Minha infância foi vivida com a maior
liberdade possível, de todo o mundo. Por isso sempre fui grato a meus pais pela
infância que me proporcionaram. Uma infância sem medo, sem portas trancadas,
sem grades e até mesmo sem muros. Infância de quem cresceu diante da imensidão
de espaços vazios, verdes pastagens e coloridas do outono ao verão, matas
córregos, lagoas e até um grande rio, o Rio Grande na segunda fazenda de
invernada das vacas prenhes e bezerrada desmamada em regime de engorda para o
abate. Espaços capazes de acolher o vazio da natureza com suas variadas fauna e
flora. Lugares onde a vista se perde até encontrar o horizonte das montanhas. E
que montanhas... , do Queixada, da Jacuba, do Grotão, da Fábrica Velha, das
Três Barras, Jacuba à beira rio e mais..., principalmente, a mais majestosa de
todas, a Serra da Bocaina, que emoldura a cidade natal, Lavras. Ah..., a
belíssima Bocaina, cantada em versos pelo saudoso jornalista e poeta Hugo de
Oliveira, o sonho de todo exilado, ainda mais quando o exílio dourado já dura
quase meio século:
Há
muito tempo afago esta esperança:
dar
vida aos sonhos de voltar à terra,
de
me perder nos alcantis da serra
e
reviver meus tempos de criança;
voltar
onde se exala um ar que amaina
a flama
de tristeza do exilado...
Sim, ali, do azul das serras e dos
verdes campos de minha terra, de onde lançava olhares desimpedidos, livres do
concreto e da poluição, o menino sonhava voar, voar como os pássaros,
principalmente como aquelas aves de rapina com seus velozes e certeiros voos de caça, ou
simplesmente flanando ao sabor das correntes de ventos ascendentes. Até
pareciam pairar no ar de tão suave e leve aqueles voos com asas de grande
envergadura e pontas arrebitadas para cima, tal qual o winglet nas
pontas das asas dos grandes aviões de hoje. Aliás,
os engenheiros aeronáuticos só descobriram o valor das pontas das asas arrebitadas quase cem anos depois que Santos Dumont inventou o avião.
Mas, ainda assim, admirando aqueles
lindos voos planados o menino não se
contentava apenas com os sonhos aeronautas. Caçar, nadar, pescar e cavalgar
pelas seis fazendas de seu pai, Retiro dos Ipês (sede), Três Barras/Barro Preto,
Cachoeira (próxima à Bebela), Jacuba/Rio Grande, Faria e Corguinho também nas
Três Barras e a mais próxima, a apenas dois quilômetros. A mais distante, a
invernada do Faria, ao lado da Estação de mesmo nome, se estendia ao longo da
via férrea, que ainda hoje interliga Lavras à Três Corações, distava umas três léguas, quase em linha reta,
passando pela Fazenda Ribeirãozinho, do Sr. Quincas Guimarães. Em todas elas,
onde meu pai tinha gado solteiro e plantações de café, milho e feijão, fazíamos
visitas quinzenais ou mensais, geralmente nos finais de semana ou nas férias
escolares, sempre a cavalo, em marchas que duravam até três horas para vencer a
maior distância, na Estação do Faria. Essa distância era um pouco maior que a
sempre preferida, entre a fazenda sede e a casa da cidade, uma grande chácara
de 20 hectares situada no final rua Progresso (hoje Vila Cruzeiro do Sul), cujo
traçado avançava somente até a esquina da rua Sabino Lustosa, antiga 15 de
Novembro. Essa cavalgada era a melhor de todas, passava pelo espigão do Passa
Vinte, onde hoje se situa o Bairro Serra Azul, em direção ao Queixada, cuja
estrada de boiadeiro passava exatamente por sobre o atual trevo de Ribeirão
Vermelho na BR 265. Dali descia-se à esquerda do espigão do Queixada até a
Fazenda Dessimoni, atravessando o ribeirão Água Limpa, já na divisa da fazenda
Retiro dos Ipês, nossa propriedade, sonhado e desejado paraíso. Eram 16 km,
vencidos em exatas duas horas de cavalgada, com direito a guaraná gelado em
geladeira movida à querosene, na venda (armazém) do Vico do Cristóvão, na
região da serra do Queixada. Ah..., que aventura, prazer de criança, um simples
guaraná gelado com biscoitos da marca Confiança, que soavam como um crepe royalle do Café de Flore
em Paris, onde a nata da sociedade parisiense se reunia e escritores como
Gustave Flaubert escrevia seus contos e romances.
Quem não se lembra dos Biscoitos
Confiança, vendidos na cidade nos anos de 1950 e 60? Havia um fornecedor em Lavras, Sr. Arnaldo Corradini, que, com seu
furgão Chevrolet ano 51, abastecia os
comerciantes da cidade e região. Residia na Rua Umbela, hoje Azarias Ribeiro.
Para abastecer os bares da situados na Praça do Trabalhadores e o tradicional Armazém
do Julinho, estacionava seu furgão em frente à casa de meu avô, Anízio Abreu
(Rua Francisco Sales - 794/812), também conhecido por Anízio Gaspar. Ali, a meninada ficava a espiar a
abertura da porta do furgão lotado de doces, balas, biscoitos, chocolate
Falchi, jujubas e todo tipo de guloseima.... Vontade louca de se esconder ali
dentro do veículo e se fartar.... Desafios aos coleguinhas não faltavam, mas
sequer se atreviam a chegar perto do Sr. Arnaldo Corradini, amigo de nosso avô
e que parecia adivinhar as traquinagens dos meninos de olhos arregalados.
Tempos bons, de meninos livres, que
podiam brincar na rua e nas chácaras. Aprendi, assim, que a liberdade na
infância é fundamental para a formação com visão de largos horizontes, quer na
planura dos campos das fazendas ou do alto das montanhas alvenses. Deve ser por isso que me encantei, algum
tempo depois com os espaços abertos de Brasília e aqui me instalei, onde os horizontes
também se perdem de vista, dando-nos aquela sensação de liberdade, tal qual desfrutada
na infância. E já se vão 48 anos longe daqueles lugares sagrados da infância e
a todo momento vêm à lembrança os sonetos de outro poeta, Casimiro de Abreu, em
seu poema Meus Oito Anos:
“Oh! que saudades que tenho, da aurora da minha vida,
da minha
infância querida que os anos não trazem mais!
Como são belos os dias de despontar da
existência!
Respira a alma inocência. Livre filho das
montanhas,
eu ia bem satisfeito, da camisa aberto o
peito,
pés descalços, braços nus...”.
O menino
das Lavras não se cansava de cavalgar por entre rios e montanhas. Doce
infância, doce juventude, vividas na Terra dos Ipês e das Escolas e o belo
jardim para o footing dos fins de
semana, onde desfilavam lindas meninas. Ah..., mas como pôde o poeta Hugo de
Oliveira, tirar as minhas palavras que fazem doer a alma? Não, não é bem assim,
poetas são românticos sabem trabalhar as palavras para, mais que ninguém,
expressar com mestria a alegria da alma:
“Àquela
terra se eu voltar um dia,
Mais
velho, embora, assim, menos rapaz,
Terei
corpóreo o sonho que queria:
De Lavras
ter o amor de suas manhãs,
Viver
seus dias e morrer em paz,
Sob
canções de ipês e flamboyantes”.
(Hugo de Oliveira)
E se assim não for, que as cinzas do
menino repousem sob os ipês amarelos da janela onde nasceu, na Fazenda Retiro
dos Ipês. Lindo pedaço de terra, cercado pelos ribeirões Água Limpa e Maranhão
e toda enfeitado de ipês, berço santo da infância e da juventude, que lhe
proporcionou serenidade e toda a alegria da vida de quem, literalmente,
percorreu meio mundo, conheceu gente e trabalhou no melhores centros mundiais
de tecnologia educacional e pesquisas. Mas, sempre grato à terra que lhe deu
tudo, da vida à formação profissional, alargando seus horizontes. Doce
infância, doce juventude na terra onde nasci.
Brasília, 31 de janeiro de 2023
Paulo das Lavras
Foto: internet
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