqueles que também desembarcavam. Não me senti envergonhado pela cena, ao contrário, sentia-me orgulhoso, recompensado na volta ao ninho e todos os passantes, que tinham de se desviar olhavam com ternura aquele monte de gente no chão. Para as crianças, ensinam-nos os psicólogos, não há futuro e nem passado, mas apenas o presente. Para elas valia apenas o fato de que o pai havia chegado, estava ali e ponto final, não importando as circunstâncias . A saudade doía no pai, mas o abraço e a alegria dos filhinhos superavam toda a falta, o sentimento de solidão e saudade em distantes terras. Ah.., os filósofos e poetas têm razão. O melhor da viagem é mesmo a volta para casa, o ninho de afetos da alma!

Brasília, 20 de outubro de 2013

Paulo das Lavras 


 
Compromisso comigo mesmo..., do primeiro dia de aula (aos dois anos) até o último, o levava e buscava na escolinha. E era tão prazeroso ver aqueles olhinhos brilhando  e assim que entrava no carro, já de volta para casa: “vovô, pára na banca para comprar figurinha?”  Nada se compara ao prazer de estar em casa e participar do desenvolvimento da criança.



Natal, rodeado de netos. Viagens, sozinho e distante? Ah..., nada melhor
que estar no ninho, rodeado de filhotes




 
Fim de semana em Londres, fugindo do frio de Paris, onde trabalhávamos
por longas  temporadas. Mês de dezembro..., melhor voltar para o ninho


Viagem de lazer, de volta à França depois de muitos
 anos. Paris, com os canhões de Napoleão


Hoje, mais que nunca, “o melhor da viagem é a volta para casa”,  curtir os netos, a família. 
Os filhos não pudemos curtir tanto quanto se desejava, pois viajávamos até duzentos dias por ano.
Agora, construir um reboque cheio de pedriscos, barulhento na calçada..., não tem dinheiro que 
 pague essa felicidade  da criança em ter algo diferente que ela própria ajudou a construir...
Deus é sábio, reserva-nos no final da vida todo o tempo, sem pressa, sem preocupação com compromissos,
 para recebermos essas bençãos, chamadas de netos e que prolongam nossos dias na terra. Amém!










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