Naquela
noite procurei o Tatá Carroceiro para contratá-lo para algumas viagens entre a
igreja do Rosário e o córrego Mata-cabrito. Perguntou-me se era carga muito
pesada, talvez para colocar mais um burro de tração, além dos três que sempre
puxavam a carroça bem grande. Não, informei que seriam apenas umas três ou
quatro bacias de roupa de uma pobre lavadeira que já morava ali desde os anos
de 1945. Iria receber visitas que viriam de bem longe e queria tudo limpinho. Além
disso, pegava roupa de duas madames chiques para lavar, todas as semanas. Disse-lhe,
ainda, que ela já estava cansadinha e não aguentava mais carregar tanto peso
pelo morro que, aliás, está desbarrancando com a chuvarada de verão e levando
até casas e carroças. Assim, era preferível contar com transporte seguro até a
fonte, onde se reuniam em grupo de umas dez, com três vezes mais o número de
crianças, filhos, netos, sobrinhos que não tendo onde ficar acompanhavam as
mães e tias. Quase sempre levavam umas varadas nas canelas, pois teimavam em
sujar a água logo acima com seus mergulhos e pedras atiradas a todo instante. Crianças
adoram jogar pedras na água de córregos e lagoas para admirarem as ondas de
círculos concêntricos que chegavam até a outra margem. Vergões nas canelas e
bumbuns não faltavam em meio à gritaria que mais parecia um acampamento de
ciganos com fogões de pedra, à lenha, improvisados para “quentá a comida”.
Tratei
o preço para levar logo cedo aquela carga, às seis horas, pois a senhora
gostava de pegar o melhor lugar para colocar sua bacia, próximo a uma pedra que
servia de batedouro e a água nem era tão funda, não precisando molhar os
fundilhos o dia inteiro e pegar algum “difruço”. Era muito querida e todos a
chamavam de mãe-do-mundo, tal o carinho com que ela tratava a todos. O contrato
incluiria também buscar tudo de volta, no final da tarde, lá pelas cinco horas,
no por do sol. Ela, a pobre lavadeira, tinha que ficar lá o dia inteiro a pão e
água. No entanto, quase sempre chegava um pedaço de carne de segunda que o
marido de uma delas, o magarefe do matadouro municipal que ficava logo acima,
mandava para reforçar a fraca boia, requentada no fogão improvisado. A fritura
daquela carne emanava um cheiro especial que aguçava os apetites de todos
indistintamente. A pobre senhora era obrigada a ficar ali no córrego o dia todo,
pois não podia se afastar das roupas quarando no pasto e depois de enxaguadas eram
penduradas na cerca de arame farpado para secar. Tinha que vigiar o dia inteiro,
pois as malas de roupas das patroas abastadas tinham roupas finas e cobiçadas.
Além disso, o gado das chácaras vizinhas vinha lamber o sabão preto e mascar as
roupas. Não poupavam nem a suas próprias humildes roupas de cama e banho feitas
com muito sacrifício, alvejando sacos de açúcar, que eram os melhores. Esses
tecidos alvejados se prestavam até mesmo para as cuecas samba canção e outras.
Quando não, as camisas de americano cru e calças de sarja dos homens da casa e,
principalmente as roupas de baixo das mulheres. Uma vergonha, pois ali no
córrego, no meio do mato, era muito perigoso e havia moleques e marmanjos ladrões.
Ao
ouvir que eram apenas malas de roupa para lavar no córrego, Tatá arregalou os
olhos miúdos, sorriu mostrando o único dente inferior (o incisivo) que ainda
tinha e disse que faria o serviço por apenas 10 cruzeiros, mas que não se
importava em receber o pagamento em sabão preto, feito de soda cáustica da
marca Caveira (havia uma caveira e duas tíbias cruzadas, estampadas na lata) e
puro sebo de vaca que ele mesmo recolhia nos três açougues existentes na cidade
e vendia às vovós que faziam esse sabão. Negócio fechado e foi, então, que ele
perguntou o nome e o endereço da dona das roupas a serem levadas e buscadas no
“corgo” Mata-cabrito, descendo o ladeirão de trás da igreja. Surpreso, ao ouvir o nome e endereço da
senhora lavadeira, deu um pulo para trás e “quiabou”, dizendo que não poderia
mais fazer o serviço. Explicou que tinha muito medo, porque naquela rua ela
passava com a carroça, gritando prurúuuu-tá.. tá..., prurúuuuh..tá..tá em voz
de comando para os burrões e mulas que puxavam a carroça à caminho do matadouro, justamente para pegar
o sebo de vaca e, logo apareciam três meninas e se aboletavam na carroça, sem
se importarem com o forte cheiro de sebo, semelhante à carniça de vários dias. Tudo
era divertido para aquelas três meninas, até que um dia a mãe de uma delas, não
se lembra se era da Lenina, Duriena ou Caninena, saiu correndo atrás e gritou a
plenos pulmões, parecendo uma doninha de tudo: pare esta carroça, já! Retirou a
menininha de cima da carroça e quase o matou de medo, tamanha era a ameaça,
caso aquilo se repetisse. E ele nunca mais gritou prurúuuuh-tá-tá, por ali,
passava em silêncio, pois só se lembra de que a mãe era muito enérgica.
Amedrontado e preocupado com as ameaças,
transpirando em bicas no forte calor do outono, o menino acordou e percebeu que
felizmente era apenas um sonho, ainda em estado de alucinação hipnagógica, com
cheiros de sabão preto, burros suados e ainda zunindo em seu ouvido os gritos
de pruruuuuh... tatá, os tirantes esticados, tensionados ao extremo e a burrada
patinando na íngreme subida da rua, logo à saída do córrego, tirando fogo com
suas ferraduras no cascalho. Coração a mil, ofegante diante daquelas fortes
imagens e a figura terna da lavadeira, mãe-do-mundo a cuidar de sua rotina. Porém,
desperto compreendeu que o sonho fora uma visão masterizada, colorida, sonoramente
modificada e de difícil diferenciação entre o ilusório e o real, graças à
presença de imagens impactantes que provocaram espanto a ponto de interromper o
sono e tirar-me da cama. Foi então que o gatilho do subconsciente destravou completamente
a memória cintilante de histórias reais, verdadeiras, acontecidas há mais de 60
anos nas quebradas das Lavras do Funil.
Brasília,
31 de março de 2022
Paulo das Lavras.
ANTOLÓGICA, PRIMO
ResponderExcluirObrigado, primo, cronista e escritor da nossa Villa de Nepré
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